Por: Cesar Sanson | 28 Julho 2014
Irmã Maria do Carmo dos Santos Gonçalves, Mestre em Ciências Sociais defende uma política de inclusão aos migrantes estrangeiros e teme uma crise migratória internacional caso não sejam tomadas medidas de acolhimento.
A reportagem e entrevista é de Fabiano Finco e publicado pelo portal Pioneiro, 24-07-2014.
Aos sete anos, Maria do Carmo dos Santos Gonçalves começou a frequentar encontros organizados pelas freiras em Rio Grande (RS), sua cidade natal. Na adolescência, frequentou a Pastoral da Juventude e aos 21 anos optou de vez pela vida religiosa, ingressando na Congregação das Irmãs Scalabrinianas, motivada pela chance de trabalhar pelo povo e de ser missionária.
Hoje, aos 39 anos, Maria do Carmo vive a felicidade de praticar ensinamentos adquiridos nas etapas do aspirantado, postulantado e noviciado, aperfeiçoados pela formação em Filosofia na Universidade de Caxias do Sul (UCS) e pelo mestrado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Porto Alegre. Já trabalhou em Porto Alegre, Fortaleza, Brasília, passou pela França, Bélgica e Itália.
Desde 2010 é coordenadora do Centro de Atendimento ao Migrante (CAM), que desde 1984 realiza um importante trabalho de acolhimento e orientação aos migrantes que chegam a Caxias e região. Nos últimos meses, a movimentação no CAM triplicou em função da chegada de estrangeiros do Haiti, Senegal e Gana, que juntos já somam mais de 3 mil na cidade. Maria, como é chamada por esses migrantes, dedica-se a oferecer-lhes condições sociais dignas. "Essas pessoas são corajosas, estão lutando por uma vida melhor. Elas nos ensinam a ter esperança", justifica.
Eis a entrevista
Qual a origem do Centro de Atendimento ao Migrante (CAM)?
O CAM está ligado à Associação Educadora São Carlos, da congregação das Irmãs Scalabrinianas, que tem essa missão, esse carisma, de trabalhar com a questão migratória. Ele foi fundado em 1984 com o intuito de ajudar no acolhimento e acompanhamento dos migrantes. Naquela época havia muitos migrantes internos, do Estado, que vinham dos Campos de Cima da Serra devido às ofertas de emprego em indústrias daqui. Desde então tivemos diferentes fluxos migratórios. Nós temos uma herança carismática, deixada pela Madre Assunta Marchetti, co-fundadora da congregação. Ela deixou a Itália em 1885, deixou tudo o que tinha lá, e chegou a São Paulo, onde começou a atender crianças órfãos cujos pais italianos morriam durante a viagem ao Brasil. Quando ela chegou a Caxias, atendeu a famílias pobres, fazendo partos e educando comunidades do interior, onde ia a cavalo. Estamos muito felizes porque ela será beatificada dia 25 de outubro, em São Paulo.
Quais foram os principais ciclos migratórios de Caxias?
Os primeiros migrantes atendidos pelo CAM vieram da região de Vacaria, Bom Jesus, na década de 80. Também houve uma leva de migrantes vizinhos, de cidades como Bento Gonçalves e Flores da Cunha, cujas características não eram tão notadas porque havia esse componente cultural comum. No início dos anos 90 atendemos muitos latinos, do Uruguai, Argentina. A partir de 2000 começa a chegar um pessoal da fronteira, de Uruguaiana, Dom Pedrito, Santana do Livramento, com característica mais regionalizadas. Nos últimos três anos passamos a atender os estrangeiros do Haiti, Senegal e Gana. Nós temos essa característica de atender sob o ponto de vista da assistência social, de trabalhar com políticas públicas, às vezes tencionando o poder público a atender essa população. Mas, além disso, existe um componente subjetivo nessa questão do processo migratório, que é trabalhar a questão dos medos, das incertezas, dos processos depressivos, da saudade e dos processos de integração.
E esse trabalho é ainda mais importante com essas levas de estrangeiros?
