Por: Jonas | 04 Abril 2014
O cardeal O’Malley (na foto, dando comunhão a migrantes do outro lado do muro da fronteira) presidiu uma missa pelos imigrantes que morreram no deserto de Arizona, procurando chegar aos Estados Unidos. Abaixo, reproduzimos a homilia proferida pelo cardeal, publicada por Tierras de América, 03-04-2014. A tradução é do Cepat.
Eis a homilia.
Fonte: http://goo.gl/Gqvgga |
O Evangelho de hoje começa com um doutor da lei que procura colocar Jesus à prova. Ele é um especialista em leis, mas sente hostilidade a Jesus; parece ansioso em saber o que se deve fazer para alcançar a vida eterna, mas sua verdadeira intenção é surpreender publicamente Jesus em algo incorreto. Jesus responde a sua pergunta com outra: “O que está escrito na lei?”. E o doutor da lei lhe responde longamente, citando o mandamento mais importante: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo.
Jesus diz: “Respondeu bem. Faça isso e viverás”. O amor a Deus e o amor ao próximo são a chave para se ter uma vida boa. E o ensinamento mais admirável do Evangelho é precisamente o quanto o amor a Deus e o amor ao próximo estão intimamente relacionados entre si. Contudo, o doutor da lei fica um pouco envergonhado e por isso formula outra pergunta para parecer inteligente e sagaz. E a pergunta é importante: “Quem é meu próximo?” Esta magnífica pergunta oferece a Jesus a oportunidade para nos presentear com uma das maiores parábolas do Novo Testamento, a parábola do Bom Samaritano.
Nos tempos de Jesus, o povo eleito nunca utilizava a expressão “bom samaritano”. Parecia contraditória. Como poderia alguém ser samaritano e ao mesmo tempo bom? Os samaritanos eram desprezados, estrangeiros, heréticos e excluídos. Ao contrário, Jesus mostra que esse estrangeiro, esse samaritano, torna-se o protagonista, o herói que salva a um dos filhos legítimos desta terra, que não foi ajudado por seus compatriotas ou correligionários, mas precisamente por um estrangeiro, um estranho, um samaritano. Quem é meu próximo? Jesus mudou os termos da pergunta passando do âmbito da obrigação legal (quem merece meu amor?) ao âmbito da doação (de quem eu posso ser próximo?). E, dessa maneira, o desprezado samaritano se torna exemplo moral.
Jesus está mostrando que o povo, que pertence à comunidade da aliança de Deus, deve viver um amor que não se detém na amizade ou na proximidade, mas um amor que tem um respiro universal e que não busca recompensas. A função das parábolas pode ser instruir ou provocar um choque. Esta parábola propõe sacudir a imaginação das pessoas, para provocar, para desafiar. Os critérios acostumados para determinar o valor de uma pessoa são substituídos por outros, fundados em uma atenção desinteressada às necessidades dos demais, seja qual for o lugar onde se encontre. Viemos aqui hoje, ao deserto, para estar próximos e para encontrar nosso próximo em cada uma das pessoas que sofrem e que arriscam sua vida e que, às vezes, perdem-na no deserto. O Papa Francisco nos anima para irmos às periferias procurar o nosso próximo nos lugares de dor e de obscuridade. Estamos aqui para descobrir nossa identidade de filhos de Deus, que por sua vez nos faz descobrir quem é o nosso próximo, quem é o nosso irmão e nossa irmã.
Como nação de imigrantes devemos nos sentir identificados com estes outros imigrantes que procuram entrar em nosso país. Os Estados Unidos são uma nação de imigrantes. Aqui somente os nativos americanos não chegaram de alguma outra parte. Então, a Palavra de Deus, hoje, recorda-nos que Deus quer justiça para o órfão e a viúva, e que Deus ama o estrangeiro, o estranho. E nos lembra de que nós também fomos estrangeiros no Egito. Em razão da carestia da batata e a opressão política, minha gente chegou aqui, vindo da Irlanda. Milhares e milhares de pessoas morriam de fome. Nos barcos-cemitérios que transportavam os imigrantes irlandeses, um terço dos passageiros morria de fome. Os tubarões seguiam os barcos esperando devorar os corpos que “sepultavam” no mar. Suspeito que apenas os africanos que eram trazidos como escravos em barcos tiveram uma viagem pior. Frank McCourt escreveu um livro intitulado “The Irish and how they got that way”. Em uma das cenas, os imigrantes irlandeses recordam: “Viemos a América porque pensávamos que as ruas estavam calçadas em ouro. Quando chegamos descobrimos que as ruas não apenas não estavam calçadas em ouro, como nem sequer estavam calçadas; e também descobrimos que éramos nós os que deviam calçá-las”.
O trabalho duro e o sacrifício de tantos imigrantes é o segredo do êxito deste país. Apesar da xenofobia que uma parte da população proclama, nossos imigrantes contribuíram poderosamente para a economia e o bem-estar dos Estados Unidos. Aqui, no deserto de Arizona, viemos chorar os inumeráveis imigrantes que arriscam sua vida nas mãos dos coiotes (os traficantes de pessoas) e das forças da natureza para vir aos Estados Unidos. Todos os anos aparecem 400 cadáveres aqui na fronteira, corpos de homens, mulheres e crianças que procuravam entrar nos Estados Unidos. E estes são apenas os corpos que são encontrados. Desde que cruzar a fronteira se tornou cada vez mais difícil, esta gente começou a enfrentar maiores riscos e morrem mais pessoas.
No ano passado, aproximadamente 25.000 crianças, a maioria da América Central, chegaram aos Estados Unidos sem estar acompanhadas por algum adulto. Dezenas de milhares de famílias ficaram divididas pela legislação migratória. Mais de 10 milhões de imigrantes sem documentação estão expostos à exploração e impossibilidade de aderir aos serviços humanos essenciais, e vivem constantemente acuados pelo medo. Contribuem para a nossa economia com seu duro trabalho, muitas vezes contribuem com milhões de dólares anuais para os fundos de previdência e os programas de assistência sanitária, mas nunca se verão beneficiados (...).
Nosso país obteve benefícios de muitos grupos que tiveram a coragem e a força de vir a América. Vieram fugindo de condições terríveis e trazendo consigo o sonho de uma vida melhor para seus filhos. Entre eles havia alguns dos mais trabalhadores, ambiciosos e empreendedores cidadãos de seus próprios países e trouxeram enormes energias e boa vontade em seu novo país. Seu trabalho duro e seus sacrifícios tornaram esta nação grande. Muitas vezes, estes imigrantes tiveram que enfrentar as suspeitas e a discriminação. Dos irlandeses se dizia: “não precisam pedir”; nossa etnia e nossa religião nos tornavam indesejáveis. Porém, o melhor de América não é o espírito santarrão e xenófobo dos “Know Nothings”, mas a generosa acolhida do Novo Colosso, a mulher poderosa com uma Torá na mão, a Estátua da Liberdade, a Mãe dos exilados que proclama para o mundo: “Guarde-os terras antigas, vossa pomba legendária! (...) Dá-me vossos filhos exaustos, vossos pobres, vossas massas amontoadas ansiando respirar em liberdade, o desamparado desejo de vossas povoadas praias. Envia-me aos despossuídos, açoitados pela tempestade. Eu levanto minha tocha para iluminar a porta dourada”. (Emma Lazarus).
Vigiemos para que esta tocha continue inflamando luminosa.
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Migrante entre os migrantes. A homilia do cardeal O’Malley - Instituto Humanitas Unisinos - IHU