02 Outubro 2014
"Talvez se mais brasileiras e brasileiros tivessem acesso às estatísticas do aborto, se fosse oferecida à população uma oportunidade maior de entrar em contato com o assunto, conhecer as experiências de outros países e também remover a sombra que paira sobre o tema, mais pessoas mudassem de opinião e passassem também a defender a legalização", escreve Jarid Arraes, cordelista e colunista na Revista Forum, em artigo publicado pela revista Fórum, 20-09-2014.
Eis o artigo.
A opinião pessoal de cada cidadã e cidadão tem sua importância íntima, mas o debate sobre a questão precisa partir de pressupostos científicos, voltando o foco para as demandas de saúde pública
O aborto é um tema bastante espinhoso para a população brasileira. Por isso, é muito difícil levantar debates de qualidade a respeito da prática de interromper a gestação, especialmente quando é motivada pela escolha pessoal de uma mulher. A opinião pessoal de cada cidadã e cidadão tem sua importância íntima, porém a discussão sobre a questão precisa partir de pressupostos científicos, voltando o foco para as demandas de saúde pública. Independente do que você pense sobre o aborto, seja esse posicionamento baseado na sua espiritualidade ou reflexão política, é preciso tomar cuidado para não deixar suas convicções pessoais o cegarem da realidade e encarar outras perspectivas.
O dia 28 de setembro é o Dia de Luta pela Descriminalização do Aborto na América Latina e no Caribe, uma data que vem sendo utilizada há muitos anos, especialmente pelos movimentos de mulheres, para despertar interesse sobre problemas sociais gerados pela ilegalidade do aborto. Diversos grupos feministas em todo o país já estão organizando marchas e protestos nas ruas, que acontecerão em diversas capitais brasileiras, incluindo São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre. Aproveitando a data próxima, é pertinente uma breve reflexão sobre o contexto atual desse procedimento no Brasil.
O caso Jandira e a omissão do Estado
Nas últimas semanas, a morte de Jandira Magdalena dos Santos, no Rio de Janeiro, causou choque e ocupou posição de destaque em todos os canais midiáticos do Brasil. Grávida, a moça de 27 anos recorreu a uma clínica clandestina para interromper a gestação – sua única opção, já que o Estado não facilita a realização do aborto nem mesmo nos casos em que é legalizado. Temerosa, Jandira mandou uma mensagem via celular para seu ex-marido antes do procedimento pedindo que orasse por ela. Infelizmente, ela não sobreviveu e se tornou mais uma das milhares de mulheres vítimas da clandestinidade do aborto anualmente.
Apesar de ter ganhado destaque na imprensa, o caso de Jandira não é isolado. A Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), realizada pelo Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero Anis, revela que uma em cada cinco mulheres aos 40 anos já realizou um aborto. E essa não é uma estatística limitada pela religião; as mulheres católicas e evangélicas compõem números altíssimos de abortos em caso de gravidez indesejada. O fato é que, independente de fé ou crença, são as mulheres pobres e negras as maiores vítimas do Estado, pois não têm os meios para realizar um procedimento seguro – além de serem também, por questões sociais, aquelas que têm menos acesso à educação sexual e aos diversos métodos contraceptivos.
Jandira, que tinha condições financeiras para bancar um aborto, ainda que fosse em uma clínica clandestina, era parte de uma minoria. No Brasil, os métodos mais utilizados são outros: milhares de mulheres morrem todos os anos por hemorragia e infecções ao tentarem realizar um aborto em ambiente doméstico, geralmente com a inserção de objetos cortantes e pontiagudos, ou mesmo com a utilização de alvejantes e drogas perigosas que não foram projetadas para essa finalidade.
Mesmo nos casos em que o aborto é legalizado – quando há confirmação de anencefalia fetal, em situação de gravidez decorrente de estupro ou de comprovado risco à vida da mãe – poucos hospitais do SUS realizam o procedimento e o Ministério da Saúde se recusa a nomear os pouquíssimos hospitais que fazem. Por conta de um sistema de saúde precário e um Estado omisso, a maioria massiva das mulheres para quem abortar é a única opção acabam passando por um grande sofrimento e sangram até a morte, assim como provavelmente aconteceu com Jandira.
