03 Março 2014
O monsenhor Alfred Xuereb revela o que aconteceu depois daquele 11 de fevereiro de 2013 em que Ratzinger renunciou ao ministério petrino: da retirada para para Castel Gandolfo ao telefonema de Bergoglio depois da eleição.
A reportagem é de Anna Artymiak, publicada no sítio polonês Stacja 7 e republicada pela agência Zenit, 28-02-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
"Havia o risco de ver muitas críticas serem expressadas contra o Papa Bento XVI. Muitos diriam: 'Ele começou uma obra e não teve a coragem de completá-la. Ao invés, eu vi a heroicidade nesse gesto: ele não olhou para o risco de que a sua renúncia pudesse ser considerada uma falta de timidez, mas estava convencido de que isso era o que o Senhor lhe pedia naquele momento".
Essas são palavras do Mons. Alfred Xuereb, ex-prelado da antecâmara pontifícia com João Paulo II, depois segundo secretário de Bento XVI e atual primeiro secretário particular do Papa Francisco. Ele foi um dos poucos – juntamente com o Mons. Georg Ratzinger, com Dom Georg Gänswein e com as quatro Memores Domini – que sabia há muito tempo as intenções de Joseph Ratzinger de renunciar ao ministério petrino.
Mons. Alfred Xuereb, maltês, nascido em 1958, começou seu serviço à Santa Sé sob o pontificado de João Paulo II, em 2001, na Primeira Seção da Secretaria de Estado. Mais tarde, tornou-se colaborador de Dom James Harvey, na Prefeitura da Casa Pontifícia, e a partir de setembro de 2003 assumiu a função de prelado da antecâmara pontifícia, isto é, o prelado responsável pela apresentação ao papa dos convidados recebidos por ele em audiências privadas no Palácio Apostólico.
A partir de setembro de 2007, desempenhou ao lado de Georg Gänswein a função de segundo secretário de Bento XVI. Antes dele, havia o polonês Mieczysław Mokrzycki, agora arcebispo metropolitano de Lviv, na Ucrânia. Depois da eleição do cardeal Jorge Mario Bergoglio ao sólio de Pedro, ele se tornou o primeiro secretário particular do Papa Francisco.
Eis a entrevista.
Você estava ciente previamente do anúncio da renúncia de Bento XVI? Como a decisão foi comunicada a você? Qual foi a sua reação? Já havia sinais de que Bento XVI estava tomando essa decisão?
Já algum tempo antes do anúncio, chamava-me a atenção o recolhimento intenso que o Papa Bento XVI fazia antes da missa na sacristia. A missa devia começar às 7 horas. Algumas vezes, porém, ouvia-se despertar o relógio no Pátio de São Dâmaso, e ele permanecia em recolhimento. Rezava. Houve um período em que ele se recolhia de modo mais intenso do que de costume. Eu tinha uma sensação clara: algo muito importante estava acontecendo no coração do papa, havia alguma intenção particular pela qual o Santo Padre estava rezando. Eu não sei exatamente, mas talvez esse foi justamente o tempo do tormento interior que ele viveu antes de chegar à heroica decisão da renúncia.
A notícia nos foi comunicada de modo pessoal. Eu fui convocado por ele oficialmente. Sentei-me diante da sua escrivaninha. Mesmo que não fosse a primeira vez, eu sentia que iria receber uma comunicação muito importante. Obviamente, ninguém esperava isso. Ele estava calmo, como alguém que já tinha passado por um tormento e superado o momento da indecisão. Ele estava sereno como alguém que sabe que está na vontade do Senhor. Assim que eu ouvi a notícia, a minha primeira reação foi: "Não, Santo Padre! Por que não pensa um pouco mais a respeito?". Depois, me contive e disse a mim mesmo: "Sabe-se lá há quanto tempo ele examina essa decisão. Voltaram à minha mente, como em um piscar de olhos, os momentos longos e recolhidos de oração antes da missa e ouvi atentamente as suas palavras. Já estava tudo decidido. Ele me repetiu duas vezes: "Você vai para junto do novo papa". Talvez ele tivera uma intuição, não sei. No dia dia em que deixei o Papa Bento XVI em Castel Gandolfo, eu chorei e lhe agradeci pela sua grande paternidade.
De que modo a sua vida diária mudou depois a notícia?
Para mim, mudou muito. Eu tive crises de choro, era muito difícil me separar do Papa Bento XVI. No dia 11 de fevereiro de 2013, na Sala do Consistório, eu estava em um banquinho ao lado. Enquanto ele lia, eu chorava. A pessoa ao meu lado me dava cotoveladas e me dizia: "Controle-se, porque eu também estou comovido". Eu fiquei admirado com as expressões dos cardeais que eu tinha na minha frente. Lembro-me do cardeal Giovanni Battista Re, que não podia acreditar nos seus ouvidos. Na mesa, naquele dia, nós falamos disso e eu disse ao Papa Bento XVI: "Mas, Santo Padre, o senhor ficou muito tranquilo". "Sim", ele me respondeu decidido.
