29 Abril 2014
"Aqueles que lutam pela justiça ambiental apoiam firmemente os processos de descolonização e exercício de soberania impulsionados pelas novas esquerdas na América Latina, mas estamos convictos de que os novos modelos de sociedade devem estar fundados na sustentabilidade em todas suas dimensões, incluindo o respeito à soberania territorial e a diversidade cultural dos povos e comunidades", escreve Eduardo Giesen, engenheiro e lutador sócio-ambientalista do Coletivo Vento Sur e Movimento Amplo de Esquerda, em artigo publicado por Adital, 26-04-2014.
Eis o artigo.
“A natureza ou Pachamama, onde se reproduz e realiza a vida, tem direito a que se respeite integralmente sua existência e a manutenção e regeneração de seus ciclos vitais, estrutura, funções e processos evolutivos.” Art. 71.- Constituição política do Equador.
O desfile de líderes latinoamericanos pela passarela de nossa mudança de comando presidencial - alguns atingem o grau de rockstars, por sua exposição na mídia e o fanatismo de seus seguidores - nos leva a olhá-los com nossa particular inclinação ambientalista ao que está se passando em nossa tão diversa América Latina.
E é que – recordemos - boa parte dos governos emblemáticos atuais surgiram de processos políticos nos quais as problemáticas sócioambientais e territoriais foram centrais, como a ”guerra da água”, com grande protagonismo indígena, na Bolívia (2000), as lutas indígenas e o processo constituinte em Equador (2006-08), a recuperação – por iniciativa popular - da água como bem público (gestão exclusivamente estatal) no Uruguai (2004), a rejeição indígena à mineração no Peru ou as demandas de soberania sobre os recursos naturais na Venezuela e em todos nossos países.
Em alguns casos o discurso oficial tem estado centrado na defesa da natureza, como foi o do Governo boliviano de Evo Morales nas negociações de mudança climática nas Nações Unidas, onde suas posturas ”pachamamistas” e de defesa do Bem Viver como paradigma social o levaram a ficar praticamente isolado, acompanhado só pelas organizações da sociedade civil e os povos indígenas.
No caso do Equador, cuja constituição política é a primeira em reconhecer explicitamente direitos à natureza, o presidente Rafael Correa expressou sua aposta pela sustentabilidade na decisão – mantida durante vários anos - de deixar sob terra as reservas de petróleo no parque Yasuní-ITT (Ishpingo-Tambococha-Tiputini), exigindo ao mundo desenvolvido – principal responsável da mudança climática - uma compensação econômica pelas emissões de carbono evitadas.
Uns mais, outros menos, estes e outros governantes do novo progressismo latinoamericano, acederam ao poder abraçando, junto com os valores tradicionais da esquerda – igualdade e justiça social, soberania nacional e propriedade estatal sobre os recursos estratégicos -, os valores da sustentabilidade e a justiça ambiental – proteção do meio ambiente e a natureza, a biodiversidade e os ecossistemas, respeito à soberania das comunidades locais e povos indígenas sobre seus territórios-, e por isto gozaram do respaldo generalizado do mundo ambientalista e, por verdadeiro, dos povos indígenas.
Mas com o passar do tempo, marcado na América Latina pelas urgências e pressões associadas às necessidades sociais de primeiro ordem, bem como pela incidência de poderosos interesses multinacionais, o ambientalismo dos governos progressistas foi perdendo terreno ante um desenvolvimentismo cada vez mais clássico.
Este mudança, que no caso de Humala, no Peru, é claramente para a direita - opta não só pelo modelo extrativista, senão pela subordinação a interesses privados -, expressou-se em diversos conflitos que enfrentaram os governos com grupos ambientalistas e comunidades indígenas.
Correa tomou a decisão de explodir o petróleo do Yasuni-ITT com o argumento de que aí há ”… dezenas de milhares de milhões de dólares que o povo equatoriano precisa com urgência.”
No caso boliviano, o conflito ”emblemático” foi o derivado da decisão governamental de construir uma estrada atravessando o Território Indígena Parque Nacional Isiboro Sécure (TIPNIS), com os argumentos da geopolítica e a integração física do país.
Num caso diferente das novas lideranças latinoamericanos, o governo uruguaio de Pepe Mujica, tão aplaudido mundialmente por sua austeridade pessoal e o impulso e aprovação – num país eminentemente secular e onde a igreja não tem peso político- de leis vanguardistas em matérias de diversidade sexual (casal homossexual), reprodução (legalização do aborto) e drogas (legalização da maconha), gerou as condições para a expansão da indústria florestal (plantações de pinheiros e eucaliptos e plantas de celulose), o monocultivo de soja (principalmente transgênica) e a mega-mineração. Todas estas atividades econômicas, a parte de seu enorme impacto ambiental, são – como bem sabemos em Chile - intensamente concentradoras de riqueza.
Estes e outros conflitos provocaram o afastamento gradual – às vezes, brusco - dos movimentos sócioambientais dos governos, os que não pouparam epítetos – e até ações legais - na contramão deles.
Para Correa, ”estamos negociando com o ecologismo infantil, enaltecido nas sombras agora aparece, mas que tem estado manejando estes processos” … ”os que nunca ganharam meia eleição queriam proibir, impedir que este país aproveite seus recursos naturais não renováveis”. Similar atitude teve Evo Morales, que se referiu ao ambientalismo como ”uma nova forma de colonialismo”, e Pepe Mujica se referiu como ”terrorismo ambiental” às alertas ambientalistas na contramão da mega-mineração, que qualifica de ”fantasiosas”.
Lamentavelmente, estes governos de esquerda não souberam distinguir dentro do ambientalismo entre quem – da direita- mediante a mercantilização e privatização do ambiente e a natureza, efetivamente representam posturas colonialistas que afetam a soberania nacional e, ainda mais, das comunidades; e aqueles que – da esquerda - demandamos o respeito a estas soberanias e aos direitos dos povos e comunidades. Também lamentamos que, sobretudo na zona andina, os governos estejam caindo no conservador argumento da necessidade urgente de ”fazer caixa”, da maneira mais rápida e fácil, a partir da exploração em massa de recursos naturais e a expansão da fronteira agrícola, para assegurar as necessidades básicas da população.
Bem poderia ser que estes conflitos fossem excepcionais e seguramente em sua visualização e avaliação pública internacional primou a capacidade comunicacional já seja dos governos ou das organizações ambientalistas. Mas, com tudo, é importante notar que estes governos também não foram capazes de expressar com clareza qual é o modelo alternativo de sociedade ao que aspiram; como se expressa em termos concretos e como se distingue de um modelo desenvolvimentista tradicional, a opção do respeito à natureza, a Pachamama, e o Bem Viver, além dos artigos na Constituição e as frases para a galeria global.
Aqueles que lutam pela justiça ambiental apoiam firmemente os processos de descolonização e exercício de soberania impulsionados pelas novas esquerdas na América Latina, mas estamos convictos de que os novos modelos de sociedade devem estar fundados na sustentabilidade em todas suas dimensões, incluindo o respeito à soberania territorial e a diversidade cultural dos povos e comunidades.
E, consistentemente, cremos que a transição para estes sistemas de vida, que genericamente poderíamos chamar -como os ancestrais andinos- o Bem Viver, pode e deve realizar-se sob estes mesmos valores de justiça social e ambiental e de respeito aos direitos da natureza, à que pertencemos.
Veja também:
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A dívida sócioambiental das novas esquerdas latinoamericanas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU