11 Março 2014
Quero me identificar: eu me chamo Wary Kamaiurá Sabino e sou da etnia Kamaiurá/Aweti do Alto Xingu do Estado de Mato Grosso. Sou professor, formado em LETRAS, Especialista em Educação Escolar Indígena na UNEMAT, Mestre em Linguística pela Universidade de Brasília (UnB). Atualmente, moro em Brasília-DF em virtude de meus estudos de Doutorado na UnB. Agora passa a relatar os fatos que me motivaram a escrever este texto,
O relato é de Wary Kamaiura Sabino, publicado no blog Amazônia Legal em Foco, 08-03-2014.
No dia 17/02/2014, segunda-feira, fui submetido a uma grande humilhação, chegando mesmo a ser lesado, no momento em que eu estava solicitando a emissão do meu passaporte na agência da Policial de Federal no Distrito Federal, localizada na PEP – NA HORA, em Taguatinga-DF.
No referido local, em que eu estava acompanhado de minha esposa Vilma José Sabino Kamaiurá que me ajudava nesse processo, eu fui atendido pela Supervisora do Órgão na Unidade do NA HORA, sra. Kátia Aparecida Santi Ferri, da Policial Federal-DF, que verificou todos os meus documentos e me informou que faltava outro documento, ou seja, uma DECLARAÇÃO DA FUNAI, um tipo de carta declarando a saída do indígena do Brasil para Exterior.
Devo, antes de prosseguir, esclarecer que a finalidade de viajar para o Exterior é para dar continuidade ao meu projeto de estudos acadêmicos de Pós-Graduação Doutorado, logo, sem necessidade de a FUNAI ter conhecimento sobre a minha saída.
Mesmo em posse de todos os meus documentos pessoais como: identidade, identidade da FUNAI, Reservista Militar, Título de Eleitor, Certidão de Casamento, e também pagando todos os impostos, votando como qualquer cidadão brasileiro, aliás sou um verdadeiro cidadão brasileiro.
Com isso, o sistema do PFDF informou que se trata de uma obrigação ter o referido documento para autorizar minha saída. Assim, saímos de lá e fomos buscar o outro documento. Chegamos à Fundação Nacional do Índio (FUNAI), às 12h45, para solicitar o documento.
Fomos diretamente à Assessoria para Assuntos Internacionais, onde fomos recebidos pelo sr. Caio, que, uma vez ciente da situação, preparou o documento de acordo com as especificações solicitadas e de acordo com modelo já existente no órgão.
Contudo, a pessoa responsável que poderia assinar o documento, o sr. Felipe, ao chegar à repartição e ao tomar ciência da situação, recusou-se a assinar o documento, alegando que havia tido vários problemas com passaporte para indígenas no Plano Piloto-Brasília-DF.
Diante da recusa, solicitei a ele que me acompanhasse ao NA HORA de Taguatinga para explicar à PFDF o motivo de não emitir o documento.
Novamente obtive resposta negativa do sr. Felipe, que alegou que, se fizesse isso, todos os índios iriam atrás dele, criando um costume que atrapalharia o serviço e, por isso, ele não poderia nem acompanhar nem ajudar qualquer indígena na emissão do passaporte.
Por fim, concluiu não existir documento naquele órgão para autorizar a emissão de passaportes para indígenas. Além disso, disse que não poderia fazer a declaração, pois a viagem não era por conta da FUNAI — somente se fosse por conta da FUNAI ele faria o documento — e acrescentou que sou uma pessoa como qualquer outra e que não precisava declaração.
Ao sair daquela repartição sem resolver o problema, fui com minha esposa tomar um café e o sr. Caio dirigiu-se até nós e perguntou para minha esposa se eu era aldeado. Ela respondeu que sim e que eu era índio verdadeiro, morador da aldeia Saidão no Alto-Xingu, pertencente à etnia Kamaiurá/Aweti, e falante de duas línguas indígenas — infelizmente, para o sr. Felipe, eu não poderia ser considerado índio, por estar, atualmente, morando na cidade e, por conseguinte, não ter direito de reivindicar meus direitos.
Após 6 horas de espera na FUNAI em que nada foi resolvido, voltamos à Polícia Federal para verificar se havia outro modo para conseguir a declaração. Então, em companhia do sr. Otavio Moura Carvalho, meu amigo, fomos à Coordenação Geral de Promoção dos Direitos Sociais (CGPDS), onde falamos com a sra. Paula sobre a situação complicada e perguntamos se era possível providenciar a referida declaração.
A sra. Paula fez uma carta mencionando a própria Constituição Federal, no capítulo da temática indígena, assinou e a entregou para mim.
Em seguida, eu e Vilma fomos à ouvidoria e relatamos o ocorrido.
No dia 18/02/2014, terça-feira, voltamos ao local onde se emite passaporte em Taguantinga-DF e entregamos o documento para a sra. Kátia, da Polícia Federal de Taguatinga-DF, mas ela não aceitou aquela declaração, alegando que não era daquele jeito. Falou, então, que não ía fazer o meu passaporte sem declaração, sem a carta da FUNAI, e que não podia fazer nada para mim. Ela disse para mim: “— Não tem jeito, eu sinto muito”.
Já com a voz alterada, bastante alta, ela falou que não iria fazer mesmo. Com isso, todo mundo olhava para mim e eu, totalmente humilhado, fiquei com a cabeça abaixada. Eu me senti tratado como se fosse um bandido, uma pessoa sem direitos, uma vítima de preconceito. Eu não estava pedindo um favor, nem que fosse feito de graça, pois já tinha pago pelo serviço. Fiquei com muita vergonha de ser tratado daquele jeito. Não havia porque a sra. Kátia falar comigo naquela altura para que todas as pessoas que estavam no meu ao redor ficassem olhando para mim.
Fiquei muito triste, agoniado, desesperado, segurando meu choro, mas a minha esposa não aguentou, e ao me ver abatido, ela chorou de tristeza. Ficou com dó de mim.
Kátia ainda repetiu que, sem a declaração da FUNAI, não faria um passaporte para mim. Ainda me chamou de “índio”, mesmo sabendo meu nome que estava em minha carteira de identidade.
Kátia me perguntou se era “índio integrado”, naquele momento de tanto abatimento, não pude falar mais nada.
Então, já com raiva e dor, respondi que já vivia “no mundo do branco” — foi humilhante para mim —, mas que não era integrado, pois falava na minha língua materna nativa, tinha costume, morava e dançava na aldeia, comia comida tradicional, portanto, eu era um verdadeiro cidadão brasileiro, legítimo dono da terra.
Então, para eu conseguir o meu passaporte eu preciso ser considerado como não-indígena, será que não tenho mais o direito de ir e vir?
Saí de lá, transtornado com aquela situação.
Contudo, quando eu já estava no ponto de ônibus, decidido a ir ao Ministério Público para denunciar aquela situação e reivindicar meus direitos, recebi um telefonema do sr. Felipe da FUNAI falando que queria falar com a sra. Kátia.
Já que o ponto de ônibus estava na frente do NA HORA de Taguantinga-DF, voltei para entregar meu celular à sra. Kátia para atender à ligação. Volte lá e entreguei o aparelho à sra. Kátia que falou com o sr. Felipe. Mas não sei o que eles falaram e combinaram no telefone, pois ela falou longe de mim.
Quando ela veio me entregar meu celular, comuniquei que estava indo para o Ministério Público e que ia chamar a TV local para fazer a minha denúncia, pois estava sentindo lesado e humilhado e queria meus direitos.
A sra. Kátia mandou que eu esperasse e fez uma ligação no telefone do NA HORA por um longo tempo. Então, ela e um delegado, ambos, resolveram colocar meu nome como NÃO-ÍNDIO, pois só assim poderia conseguir ter um passaporte. Acredito que foi isso que o sr. Felipe combinou com o delegado.
Inclusive a sra. Kátia registrou uma observação que o delegado do Amazonas falou, ou seja, em meus dados pessoais, ela me registrou como NÃO ÍNDIO, e emitiu meu passaporte. Foram 4 horas aguentando aborrecimentos de uma pessoa e gastando minha energia e paciência no PEP – NA HORA-Taguatinga/DF.
De lá eu saí chorando e complemente em estado de choque. Naquela noite, não consegui dormir direito, pois ficou na minha mente aquela humilhação, aquela discriminação sofrida e a falta de consideração de um agente da própria Polícia Federal-DF, e também na FUNAI, um órgão público criado teoricamente para proteger, nós, indígenas, com reconhecimento na mídia mundial, abriga profissionais que não buscam sequer atender bem as pessoas que procuram seus serviços.
Se nem a Polícia Federal nem a FUNAI podem ajudar os indígenas, para os quais eles não estão fazendo “favores”, mas sim obrigação estatal de lutar pelos direitos dos povos, protegendo e respeitando a vida e a integridade física e psíquica dos indígenas. Mas, pelo contrário, parece que os indígenas são inimigos (situação histórica secular construída ainda no Brasil colonial), que não devem ser apoiados nem protegidos.
Para quem não sabe reivindicar os seus direitos aceita as humilhações e fica por isso mesmo, e as muitas LEIS de nosso país ficam apenas no papel. Parece que a própria Constituição de 1988, que ampara e protege os povos indígenas, não precisa ser respeitada nem cumprida.
Essa situação de desrespeito não é caso isolado, nem raro, mas muito comum, pois sempre somos desrespeitados por sujeitos não indígenas.
Gostaria muito que situações como essa não acontecem mais para ninguém, indígena e não indígenas, pois pessoas em cargos públicos (e mesmo privados) não tem o direito de humilhar nem destruir a autoestima das pessoas, independente de sua origem, ainda mais porque essas pessoas são FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS que são pagos com o dinheiro pago de nossos impostos. Não quero, assim, que se repitam humilhações como essas que eu acabo de passar na minha vida. Não quero mais ser humilhado e não quero também que minha esposa, parentes e amigos sofram por causa dessas injustiças.
FUNAI, ajude os povos indígenas com as suas demandas. Ainda mais quando o interesse dos indígenas está relacionado a estudo, como é o meu caso. Do contrário, pode parecer que a FUNAI não quer que o indígena cresça. Que as pessoas que trabalham na FUNAI sejam melhor capacitadas para resolver as várias questões indígenas.
Com relação à emissão de passaportes, FUNAI e Polícia Federal deveriam entrar em consenso e definir a questão, pois, nós, indígenas, também podemos e necessitamos viajar para outros países. Por isso, a FUNAI poderia também se reunir com o Ministério da Justiça e definir claramente as regras de emissão de documentos para indígenas.
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Humilhação e constrangimento: “Eu quero meu direito de ser livre, de ser Indígena no Brasil” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU