04 Abril 2014
A curta peregrinação através das areias do deserto parou onde tinha que parar: na cerca de 6 metros de altura que separa a localidade de Nogales (no Arizona) do México. E aí o cardeal Sean P. O’Malley e outros oito bispos católicos americanos fizeram o que os padres e bispos fazem sempre: rezaram uma missa.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada pelo jornal The Boston Globe, 02-04-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Mas desta vez foi uma missa diferente. Esta congregação incomum se reuniu nos dois lados da cerca; aproximadamente 500 pessoas no lado dos EUA e 100, ou mais, no outro lado. Durante a missa, as hóstias foram passadas através da cerca às mãos daqueles que tanto desejam vir para o norte, em direção à esperança mas também, para muitos imigrantes que cruzam as fronteiras – disse O’Malley –, em direção ao perigo e à morte.
“O deserto está marcado com as sepulturas de milhares de pessoas”, O’Malley disse durante a missa na terça-feira pela manhã. Fazendo memória às 6 mil pessoas, segundo estimativas, que perderam a vida tentando fazer a travessia durante os últimos 15 anos, o religioso pediu pela reforma completa das leis de imigração.
Foto: Missa na fronteira dos EUA com o México |
“Estamos aqui hoje para dizer que estas pessoas não foram esquecidas”, disse O’Malley durante o encontro.
Com esta iniciativa os bispos quiseram evocar o exemplo do Papa Francisco, que viajou no mês de julho à ilha italiana de Lampedusa, ponto de chegada para migrantes da África e do Oriente Médio que buscam entrar na Europa. O pontífice criticou a “globalização da indiferença” para com os imigrantes à época e lançou uma coroa de flores no mar para lembrar as 20 mil pessoas que morreram tentando atravessar o Mediterrâneo.
Neste espírito, O’Malley caminhou pelo deserto do Arizona, traçando as pegadas deixadas pelas pessoas que tentaram entrar nos Estados Unidos. Ele então convidou os oito prelados que compõem a Comissão sobre Migração da Conferência dos Bispos Católicos dos EUA para lançar uma coroa de flores na fronteira em memória das vidas perdidas.
O’Malley, que fala fluentemente espanhol e que tem uma longa história junto de imigrantes latinos, disse ao The Globe que os bispos querem uma reforma tendo em vista a cidadania. Enquanto isso, eles estão pedindo uma parada para aquilo que descrevem como um “sistema desumano de deportação e detenção”, o qual divide famílias muitas vezes.
O prelado de Boston falou que reconhece a defesa dos imigrantes como uma prioridade para a Igreja Católica na mesma proporção de sua luta contra o aborto.
“Este é um outro assunto em favor da vida”, disse o cardeal ao The Globe. Falou não acreditar que algum católico que leve a sério os ensinamentos da igreja possa “apoiar o status quo” da política de imigração.
A viagem de três dias à fronteira propiciou a O’Malley e aos outros bispos uma formação sobre as realidades de vida dos migrantes sem documentos.
No dia 31 de março, os bispos visitaram um sopão (um refeitório social) e um centro para migrantes recém-deportados chamado Iniciativa da Fronteira Kino (“Kino Border Initiative”, em inglês), localizado no México próximo à fronteira de Nogales. Nomeado assim em homenagem a um santo jesuíta do século XVII que trabalhou como missionário na região, o local é administrado em conjunto por jesuítas dos EUA e do México, bem como por uma comunidade mexicana de freiras chamadas Irmãs Missionárias da Eucaristia.
Durante uma refeição na parte da tarde, os bispos serviram pratos de arroz, feijão e salada a cerca de 60 migrantes, misturados entre mexicanos e centro-americanos. Em seguida, sentaram-se à mesa para ouvirem suas histórias.
Um voluntário que pediu para não ser identificado por medo de represálias explicou que gangues criminosas que se aproveitam de imigrantes trabalham, mais ou menos, abertamente na região.
“Nas colinas ali em frente, eles têm garotos de 12 a 14 anos com walkie-talkies”, disse, apontando para o outro lado da rua. “Eles perceberão a presença de um grupo migrantes andando pela fronteira; sem seguida, capangas vão aparecer exigindo destas pessoas dinheiro, celulares, tudo o que elas tiverem”.
O voluntário disse que, apesar dos riscos, este serviço junto aos migrantes deportados “é o melhor trabalho na Igreja no qual já trabalhei”.
“Para mim, isto é o que significa a Eucaristia”, falou, referindo-se à missa católica. Estas pessoas vivem maus tratos e horríveis abusos, mas durante uma hora do dia, aqui, elas estão todas juntas e seguras”.
Os bispos também se encontraram com um pequeno grupo de mulheres deportadas, que concordaram em contar suas histórias sob a condição de não serem identificadas. Elas estavam morando num abrigo administrado pela Iniciativa da Fronteira Kino.
Uma mexicana disse que viveu no Fênix durante 40 anos, tendo cruzado a fronteira com sua filha após que um coiote – guia fronteiriço pago – as abandonou porque elas não conseguiam andar rápido o suficiente. Ela acabou voltando ao México para visitar familiares, informou, quando foi presa e deportada ao tentar voltar aos EUA para se reunir com sua filha.
As seis semanas que ela passou num centro de detenção foram “os piores momentos de minha vida”.
Uma mulher de Honduras contou uma história angustiante de fuga de seu país, porque um homem com quem se encontrava a ameaçou matar ela e sua filha de 10 anos. Após ter certeza de que sua filha estava segura num internato, rumou para os EUA já que sua mãe vive neste país.
Diz que foi sequestrada e mantida como refém junto de uma prima que estava grávida e, embora conseguiram escapar, a prima somente conseguiu chegar à Cidade do México antes que a gravidez e a deterioração de sua saúde a impedissem de ir adiante. Mais tarde, disse que evitou ser estuprada alegando estar sentindo dores de estômago relacionadas a uma suposta gravidez, mas disse que um homem foi levado embora e nunca mais foi visto.
Apesar de tudo isso, ela diz que ainda planeja ir para os Estados Unidos.
“Com a ajuda de Deus, quero cruzar a fronteira para ir ajudar minha mãe”, falou.
Os bispos também se encontraram com um grupo de defesa chamado Coletivo de Justiça da Fronteira (“Border Justice Collective”, em inglês), dedicado a frear o que consideram um uso excessivo de força por agentes da Patrulha da Fronteira americana. O grupo incluía parentes de um adolescente de 16 anos mexicano chamado José Antonio Elena Rodriguez, que foi morto a tiros em outubro de 2012.
“Precisamos de alguém com mais poderes do que nós temos para ir às autoridades americanas e dizer-lhes que isso tem que parar”, disse Grabriela Lopez, tia do adolescente morto. “Queremos justiça”.
Durante uma conferência de imprensa após a missa de terça-feira, uma menina de 13 anos de idade chamada Fatima Rojas interrompeu a apresentação dos bispos e pediu para ser ouvida. Enxugando as lágrimas, disse que sua irmã de 20 anos Rosy está detida num centro, na cidade de Eloy (Arizona), há seis meses, e pediu a ajuda dos bispos para libertá-la.
É por experiências como estas, segundo O’Malley, que a Igreja Católica reconhece a reforma da imigração como uma prioridade moral.
“Precisamos resgatar esta questão da política”, declarou o religioso. “Não se trata de estatísticas ou política; trata-se de pessoas”.
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Cardeal O’Malley lidera os bispos na visita à fronteira com o México - Instituto Humanitas Unisinos - IHU