Por: Jonas | 10 Abril 2014
Trata-se do estado de vida de Bento XVI após a renúncia. Já não é o vigário de Cristo, mas tampouco voltou à vida privada. É “Papa emérito” e atua como tal: uma novidade sem precedentes na história da Igreja.
A reportagem é de Sandro Magister, publicada por Chiesa, 07-04-2014. A tradução é do Cepat.
Na medida em que passam os meses é cada vez mais manifesta a novidade da renúncia realizada por Bento XVI.
Antes dele, outros Papas renunciaram: o último, Gregório XII, em 1415. Contudo, Joseph Ratzinger foi o primeiro que desejou ser chamado de “Papa emérito” e continuar usando o hábito branco “no recinto de São Pedro”, desconcertando os canonistas e fazendo temer que se instaure na Igreja uma diarquia de dois Papas:
É verdade que Ratzinger já não tem os poderes de pontífice da Igreja universal: despojou-se deles exercendo, pela última vez e em grau supremo, precisamente essa sua potestade de “vicarius Christi”. Porém, também não voltou a ser o que era antes de ser papa. Depois destes dois “corpos”, agora tem um terceiro que não tem precedentes na história da Igreja. É o novo “corpo”, o novo estado de vida que ele vê unido a esse compromisso “para sempre” que assumiu quando aceitou sua eleição como sucessor de Pedro.
Explicou isso em sua última audiência geral, no dia 27 de fevereiro de 2013, vigília de sua renúncia ao papado:
“Permita-me voltar novamente ao dia 19 de abril de 2005. A seriedade da decisão também reside precisamente no fato de que a partir daquele momento me comprometia sempre e para sempre com o Senhor. Sempre – quem assume o ministério petrino já não tem nenhuma privacidade. Pertence sempre e totalmente a todos, a toda a Igreja. Sua vida, por assim dizer, decorre despojada da dimensão privada [...]”.
“O ‘sempre’ é também um ‘para sempre’ – já não existe uma volta ao reservado. Minha decisão de renunciar ao exercício ativo do ministério não revoga isto. Não volto à vida privada, a uma vida de viagens, encontros, recepções, conferências, etc. Não abandono a cruz, mas permaneço de uma nova maneira junto ao Senhor Crucificado. Já não tenho a potestade do ofício para o governo da Igreja, mas permaneço no serviço da oração, por assim dizer, no recinto de São Pedro. Nisso, São Bento, cujo nome carrego como Papa, será um grande exemplo para mim. Ele nos mostrou o caminho para uma vida que, ativa ou passiva, pertence totalmente à obra de Deus”.
Para iluminar melhor a novidade do gesto de Bento XVI, Valerio Gigliotti, docente de história de direito europeu, na Universidade de Turim, e especialista nas relações entre Estado e Igreja, escreveu um ensaio que surge nesses dias na Itália: V. Gigliotti, “La tiara deposta. A renúncia ao papato nella storia del diritto e della Chiesa”, Leo S. Olschki Editore, Firenze, 2013, PP. XL-468.
Fonte: http://goo.gl/gBKkri |
É a primeira vez que se analisa em um ensaio científico, de cativante leitura, a renúncia ao papado em diferentes perfis: histórico, jurídico, teológico e literário, no espaço de dois mil anos.
O livro parte dos primeiros pressupostos casos de renúncias papais, alguns dos quais eram pouco mais que legendários, mas que gozaram de grande popularidade na Idade Média.
Prossegue com uma profunda reconstrução da renúncia mais célebre, a de Celestino V, canonizado em 1313, exatamente setecentos anos antes da “renuntiatio” de Bento XVI.
Continua com as renúncias papais espontâneas, acordadas ou impostas no período do grande e do pequeno cisma do Ocidente, entre os séculos XIV e XV, quando a Igreja se dividiu entre Papas e antipapas.
Chega às hipóteses de renúncia examinadas, e depois descartadas, dos quatro Papas do século XX: Pio XII, João XXIII, Paulo VI e João Paulo II.
E finalmente chega ao grande gesto de Bento XVI, perfeitamente em linha com a tradição, mas também profundamente inovador, que o professor Gigliotti sintetizou assim, nas vésperas do lançamento de seu livro, em um artigo para “L`Osservatore Romano”, do dia 28 de fevereiro, primeiro aniversário da renúncia:
“A renúncia de Bento XVI consolida a tradição com a atualidade em uma perspectiva totalmente nova, que funda suas raízes na mística medieval, de Mestre Eckhart a Sandaeus, passando pelo modelo de renúncia franciscano”.
“A já clássica e feliz intuição de Kantorowicz sobre a natureza gemina, dupla, da pessoa do Sumo Pontífice, homem e vigário de Cristo, enriquece-se agora com a renúncia de Bento XVI com um terceiro componente, o do prosseguimento do serviço a Igreja também após o ato de renúncia. Não somente o corpo político e corpo místico do Papa, mas também o corpo ministerial, que assume a própria identidade e responsabilidade, precisamente no momento da renúncia: são os três corpos do Papa”.
“A decisão de Joseph Ratzinger em permanecer perto do Senhor ‘no recinto de São Pedro’ como ‘romano pontífice emérito’ legitima uma concepção nova, jurídica e eclesiológica, que é preciso conferir à ‘renuntiatio papae’”.
“Abre-se uma verdadeira e nova ministerialidade que assume, na figura do Papa emérito, os traços de uma autêntica mística do serviço. A perspectiva, se bem verificada, é antes cristológica do que histórica ou jurídica. É a regeneração institucional da ‘kenosis’, a novidade na continuidade, um novo início”.
Bento XVI, em seu último Ângelus como Papa, no dia 24 de fevereiro de 2013, segundo domingo da Quaresma, comentando o Evangelho da Transfiguração comparou a nova vida que lhe esperava após a renúncia com o “subir ao monte”.
“Queridos irmãos e irmãs, esta Palavra de Deus a sinto dirigida a mim, de modo especial, neste momento de minha vida. O Senhor me chama para ‘subir ao monte’, para me dedicar ainda mais à oração e à meditação. Contudo, isto não significa abandonar a Igreja, e mais, se Deus me pede isto é precisamente para que eu possa continuar servindo-a com a mesma entrega e o mesmo amor com o que procurei atuar até agora, mas de uma forma em maior acordo com a minha idade e as minhas forças”.
No monte Tabor, Jesus conversava sobre seu “êxodo” com Moisés e com Elias. Conversava também com Pedro e os outros dois apóstolos que havia pedido para que lhe acompanhassem.
Do mesmo modo, para o Papa emérito Ratzinger hoje é tempo não apenas de contemplação, mas também de conversação. Seu sucessor Francisco confirmou: a “sabedoria” e os “conselhos” do Papa emérito – disse recentemente em uma entrevista – “dão força à família” da Igreja.
Em alguns casos, Bento XVI falou abertamente para todos. Por exemplo, nas poucas e brilhantes páginas com as quais esclareceu aspectos do pontificado de João Paulo II que, segundo ele, é preciso estudar e também assimilar hoje.
Em outros casos, aconselhou ao seu sucessor apenas de maneira reservada. Por exemplo, após a publicação da entrevista de Francisco, no último verão, à revista “La Civiltà Cattolica”.
Jorge Mario Bergoglio enviou um exemplar da entrevista para Ratzinger, pedindo-lhe para que escrevesse algum comentário na página em branco entre o título e o texto.
No entanto, o Papa emérito fez mais do que isso: encheu a página e mais outras quatro que enviou a Francisco, excessivas para se pensar que escreveu apenas felicitações.
No último dia 15 de março, o arcebispo Georg Gänswein, prefeito da Casa Pontifícia e secretário do Papa emérito, disse ao canal de televisão alemão ZDF:
“Bento XVI aceitou o pedido de seu sucessor fazendo algumas reflexões e também algumas observações sobre determinados comentários ou questões que considerava que, talvez, poderia se desenvolver posteriormente, em outra ocasião. Logicamente, não posso lhes dizer sobre quais coisas”.
Certamente, com a renúncia de Ratzinger a figura do Papa emérito entrou pela primeira vez na história. E, dia após dia, contribui também para “fazer” história, em uma relação dialética sem precedentes com o Papa no cargo.
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O terceiro corpo do Papa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU