Por: Caroline | 20 Março 2014
O psicoanalista Santiago Gomez analisa e critica a postura de Giovanni Sartori, cientista político liberal, sobre suas considerações acerca da problematização do conceito de “cultura” e sugere os caminhos que deveriam ser empreendidos na América Latina. O artigo é publicado por Página/12,019-03-2014. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Dentro da série de entrevistas feitas com Cristina Fernandez Kirchner, a atual presidente argentina, acerca do poder dos meios de comunicação, ela fez referência a Giovanni Sartori, autor de “Homo Videns: Teledirected Society” (1997) (em português, Homo videns: televisão e pós-pensamento) livro que também cita os trabalhos de Eugênio Raul Zaffaroni, ministro da Suprema Corte Argentina e professor de direito penal da Universidade de Buenos Aires. A obra citada descreve a capacidade de condicionamento social da televisão e questiona “o atraso cultural” causado por ela, com o desprezo típico dos eurocentristas. Sartori condena as crianças que assistem muita televisão a se tornarem “um adulto marcado, durante toda a sua vida, por uma atrofia cultural”. A característica “não popular” da população argentina é efeito do eurocentrismo; isto também pode ser obervado no Brasil, pois o que temos em comum é que ambos fomos colonizados.
O problema de Sartori é que é eurocêntrico e, como tal, fala de “povos primitivos”. Nós, latino-americanos, reconhecemo-nos como povos nativos, autóctones. A nomeação domina. Nomeá-los como primitivos é colocá-los num certo lugar, e dominá-los. Nomearam a todos nós como atrasados, primitivos, a Europa fez isso. E do lado de cá repetimos, como “países em desenvolvimento”. Se privatizarem os trens, essas categorias desaparecerão? Diferente de Sartori, o método de Zaffaroni nos adverte de que a existência de um discurso único nos meios de comunicação é um suicídio cultural, porque eliminamos a possibilidade de que outras falas tenham lugar. De que se trataria o imperialismo se não o império de apenas um modelo? Se existem aqueles que valorizam este império mais do que outros, é também porque uma determinada cultura se apropria da cultura dos colonizados e incorpora o que dela considera valioso, enquanto outro pensa apenas em eliminá-la.
Com a televisão, exportaram o império de modelos. Um exército imperial de televisores, dizendo como devemos nos vestir, como devemos nos comportar, o que são os políticos, a política, os sindicalistas e repetindo que o aumento de salário gera inflação, como se o aumento de salário fizesse mal aos trabalhadores. Sabemos do peso que teve um político que trabalhava como jornalista nos anos 90, na promoção das privatizações, divulgando uma imagem criminosa do Estado e seus integrantes.
Um empregado público era um vagabundo, um delinquente, caso fizesse política no sindicato; quem se metesse com a questão pública era alguém que pensava apenas em como poderia enriquecer. Quando o jornalista adoeceu, o presidente passou a conduzir o programa. Que obscenidade, faltou respeito a sua posse presidencial. Essa era a imagem difundida nos meios da América Latina desde os anos cinquenta até aquela data. O império colonial: o do outro vale mais do que o teu, temos que ser como ele e, se não somos como eles, a culpa é de algum dos nossos que impede o progresso individual.
Sartori escreveu: “O termo cultura possui dois significado. Em sua concepção antropológica e sociológica, quer dizer que todo ser humano vive na esfera da cultura. Se o homem é, como de fato é, um animal simbólico, disso conclui-se que estamos vivendo em um cenário ordenado por certos valores, crenças, conceitos e, obviamente, por simbolizações que constituem a cultura. Desse modo, ainda em uma definição genérica, o homem primitivo e o analfabeto também possuem cultura. E é neste sentido que hoje falamos, por exemplo, de uma cultura do ócio, uma cultura da imagem e uma cultura juvenil. Todavia cultura também é sinônimo de ‘saber’: uma pessoa culta é uma pessoa que sabe, que fez boas leituras ou que, de alguma maneira, esteja bem informada. Nesta concepção restrita e apreciativa, a cultura é dos ‘cultos’, não dos ignorantes’”. Milhões de profissionais pensam desta maneira: uma pessoa analfabeta não sabe se tem cultura. Os europeus dominaram os gregos com a valorização do saber intelectual, mantendo-os como escravos.
Por isso podemos dizer que Sartori descreve o alcance dos meios de comunicação de massa, mas não os analisa. Porque não analisa o colonialismo, mas fala a partir da lógica discursiva colonialista. É um colonialista e quer que o outro seja como ele, que atue como ele, que faça o mesmo que ele, que seja culto. Que posição ignorante. Eles têm cultura, o nosso é artesanato, o deles arte. Temos que reconhecer o valor de nossos intelectuais latino-americanos, como Zaffaroni, como García Linera, ambos nas posições mais altas que poderiam chegar dentro do Estado. Devemos reconhecer-nos como irmãos dos povos dos países latino-americanos, porque estamos passando por processos semelhantes, porque a nível mundial o que está se questionando é o colonialismo. Os Estados mais importantes do mundo estão pedindo que lhes respeitem sua soberania.
Sartori pertence à classe da maioria dos intelectuais que depreciam o popular, porque o individualismo os impede de reconhecer-se no outro, sabem apenas diferenciar-se. É um dos que coloca Perón junto a Hitler e Mussolini, sem ter como diferencia-los. “Temos como dado que o líder máximo, como se diz hoje em dia, pode emergir de várias maneiras, inclusive da televisão. Em suas épocas Hitler, Mussolini e Perón se adaptaram perfeitamente as rádios, os noticiários, aos projetos dos cinemas e comícios. A diferença é que Hitler magnetizava com seus discursos histéricos e torrenciais; já Mussolini tinha uma retórica simplista, enquanto que os ‘vídeos-líder’ faziam mais do que transmitir mensagens, eram a própria mensagem. Isso porque, se analisarmos o que dizem, descobrimos que os meios de comunicação criam a necessidade de que haja personalidades fortes, com linguagens ambíguas (...) que permitem a cada grupo buscar nele (...) o que querem encontrar.”
Quando lemos a descrição do que Sartori denomina de “vídeo-líder”, como se tratasse de um vídeo, quando, na realidade, trata justamente de quais interesses estão em jogo, rapidamente pensamos em Sergio Massa. Todavia se estivéssemos no Brasil pensaríamos em Eduardo Campos. Um governador que era parte da frente do governo do Brasil, que já se foi e que atualmente diz que irá manter o bom, corrigir o mal, mas acaba não dizendo nada. O que estamos vivendo são as resistências do colonialismo frente à liberação dos Estados nacionais latino-americanos. A resistência daqueles que não suportam que se mudem os modelos, que apenas sigamos nosso próprio jeito, assim mesmo como somos: feios, sujos, maus... justo como somos. O imperialismo se trata do império de apenas um modelo. Contudo através da lei dos meios de comunicação não demos fim ao colonialismo, mas recuperamos as terras perdidas.
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O colonialismo no Homo videns de Sartori - Instituto Humanitas Unisinos - IHU