21 Março 2014
"Todos os dias morre pelo menos um anônimo em algum ponto dessa cidade, que era tranquila, quase bucólica até poucos anos atrás, antes do início das obras de Belo Monte", afirma Rodolfo Salm, professor da Universidade Federal do Pará, em artigo publicado no sítio Correio da Cidadania, 18-03-2014.
Eis o artigo.
Morreu na sexta-feira, 7 de março, de bicicleta, atropelada por um caminhão-caçamba no centro da cidade, a minha aluna Aline Flor, estudante de Biologia na Universidade Federal do Pará, em Altamira. A tragédia foi especialmente marcante pela violência: seu corpo foi destruído, com morte instantânea, por ter acontecido no principal cruzamento da cidade e por se tratar de uma estudante doce e gentil, como seu nome sugere, querida por todos na universidade.
Mas, infelizmente, não se trata de uma exceção: todos os dias morre pelo menos um anônimo em algum ponto dessa cidade, que era tranquila, quase bucólica até poucos anos atrás, antes do início das obras de Belo Monte.
Em minhas aulas de Ecologia, falando sobre os efeitos das barragens, eu preferiria sem dúvida tratar de questões biologicamente instigantes, como o efeito das grandes enchentes exacerbadas pela construção de hidrelétricas, como aquela que se observa neste momento no rio Madeira, sobre a biodiversidade e estabilidade dos seus lagos periféricos.
Mas, enumerando os impactos das barragens, eu e meus alunos inevitavelmente nos deparamos com questões de outra natureza, como o impacto das obras sobre os preços dos alimentos e aluguéis e sobre a violência do trânsito na cidade.
Sempre que o assunto vem à tona, são muitos os depoimentos de como a cidade se tornou perigosa para pedestres e ciclistas depois do início das obras. Invariavelmente, todos assumem expressões de genuína preocupação e, enquanto escrevo, quase vejo Aline, em meio a outros estudantes, externando sua preocupação.
Eu, que até pouco tempo me orgulhava de ter um meio de transporte “verde”, sustentável, aposentei minha bicicleta por causa do trânsito caótico. Se pudesse, Aline certamente também o teria feito, mas dependia dela para ir do posto de gasolina onde trabalhava até o campus da universidade. E morreu atropelada no trajeto.
O aumento no número de mortes no trânsito de Altamira está claramente associado à construção de Belo Monte, mas defensores da obra, nesse caso específico se eximem de qualquer responsabilidade, pois o caminhão que matou Aline Flor era de uma empresa contratada pela prefeitura.
Os barrageiros culparão então a administração do município. Se o trânsito na cidade subitamente ficou caótico por causa da barragem e se as condicionantes relacionadas à infraestrutura da cidade foram ignoradas, também não é problema deles. A prefeitura por sua vez vai culpar a tal empresa.
A Justiça, talvez, culpe o motorista bêbado, segundo testemunhas e fama pela cidade. Ou nem isso, porque a Polícia Civil se recusou a fazer um boletim de ocorrência com o depoimento das colegas de Aline. Finalmente, os mais cínicos ainda culparão a vítima, por ter tentado aproveitar um sinal amarelo.
Eu culpo a hidrelétrica de Belo Monte. A questão do sinal amarelo é irrelevante. No meio da cidade, um veículo com aquele poder de destruição tem que estar sempre pronto para parar diante de qualquer um que surja em sua frente, especialmente diante de um sinal amarelo.
Como uma criança atrás de uma bola ou o que for. Do motorista, eu queria saber: por que tanta pressa em uma cidade que se atravessa de ponta a ponta em menos de meia hora a 20 km/h? Ele certamente não recebe nenhuma orientação ou fiscalização decente do poder público.
A cidade, antigamente um paraíso inocente à beira do Xingu, hoje está lotada de caminhões e ônibus trafegando em alta velocidade, como se estivessem nas autopistas de Belo Horizonte, São Paulo ou Rio, onde seus motoristas foram “treinados”.
Culpo os governos do PT, que apostaram tudo nesse projeto alucinado, apesar de as discussões virem do tempo de FHC, ou antes ainda, do Sarney, na verdade dos governos militares. Culpo Lula, que, em sua visita a Altamira no último ano do seu segundo mandato, tive o prazer de vaiar, e ainda mais Dilma, grande idealizadora da concretização do projeto quando ministra das Minas e Energia de Lula.
E também a elite local, que faz muitos anos se aliou aos barrageiros predadores itinerantes, entregando a eles a cidade em troca de migalhas. E a grande parcela do povo brasileiro que se deixa ludibriar por uma imprensa vendida para defender a todo custo a ideia de que as hidrelétricas seriam uma “energia limpa”. É suja, e de sangue, como se pode ver. E também emite muito carbono, como o petróleo, antes que eu me esqueça.
Culpo gente que lê e corrobora um lixo como o artigo do jornalista Agostinho Vieira, que chamou a questão do cumprimento ou não das condicionantes de Belo Monte uma “falsa polêmica”, no Globo de 26/12/2013. “O mais recente debate em Belo Monte gira em torno das condicionantes. As obras da usina estariam andando mais rapidamente do que as compensações ambientais e sociais. Condicionantes são condições, exigências, contrapartidas. Se elas não forem entregues, a usina não entra em funcionamento no início de 2015, como está previsto. Um cenário ruim para os empresários, os moradores e o governo”. Aí estaria a falsa polêmica.
E quem morrer no caminho, atropelado ou pela falência do sistema de saúde, como que fica? E as centenas de famílias que no momento estão desalojadas porque as águas do Xingu já estão parcialmente barradas e o rio enfrenta uma cheia recorde? Como que se fecha o rio antes de transferir as famílias para as suas novas casas? Como ficam essas famílias? Elas certamente não consideram a questão das condicionantes para antes ou depois da finalização das obras uma “falsa polêmica”.
“Ganha um copo de açaí com banana quem citar outra cidade brasileira que esteja recebendo tantos recursos no mesmo espaço de tempo”, escreveu. Que piada de mau gosto. A cidade está entregue ao caos! Só acredita num troço desses quem deliberadamente resolver se enganar e fechar os olhos para esta tragédia.
Por isso também os considero culpados pela morte de Aline Flor e das centenas de outros trucidados diariamente pela passagem do trem da morte de Belo Monte por Altamira.
Por que a morte desses jovens não causa comoção como a dos 242 do incêndio da boate Kiss no Rio Grande do Sul? Para as famílias dos mortos a dor é a mesma. A única diferença é que, na cidade gaúcha, morreram todos juntos, enquanto aqui é um a mais quase que a cada dia.
Por outro lado, a tragédia que assistimos das mortes violentas de jovens em Altamira foi prevista e aceita como irrelevante ou inevitável pelo Estado brasileiro, e pela nação como um todo. Nação que ainda trata a região amazônica com a mesma sanha colonialista e predatória com que Portugal tratou o Brasil antes da Independência.
Por isso a morte violenta de um jornalista em uma manifestação na “metrópole”, para citar um exemplo recente, é amplamente noticiada e discutida, enquanto que a da nossa estudante, linda, gentil e batalhadora, na “colônia”, é ignorada em escala nacional.
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