Sim. A gente orienta e faz acompanhamento de algumas situações, porque é difícil para o migrante se localizar dentro do seu processo. Não existe hoje um lugar para onde o migrante possa ligar e perguntar sobre a sua situação. Ele tem que saber se o processo dele está vinculado ao Ministério do Trabalho, ou ao Ministério da Justiça, não existe essa clareza. Nossa equipe ficou mais qualificada para atender a esses encaminhamentos mais específicos. Uma coisa bacana é que nos tornamos uma referência na região. Nossa característica é integrar o migrante como protagonistas de seus processos, não é só um fazer por eles, mas com eles. Com os senegaleses, principalmente, foi um aprendizado muito legal, porque a gente sempre colocava na mesa: "a gente está com esse problema, o que vocês sugerem? O problema não é só nosso, o que vocês tem como alternativa?" Com esse processo, a gente deu autonomia a eles, para que não ficassem tão dependentes do CAM. Não é o CAM que dá conta da situação, somos um meio articulador dessa ações, que congrega e articula com outros órgãos e entidades.
Como o CAM administra o preconceito com que esses estrangeiros são tratados?
Acho que aqui temos um trabalho educativo a fazer. As pessoas têm um medo que é irracional, e isso assusta, porque esse medo irracional alimenta a xenofobia. A sociedade tem que equacionar esses medos, tem que ter abertura para acolher esse "novo", deve fazer uma releitura do que a gente tem como questão de identidade, aceitar que talvez Caxias não seja mais uma reprodução da Itália, um reduto italiano. Não estou propondo abrir mão de tudo, das tradições. Aliás, acho uma pena que as novas gerações já não falam mais o dialeto italiano, que é uma riqueza da região. Mas é preciso equacionar isso com as pessoas que estão chegando, e que chegam com o mesmo intuito, em situações muito parecidas como a imigração italiana. O que estamos fazendo hoje, no sentido de acolher, de atender, é muito do que fez Madre Assunta com os primeiros italianos. Aquilo que hoje a sociedade fala dos ganeses, dos senegaleses, é muito do que a sociedade paulistana falava dos imigrantes italianos quando chegaram ao Brasil, de que eram sujos, contaminados, que falavam alto. É isso o que está sendo dito desses migrantes.
Qual é o maior desafio na questão migratória?
Tem um desafio grande que não é só de Caxias ou do Brasil, mas de todo mundo. Estamos diante de uma dilema ético. Para que servem as fronteiras, qual a sua finalidade? Existe, claro, a questão da segurança nacional, da autonomia, mas estamos em um ponto da história que, justamente pela questão da globalização econômica, pela velocidade dos meios de comunicação, pela facilidade de deslocamento que as pessoas têm, deveríamos saber configurar a globalização das pessoas, do ser humano. E nenhum país está completamente preparado para isso. Temos experiências péssimas de países europeus que cada vez mais têm adotado leis migratórias muito restritivas. O Brasil está querendo fazer um caminho diferente. Quanto mais restritivo, mais imigração irregular teremos. Se por um lado o Estado barra, por outro a economia puxa. Hoje, os cidadãos do mundo, seja pela função que exercem, pela profissão, pela postura de vida que adotaram, são os ricos. Existe uma massa que é proibida de circular, que são os pobres. A sociedade burguesa tem aquele pensamento: "eu sou um cidadão do mundo, eu circulo por aí", mas ao mesmo tempo não é capaz de criar seu filho para conviver com esse "diferente", e vai reproduzindo os mesmo preconceitos. Se não soubermos equacionar isso, pior do que uma crise ambiental, teremos uma crise migratória.
Qual o seu maior aprendizado vocacional ao trabalhar com a mobilidade humana?
Estou convicta de que temos de derrubar as fronteiras, porque o ser humano precisa evoluir, precisa dar um passo, um salto qualitativo no sentido das relações humanas. Não existe nada que justifique dizer que o africano tem que ficar na África, e o brasileiro tem que ficar no Brasil. Esse migrantes que estão vindo do Senegal, de Gana, nos ensinam a ter esperança, eles são os grandes profetas, são aqueles que dizem: "eu estou aqui, eu existo".
Foto: Roni Rigon/Agencia RBS
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Religiosa dedica-se à inclusão dos migrantes que chegam a Caxias do Sul - Instituto Humanitas Unisinos - IHU