09 Abril 2014
"Já há tempos a sociedade brasileira reclama uma regulação da propaganda invasiva que alcança crianças até mesmo dentro de casa, através da televisão, do rádio, da internet e de outros meios de comunicação. Também nas escolas e em outros recintos por elas frequentados está a propaganda de tocaia à espera dos imaturos para se apossar de sua atenção", escreve José de Souza Martins, sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP, autor de A Sociologia como Aventura (Contexto), em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, 06-04-2014.
Eis o artigo.
Na semana passada, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente aprovou resolução que proíbe publicidade voltada para menores de idade no Brasil. O texto está na Secretaria de Direitos Humanos e deve ser publicado nos próximos dias no Diário Oficial.
Já há tempos a sociedade brasileira reclama uma regulação da propaganda invasiva que alcança crianças até mesmo dentro de casa, através da televisão, do rádio, da internet e de outros meios de comunicação. Também nas escolas e em outros recintos por elas frequentados está a propaganda de tocaia à espera dos imaturos para se apossar de sua atenção. Nos últimos 50 anos, os brasileiros ficaram extensamente expostos a todos os recursos invasivos criados e difundidos pelo impressionante volume de instrumentos e meios de difusão de informações. Instrumentos de uma verdadeira poluição das consciências.
A geração dos avós ainda é aquela que mal teve acesso ao rádio como utilíssimo instrumento de multiplicação das possibilidades de informação e conhecimento. Ainda se lembra das conversas domésticas, dos bate-papos da esquina, da porta de casa. Com o rádio, porém, muita informação inócua fluiu pelo éter, como então se dizia, mas muita coisa boa também, arrastando consigo para dentro da cabeça do ouvinte a propaganda do patrocinador. Lembro com saudade da Mensagem Musical da Itália, programa transmitido pela Rádio Gazeta. Lembro nitidamente da propaganda dos móveis de Anselmo Cerello que o patrocinavam. Mas não me lembro de nenhuma das belas músicas cantadas por Tito Schipa, Beniamino Gigli, Caruso e outros mais. Foi-se o essencial e ficou o supérfluo.
Na lixeira da memória restou um elenco de informações inúteis lá implantadas como parasitas: "Melhoral, Melhoral, é melhor e não faz mal!", que diz tudo e não diz nada. Ou, "Pílulas de vida do dr. Ross, fazem bem ao fígado de todos nós!". E mesmo "Tosse, bronquite, rouquidão - Xarope São João!". Parece que todo mundo vivia doente.
Eu fazia um esforço brutal para decorar a tabuada e evitar as reguadas da professora quando me atrapalhava para responder quanto é quatro vezes quatro. Sobretudo porque achava a palavra dezesseis muito mais difícil do que uma quadrinha que, mal acabara de ser alfabetizado, decorei em meus primeiros chacoalhados passeios de bonde: "Veja, ilustre passageiro, o belo tipo faceiro que o senhor tem a seu lado. Mas, no entanto, acredite: quase morreu de bronquite, salvou-o o Rhum Creosotado!". A rima e a métrica, roubadas da verdadeira poesia, tornavam irremediável a fixação dos versos, principalmente por crianças como eu. O Rhum Creosotado ocupando o lugar do dezesseis e das monótonas recitações da tabuada, roubando minha inteligência da preciosa e útil matemática em nome de versinhos inúteis de um remédio que nunca tomei nem tomaria. No entanto, estou eu aqui a repeti-los quase 70 anos depois.
Com a televisão chuviscosa e em preto e branco, no meio de um lixo publicitário imenso, sobreviveu a bela música dos Cobertores Parahyba: "Já é hora de dormir, não espere mamãe mandar. Um bom sono pra você e um alegre despertar.". Já ouvi mães de agora cantando a musiquinha como canção de ninar para seus filhos, de quando também elas crianças fixaram a música e os versos. Lá se foram o Boi da Cara Preta, o Nana Neném e outras mais.
Nos últimos anos, as coisas deixaram de acontecer aleatoriamente. As famílias se tornaram reféns da TV, o aparelho até certo momento volumoso ocupando o lugar do antigo e medonho elefante vermelho de louça, que afastava o mau-olhado, ou mesmo o santo da devoção doméstica, deslocado para um canto discreto da casa. As crianças se tornaram os alvos e as vítimas prediletas da guerra comercial, passaram a ser utilizadas como quinta-colunas e cúmplices da propaganda para influenciar os pais na sua nova cidadania da sociedade de consumo, do consumidor impotente e cativo, do cidadão de coisa alguma e de lugar nenhum.
Por unanimidade, o Conanda - Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, constituído por entidades da sociedade civil e por ministérios do governo federal, acaba de aprovar uma resolução que terá força de lei. Proíbe "o direcionamento à criança de anúncios impressos, comerciais televisivos, spots de rádio, banners e sites, embalagens, promoções, merchandisings, ações em shows e apresentações e nos pontos de venda".
O documento proíbe, ainda, "a veiculação de propaganda no interior de creches e escolas de educação infantil e fundamental, inclusive nos materiais didáticos e uniformes escolares". É uma verdadeira lei áurea da mente infantil para que fique disponível ao que interessa. E que também veta os efeitos distorcidamente formadores da personalidade dos imaturos com a intromissão de um imaginário mercantil e coisificador, na coisificação muito semelhante ao do cativeiro, que transformava gente em coisa.
A resolução será ineficaz se não contar com a vigilância e a ação supletiva da família e dos educadores, como coadjuvantes de uma ação coletiva no sentido de restituir o direito de educar a quem deve e pode fazê-lo. Sempre haverá quem não pretenda abrir mão dos lucros indevidos propiciados pela colonização da atenção e da mente das crianças.
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Lei da mente livre - Instituto Humanitas Unisinos - IHU