O fato é que, independente da ilegalidade do procedimento, ele é realizado pelos mais diversos motivos milhares de vezes todos os anos. Enquanto a Lei, a ciência e as religiões debatem questões morais e filosóficas, tentando chegar a um consenso sobre o início da vida de um feto e quais são os seus direitos, o aborto continua a ser a quinta causa de mortes maternas no Brasil. Segundo o ginecologista e obstetra representante do Grupo de Estudos do Aborto (GEA), Jefferson Drezett, acontecem no Brasil cerca de 1 milhão de abortos provocados por ano e 250 mil internações devido a complicações causadas pelo aborto clandestino.
Esse é um problema seríssimo de saúde pública que só poderá ser resolvido com mudanças intensivas no modo como a saúde sexual da mulher é tratada. A começar pela educação sexual: não basta distribuir preservativos e não explicar sobre o risco de falha na pílula, por exemplo, além de não haver no país nenhum projeto real para auxiliar no planejamento familiar. E se o aborto já é proibido, a estigmatização da sexualidade feminina age como um agravante, pois as mulheres – principalmente as mais jovens – não têm acesso a informações de qualidade sobre o assunto. Em vez de adotar orientações médicas, elas seguem todo tipo de indicações que encontram em fontes duvidosas, pois são constrangidas e humilhadas, ou até mesmo tratadas como criminosas ao buscar atendimento profissional.
Há diversos países onde foi implementado um sistema de prevenção mais eficiente e humanitário, conscientizando a população sobre a necessidade do planejamento familiar e levando a todas as famílias, inclusive às mais pobres, informações acessíveis e de fácil entendimento sobre como prevenir a gravidez indesejada. Com um atendimento médico digno, acompanhamento psicológico respeitoso e o direito de escolha consciente preservado, as cidadãs desses países não passam pelas dificuldades assombrosas que passariam no Brasil. Essas medidas, reforçadas pela legalização e regulamentação do aborto, tiveram excelentes resultados nos lugares onde foram adotadas: além das mulheres não mais morrerem pela clandestinidade, os próprios números de abortos reduziram. O Uruguai, nosso vizinho latino-americano, é um excelente exemplo do que a desmistificação e a legalização do aborto são capazes.
Embora a legalização do aborto pareça uma realidade ainda distante no Brasil, há muitos aspectos que podem ser mais facilmente melhorados, principalmente no tocante aos casos nos quais a interrupção da gestação já é legalizada. A portaria 415/14, que regulamentava os procedimentos de aborto na rede de saúde pública, era de fundamental importância para a questão da mortalidade feminina no Brasil. Lançada em junho de 2014, previa uma quantia de R$ 443,30 a ser repassada aos hospitais por cada interrupção de gestação, somente em situações previstas em lei. No entanto, a resolução foi revogada imediatamente pelo Ministério da Saúde logo após a sua aprovação; um grande retrocesso ocasionado pela pressão de grupos religiosos fundamentalistas.
O aborto nas eleições
Em pleno ano de eleição, é importante que todas essas questões sejam devidamente lembradas e debatidas, pois é inadmissível que a vida das mulheres brasileiras seja utilizada como moeda de troca para os candidatos à presidência e outros cargos políticos. São poucos os candidatos que tomam a frente para defender a vida e a autonomia das mulheres. Candidatos de diversos partidos políticos acabam se vendendo aos setores conservadores em troca de votos e, assim, compactuam com a situação deplorável da saúde pública das mulheres no Brasil.
A candidata Dilma Rousseff (PT) deixou evidente em seu último mandato que não está empenhada em resolver as demandas das mulheres quando polêmicas são ameaças. É importante lembrar que a revogação da Portaria 415/14 aconteceu justamente em seu governo, impedindo que a interrupção de gestação em casos “lícitos” pudesse ser finalmente realizada com segurança em hospitais públicos. Ao ceder à pressão dos conservadores, Dilma reafirmou sua aliança com os grupos fundamentalistas religiosos do país e, até o momento, não demonstrou qualquer compromisso com as milhares de mulheres que morrem todos os dias devido à clandestinidade do aborto.
Não se sabe ao certo qual é o posicionamento da candidata Marina Silva (PSB), mas ela tende a sugerir plebiscito para questões de foro íntimo, como por exemplo o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Essa medida seria extremamente problemática, especialmente se tratando de um caso de vida ou morte para tantas mulheres. A interrupção da gravidez precisa ser legalizada e se tornar acessível para todas que optarem por realizar o procedimento. Nesse sentido, a possibilidade da legalidade do aborto ser decidida por um plebiscito é um problema alarmante que precisa ser encarado com seriedade.
Embora no Brasil o voto seja obrigatório, nossas eleições são decididas por uma população despolitizada e conformista, que, em sua maioria, prefere votar nos grandes candidatos que julgam “menos piores” do que em candidatos de partidos menores, ainda que esses representem melhor os seus ideais – algo que acontece muitas vezes por medo de um candidato ainda pior ser eleito. Esse é o maior obstáculo para a eleição de figuras como Luciana Genro (PSOL) e Eduardo Jorge (PV), que apesar de serem os presidenciáveis mais compromissados com a questão da clandestinidade do aborto no Brasil, não conseguem disputar frente a frente com os grandes partidos.
Luciana Genro se destaca por defender abertamente os direitos reprodutivos das mulheres, mencionando em rede nacional que é a favor da descriminalização e regulamentação do aborto. Demonstra ser uma candidata expressamente compromissada com as causas das mulheres e parece valorizar as lutas do movimento feminista, dando voz às milhares de mulheres vítimas da clandestinidade. O candidato Eduardo Jorge também faz bonito, falando com assertividade sobre o assunto, e já tendo comentado em TV aberta sobre o fato da legalização do aborto ser uma questão de saúde pública. Seu posicionamento é muito relevante e, juntamente com Luciana Genro, forma os pontos mais altos do debate, já que ambos falam abertamente sobre temas complexos, urgentes e estigmatizados – como direitos LGBT, discriminalização das drogas e desmilitarização da polícia, por exemplo.
Há, ainda, outros candidatos como Mauro Iasi (PCB) e Zé Maria (PSTU) que, apesar de também defenderem pautas feministas e os direitos humanos, têm ainda menos visibilidade política devido à monopolização de outros partidos. Se essa mentalidade de votar somente nos candidatos com as maiores campanhas não mudar nem mesmo no primeiro turno, o Brasil jamais conseguirá eleger um representante realmente transformador, que traga mudanças efetivas para as minorias e para a saúde reprodutiva das suas cidadãs. Ainda pior, corremos o risco real de eleger candidatos extremamente conservadores, que não se intimidam na hora de externar suas opiniões a respeito da criminalização do aborto, incluindo em suas campanhas de eleição até mesmo medidas que favoreçam o nascituro em detrimento da gestante. É por isso que é preciso instigar uma maior consciência política na sociedade e chamar mais atenção para as necessidades tão urgentes das minorias.
O debate é única via
Talvez se mais brasileiras e brasileiros tivessem acesso às estatísticas do aborto, se fosse oferecida à população uma oportunidade maior de entrar em contato com o assunto, conhecer as experiências de outros países e também remover a sombra que paira sobre o tema, mais pessoas mudassem de opinião e passassem também a defender a legalização. O site Meu Aborto é uma ótima iniciativa nesse sentido, mostrando o caso de uma mulher que resolveu filmar o próprio aborto e o de outra que tirou fotografias para desmistificar a ilusão de que a interrupção de uma gestação é necessariamente brutal. Para muitas pessoas, ver é conhecer – e saber que o aborto é um procedimento simples e rápido pode ser a diferença entre ser a favor ou contra sua legalização.
Independente de qualquer coisa, é importante lembrar que a opinião é livre e um direito de todos – mas só poderemos falar em verdadeira liberdade quando houver honestidade para que opiniões conscientes e bem informadas possam ser construídas e desconstruídas.
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Aborto em ano de eleições, debater para desmistificar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU