14 Março 2014
"A Igreja pode encontrar um novo caminho para que um divorciado em segunda união, depois de um período penitencial, seja readmitido aos sacramentos. A minha posição não é laxista, mas sim pretende reconhecer como, mediante a penitência, qualquer um pode receber clemência e misericórdia. Todo pecado pode ser absolvido. De fato, não é imaginável que um homem possa cair em um buraco negro do qual Deus não possa tirá-lo".
A reportagem é de Paolo Rodari, publicada no jornal La Repubblica, 11-03-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Perto dos Muros Leoninos, na residência do cardeal alemão Walter Kasper (o mais idoso eleitor a participar do recente conclave), exibe-se o livro Il Vangelo della famiglia (Ed. Queriniana), que contém o texto integral da conferência introdutória proferida pelo purpurado no último consistório do fim de fevereiro.
Eis a entrevista.
Eminência, enquanto o senhor escreve que é preciso fortalecer a família, o senhor propõe uma abordagem mais tolerante para com as famílias em dificuldades. Com relação a isso, pensa que a doutrina pode mudar?
A doutrina não pode ser mudada. No entanto, à parte do fato de que existe um desenvolvimento da doutrina que sempre deve ser levado em consideração – isto é, a evidência de que ela não é um lago estagnado, mas sim um rio que corre, uma tradição que vive, em suma –, também é preciso distinguir bem entre o que é doutrina e o que, ao invés, é disciplina. Todos os concílios ecumênicos antes do Vaticano II fizeram essa diferença fundamental, reconhecendo que a disciplina pode mudar quando as situações mudam. A respeito dos divorciados em segunda união, por exemplo, entre o Código de 1917 e o novo de 1983, há importantes desenvolvimentos na disciplina. E, portanto, hoje, pode-se dar mais novos passos a respeito. Além disso, é o papa que está pedindo debate, embora haja quem queira detê-lo.
Pedir novas soluções para os divorciados em segunda união é contra o ensinamento da Igreja?
Não é contra a moral, nem contra a doutrina, mas sim a favor de uma aplicação realista da doutrina à situação atual. A Igreja nunca deve julgar como se tivesse na mão uma guilhotina, mas deve sempre deixar aberto o caminho da misericórdia, uma saída que permita a qualquer pessoa um novo começo.
Misericordia é o título de um recente livro seu que o Papa Francisco citou durante o primeiro Ângelus depois da eleição. Como aconteceu isso?
Eu lhe dei uma cópia antes do conclave. Ele me disse: "Misericórdia, esse é o nome do nosso Deus", o que significa que o conceito era central para ele já antes do conclave: a misericórdia como o centro do cristianismo. E, no primeiro Ângelus, ele quis como que reiterar o conceito, depois da leitura do meu livro que eu penso que ele fez justamente durante o próprio conclave.
A Igreja precisa de mais misericórdia?
O amor é o centro do Evangelho e também do Antigo Testamento, em que Deus aplaca continuamente a sua própria, justa e santa ira e manifesta ao seu povo, apesar da sua infidelidade, a sua própria misericórdia, para que tenha uma nova possibilidade de conversão. Do Êxodo aos Salmos, o Deus do Antigo Testamento é "misericordioso, lento na ira e grande no amor".
Antes do conclave, o senhor considerava Jorge Mario Bergoglio como papável?
O resultado do conclave era uma incógnita para todos, desta vez mais do que outras vezes, eu acho. Eu entrei sem saber o que aconteceria. Dentro da Capela Sistina, eu logo tive a sensação de que algo fortemente espiritual estava acontecendo. Muitos outros cardeais também me confirmaram a mesma percepção. Talvez eram as orações dos fiéis por nós. O fato é que para mim, assim como para muitos outros, pareceu que, em um certo ponto, o Espírito Santo quis dizer com força a sua vontade. Antes de entrar, não estava claro se a maioria dos cardeais se direcionaria a uma escolha tão "outra", digamos, disruptiva. No entanto, assim foi: um conclave rápido, de fato, com uma maioria que escolheu pouco a pouco o nome de Bergoglio. Uma escolha no signo da catolicidade também, do reconhecimento de que o Ocidente e a Europa precisavam de ar fresco, da voz de um mundo em grande expansão. O cristianismo na Europa sente fadiga, enquanto em outras partes do mundo ele está mais vivo. É justo recomeçar olhando para além.
Que fase se abriu na Igreja com a eleição de Francisco?
Acho que definitivamente se abriu a fase da plena recepção do Vaticano II. A ideia de uma Igreja pobre para os pobres, de fato, tão cara a Francisco, já está presente nos textos do Concílio, embora por anos o tema tenha sido pouco desenvolvido.
O que o senhor acha da renúncia de Bento XVI?
Com a renúncia, ele não é mais papa no sentido jurídico. Mesmo que eu mesmo, quando o encontre, continuo chamando-o de Santo Padre, como deve ser. Vejo hoje a sua renúncia como um gesto muito humilde. Depois do Vaticano II, aprendemos a ter nas nossas dioceses os bispos eméritos. E agora também aprendemos a ter um papa emérito, que foi substituído por um sucessor, para todos os efeitos. Mesmo na sociedade civil é assim: um ex-presidente da República, por exemplo, continua sendo chamado de "senhor presidente", embora não esteja mais no cargo. Bento XVI, além disso, quer ser tudo, menos um segundo papa. E, de fato, a relação que me parece que se instaurou com Francisco é um exemplo para todos os bispos sobre como se deve relacionar com relação aos próprios antecessores e vice-versa. Sinto grande estima e amizade por Ratzinger. Alguns jornais, no passado, brincaram de nos contrapor, enquanto nunca houve divergências entre nós, apenas ênfases teológicas em parte, mas nunca totalmente diferentes. Sou tudo, menos o "alter ego" de Bento XVI.
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Comunhão aos divorciados? ''A Igreja não usa a guilhotina''. Entrevista com Walter Kasper - Instituto Humanitas Unisinos - IHU