14 Janeiro 2014
Como é gratificante estarmos junto do povo herdeiro da primeira grande revolução social da América Latina, quando em 1804, se rebelaram contra os colonizadores franceses que os exploravam como escravos, e os condenavam a ter apenas uma media de vida em 35 anos. Expulsaram todos os colonizadores, eliminaram a escravidão e distribuíram as terras. Assim, no primeiro de janeiro de 2014 se fez aniversário de 210 anos de independência Haitiana e de uma república que começa a ser dirigida por um ex-escravo.
O relato é de Erivan Camelo e Isabel Cristina Forte, missionários no Haiti, publicado por Cáritas Brasileira, 10-01-2014.
E como foi lindo presenciar a cultura do povo haitiano, comer sopa de jerimum no dia primeiro de janeiro. E sabe por que sopa? Porque antes de se libertarem, apenas os senhores dos escravos podiam comer sopa. Dai a ideia simbólica de celebrar a liberdade comendo uma sopa enriquecida com legumes, carne, jerimum e, principalmente, com gosto de soberania.
Durante todos esses anos, o Haiti passou por vários processos de perseguição política, pois até hoje os países que comandam a hegemonia política e econômica no mundo não querem permitir que uma república de negros e negas viva feliz. Dessa forma, o Haiti sempre sofreu e continua pagando caro o preço da liberdade que a França cobrou por sua independência: a invasão dos EUA durante vários anos; as ditaduras também apoiadas pelos governos norte americanos; e a presença da ONU, atualmente por meio da Minustah, que significa, principalmente, uma forma de ocupação militar, dominação e colonialismo, em vez de intervenção humanitária, como chamam.
O país se divide em dez departamentos regionais, que são equivalentes à nomenclatura de Estados ou Províncias na América Latina. Em cada departamento tem uma diocese. O Delegado de cada departamento é indicado pelo presidente e, portanto, seu representante no interior.
Há 140 comunas, que equivalem aos municípios. Cada comuna tem um poder local composto por três prefeitos que são eleitos pela população e deveriam administrar de forma conjunta. Na prática não existe orçamento (o orçamento é restrito aos departamentos que são controlados pelo governo central). Os prefeitos administram apenas os problemas.
Cada município se divide em secções, que seriam equivalentes aos distritos. São 570 secções em todo país. Cada secção tem três vereadores, que são eleitos e exercem o poder Legislativo, Consultivo e Executivo no distrito. Há, também no interior, muitas comunidades que possuem um líder comunitário que é respeitado pela população local.
O povo ainda vive em pobreza extrema de comida, de bens materiais e, principalmente, de educação. Estas problemáticas se agravaram com o terremoto de 12 de janeiro de 2010, que matou milhares de pessoas e destruiu praticamente a capital do país, Porto Príncipe. Mas, é um povo que se mantém com dignidade e altivez, unido pela cultura, pelo idioma creóle que só eles falam no mundo, e pelo Vudu (equivalente ao nosso candomblé), praticado por quase toda população, embora mantenham um sincretismo religioso.
Mesmo reconhecendo a grande catástrofe deixada pelo terremoto em 2010, não podemos afirmar que os desastres naturais no Haiti (terremotos, furacões, tufões, ciclones, etc) sejam as causas principais da extrema pobreza, ou que por causa deles o país não consiga se desenvolver. Essa é a principal desculpa que os países invasores utilizam para se manterem como ajudante e ao mesmo tempo continuo colonizador.
O que se vê e se escuta falar muito pelos haitianos é que o país está se reconstruindo aos poucos. Quem viu ou viveu o terremoto em 2010 diz da grande diferença que o país se encontra atualmente. Muitas construções já foram reerguidas, o comércio aos poucos começa voltar ao normal, a segurança no país está estável, os camponeses e camponesas que produzem com dureza boa parte da alimentação do país, enfim, tudo está se arrumando aos poucos, por isso podemos dizer que o povo haitiano é forte e se renova como as borboletas.
Nas regiões rurais, há poucas escolas e 70% da população vive no meio rural. Após o terremoto, muitas pessoas migraram para capital ou grandes vilas em busca de melhorias de vida assim como no Brasil. O analfabetismo atinge uma média 40% da população. Não há quase energia elétrica no interior, apenas em Porto Príncipe. Existem apenas três rodovias nacionais asfaltadas. Uma boa novidade é o uso de energia solar que está crescendo no país.
A estrutura do estado é praticamente ausente e não cumpre o que é direito humano em relação ao acesso as políticas sociais de educação, saúde, moradia, entre outras. Um exemplo disso é a privatização da maioria das escolas e mesmo quando são públicas, a família paga uma taxa para que suas crianças possam estudar. Assim, cerca de 70% das despesas com educação no país é proveniente das famílias dos educandos.
Praticamente não há indústrias e a economia vive principalmente da agricultura e do comércio abastecido pela fronteira com a República Dominicana. A principal fonte de divisas externas são as remessas que os familiares enviam dos países onde habitam como estrangeiros. Ao longo de todo o país há uma rede de pequenas lojas articulada com o sistema bancário americano que recebe as remessas, faz o câmbio e repassa aos familiares na moeda local, o GOURDE.
As ruas do Haiti, seja na capital Porto Príncipe, nos departamentos ou pequenas vilas, são enfeitadas de comércio alternativo/ambulante. Talvez, no Brasil se chamasse de comércio ilegal, mas aqui é uma das formas que as pessoas encontram pra ganhar a vida. De tudo se vende, desde o alimento e outras mil coisas. O interessante é que se compra na rua por um preço mais em conta do que nos grandes supermercados dos brancos. Assim, se traduz o Evangelho que diz que a salvação dos pobres é sempre os próprios.
Podemos dizer que as feiras dos camponeses e camponesas nas pequenas vilas, em relação à Economia Popular Solidária no Brasil, são mais avançadas do ponto de vista da quantidade de produtos e da autogestão das famílias que levam sua produção para as mesmas. Ali se vai e se vem com cestos nas cabeças, os gritos soam nos ouvidos e os sorrisos de felicidade cruzam nos ares. Ao ver tanta diversidade de alimentos vem sempre na cabeça: por que as pessoas ainda passam fome? Mas logo a resposta está numa próxima imagem: deparamos-nos com pessoas em situação de extrema miséria, ainda vivendo num acampamento, sem terra, sema casa, sem educação, sem saúde e, pior de tudo, com um semblante que demonstra desesperança.
Cerca de 70% da população ainda é camponesa que sobrevive em áreas ao redor de um a dois hectares por família. Dados oficiais afirmam que cerca de 65% de todos os alimentos são importados ou chegam na forma de doação. Os alimentos são apropriados por uma burguesia comercial negra, que explora a população. Esse dado parece contraditório quando se vê a grande quantidade de produtos nas feiras ou nas roças por onde se passa. Os principais produtos que tem em abundância no país são: manga, fruta pão, banana, legumes diversos, feijão, milho, arroz, batatas diversas, cana de açúcar, peixes, porco e cabritos.
O que não se diz é que partes desses produtos são exportados para a República Dominicana. Por isso, podemos afirmar que o Haiti depende principalmente de produtos industrializados que chegam a custar bem mais caros do que os que são produzidos no país.
Num cenário desses, não é difícil imaginar quando virão as próximas revoltas populares. Mas não se assustem, lá estão 12 mil soldados de muitos países do mundo coordenados pelo Exército Brasileiro, com o timbre das Nações Unidas, para conter possíveis revoltas. Desfilam em comboios fortemente armados, apenas para dizer ao povo: não se esqueçam, estamos aqui para manter a ordem! A ordem da pobreza e da nova escravidão. O que talvez ninguém saiba é que o Haiti tem os menores índices de homicídios de toda América Latina.
Nos últimos dois meses têm acontecido protestos que chegam a reunir 50 mil pessoas nas ruas de Porto Príncipe. As principais demandas são: a saída MINUSTAH do país e a eleição para cargos de senadores que estão com mandatos vencidos. Por que dos senadores? Porque são os únicos que se opõem a política do presidente Marteli que tem comando dos Estados Unidos.
A Cáritas no Haiti
A Cáritas Haitiana é organizada a partir das dez dioceses e tem o Birô Nacional que se encarrega de animar diversos trabalhos em todo país. Tem uma forte experiência com as Cáritas Paroquiais que se encarregam de animar os trabalhos de base. As principais temáticas trabalhadas nos últimos anos tem sido: gestão de riscos, agricultura, saúde e a economia solidária. A Cáritas Brasileira, juntamente com outras Cáritas no mundo, tem contribuído muito em todas as temáticas. No caso do Brasil contribui, principalmente, na gestão de riscos (construção de casas e escolas) e na animação da economia solidária.
O povo do Haiti não precisa de soldados armados. O povo do Haiti precisa de solidariedade para desenvolver as forças produtivas de seu território e produzir os bens que precisam para sair das imensas necessidades que padecem.
O povo haitiano precisa de apoio para ter energia elétrica, para ter uma rede de gás de cozinha e evitar o desmatamento. Precisa de uma rede de água potável e de escolas em todos os níveis, em todos os povoados. Precisa de saneamento básico, para garantir um mínimo de saúde, pois com os esgotos a “céu aberto” ficam difícil ações voltadas à segurança alimentar. Precisam de sementes e ferramentas para desenvolver ainda melhor a agricultura. De um sistema de saúde emergencial e preventivo eficaz. E, principalmente, de ampliar o processo de formação popular capaz de lhes devolver a esperança e confiança. O resto eles sabem muito bem como fazer.
Aos poucos, temos conhecido o Haiti. Assim como nos diversos países, sua capital é sobrecarregada. O agravante maior é a desestrutura em torno das questões básicas: saneamento básico, moradia, educação e saúde.
Descendo para os outros estados, se desenha um outro Haiti, com realidades muito delicadas, porém, não se compara a realidade da capital, Porto Príncipe, e as cidades do entorno.
O grande desafio é fazer com que essa concentração na capital se dissipe para os demais estados. Para isso é necessária outra política que pense o desenvolvimento local solidário e sustentável, restabelecer a relação como dizemos no nordeste do Brasil “com a convivência local”. Assim, será possível ver que outro Haiti é possível!
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O povo haitiano precisa de solidariedade! - Instituto Humanitas Unisinos - IHU