A decisão estava tomada, o parto tinha acontecido, agora cabia a nós aderir a essa grande escolha que ele fizera: uma escolha de governo, que no início podia parecer a escolha de um abandono do governo. Muitos cardeais, terminado o consistório – alguns porque não tinham ouvido, outros porque não conhecem bem o latim – se aproximaram dos cardeais Angelo Sodano e Giovannni Battista Re para entender melhor o que Bento XVI dissera. O Santo Padre permaneceu tranquilo até o último dia, quando se dirigiu para Castel Gandolfo.
Nem todos entenderam ainda quais são as razões da renúncia...
Bento XVI estava convencido do que o Senhor lhe pedia naquele momento. "Eu não tenho mais forças para continuar a minha missão – disse –, a minha missão está concluída, renuncio em favor de alguém que tenha mais forças do que eu e que levará a Igreja adiante". Porque a Igreja não é do Papa Bento XVI, mas sim de Cristo.
Muitas pessoas começaram a enviar a Bento XVI aqueles que ele chamou de "sinais comoventes de atenção, de amizade e de oração". O que você sabe sobre isso?
Eu me lembro muito bem. Depois do dia 28 de fevereiro de 2013, em Castel Gandolfo, começaram a chegar milhares de cartas. Era impressionante. Antes, não chegavam tantas assim. Todos começaram a escrever ao papa. Mas o que era bonito era ver que aqueles que escreviam muitas vezes anexavam alguma coisa à carta: um objeto feito à mão, uma partitura musical, um calendário, um desenho. Como se as pessoas quisessem dizer: "Obrigado por tudo o que o senhor fez. Apreciamos o sacrifício que o senhor fez por nós. Queremos não só expressar estes sentimentos, mas presentear-lhe algo nosso".
Entre essas cartas, chegavam muitíssimas das crianças. Eu enchia toda a prateleira com as cartas que chegavam. Obviamente, o papa não tinha tempo para olhar todas elas, porque eram milhares. Uma noite, passando ao seu lado, eu disse: "Veja, Santo Padre, estas são as cartas que chegaram hoje, incluindo muitas de crianças". Ele se virou para mim e me disse: "Essas são cartas muito bonitas". Fiquei muito tocado, essa ternura com relação às crianças. O papa sempre teve um caráter terno. Talvez, ele quisesse acrescentar: "Ao contrário das cartas que me preocupam, que me criam problemas". Eu acredito que eram como um antídoto, que o ajudou a se sentir bem quisto.
Você estava com Bento XVI nos dias do conclave. Como o papa emérito viveu esse período?
Com muita expectativa pelo conclave, pela eleição etc. Ele estava ansioso para saber quem seria o seu sucessor. Para mim, foi comovente o telefonema que o novo pontífice logo fez ao Papa Bento XVI. Eu estava ao seu lado e passei o fone. Que emoção ouvir Bento XVI dizer: "Eu lhe agradeço, Santo Padre, porque pensou em mim. Prometo-lhe desde já a minha obediência. Prometo a minha oração pelo senhor". Ouvir essas palavras de uma pessoa com a qual eu vivi e que era o meu papa, ouvir isso me provocou uma emoção muito forte.
Depois, chegou a hora da despedida...
Eu estive com ele até dois ou três dias depois da eleição do Papa Francisco. O momento em que eu tive que ir embora, eu me lembro minuto a minuto, porque foi – se eu posso usar este adjetivo – dilacerante para mim. Vivi quase oito anos ao lado de uma pessoa que me queria bem como um pai, que me permitiu entrar em uma confidencialidade sempre respeitosa, mas muito íntima, e chegou o dia da separação. O Papa Bento XVI escreveu uma belíssima carta – da qual ele me deu uma cópia que eu guardo como uma joia – em que indicava ao novo papa algumas das minhas qualidades. Talvez ele tenha querido evitar escrever os meus defeitos... Ele assegurava que me deixara livre. Lembro-me também do modo em que eu fiz as malas. Diziam-me: "Depressa, porque o papa precisa de você, ele está abrindo as cartas sozinho. Está sozinho, não tem ninguém. Envie as suas coisas rápido". Eu não sabia nada do que estava acontecendo em Santa Marta, não sabia nem que o Papa Francisco não tinha um secretário.
Depois, chegou o momento tocante, quando eu entrei no escritório de Bento XVI para cumprimentá-lo pessoalmente. Depois, houve o almoço, mas eu o saudei naquele momento e lhe disse: "Santo Padre, para mim, é muito difícil me separar do senhor. Agradeço-lhe muito pelo que o senhor me deu". A minha gratidão não se devia ao fato de que ele me concedia estar com o papa novo, como alguém escreveu, mas sim à sua grande paternidade. O Papa Bento XVI, nesses momentos, não se emocionou. Levantou-se, eu me ajoelhei, como estávamos acostumados, para beijar o anel. Ele não só me permitiu beijar o anel, mas também levantou a sua mão sobre mim e me deu a bênção. Despedimo-nos desse modo. Depois, houve o almoço, mas eu não consegui dizer uma palavra.
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Secretário de três papas conta a renúncia de Bento XVI. Entrevista com Alfred Xuereb - Instituto Humanitas Unisinos - IHU