04 Dezembro 2013
Hernán Pérez Orsi escutou o ruído das hélices de um helicóptero e saiu apressadamente da cabine. Como segundo oficial do navio, encarregado da navegação, esse homem do mar, um argentino de 40 anos, dirigiu-se à ponte de comando. Cerca de 18 pessoas encapuzadas baixavam por meio de cordas sobre o Arctic Sunrise com as armas em riste. Pérez disparou o alarme antipirataria. Acabaria sendo acusado de pirata.
A reportagem é de Joseba Elola, publicada no jornal El País, 03-12-2013.
Os homens armados irromperam na ponte com suas metralhadoras. Arrastaram pelo chão o videojornalista independente britânico Kieron Bryan, de 29 anos, que viajava junto com os ativistas para documentar a ação. Deram ordem de parar as máquinas. Assim começou o pesadelo. E assim o narra por telefone, de um hotel em São Petersburgo, Pérez Orsi, com o eco do choro de sua filha Julia, de 1 ano, ressoando no quarto. "Fui sequestrado pelas forças especiais russas", declara tranquilo.
Os chamados 30 do Ártico estão em liberdade sob fiança. Os 28 ativistas do Greenpeace e dois jornalistas que foram detidos em 19 de setembro passado depois de um ato de protesto na plataforma de petróleo Prirazlomnaya, no mar de Pechora, entre a costa continental russa e a ilha de Nova Zembla, foram libertados a conta-gotas, um a um, ao longo das últimas duas semanas. O último, o australiano Colin Russell, deixou a prisão na última sexta-feira.
Nesta primeira entrevista concedida por um tripulante do barco a um veículo da mídia espanhola, o marinheiro Hernán Pérez Orsi e a ativista Camila Speziale, ambos argentinos, relatam a dureza da detenção e do encarceramento que sofreram. "Todos tivemos uma arma apontada para a cabeça", conta, referindo-se à detenção, também por telefone, de um hotel central na cidade russa, Speziale, 21 anos, a mulher que ocupou as capas da mídia argentina. "Ninguém está preparado para ter uma arma apontada para a cabeça. Esses momentos não podem ser esquecidos. Foi uma detenção violenta e injusta."
Há dois meses e meio começou o pesadelo. E ainda não terminou. Os ativistas foram libertados sob fiança --42 mil euros por ativista (cerca de R$ 126 mil)-- pelo tribunal de São Petersburgo, enquanto o Comitê de Investigação da Federação Russa prossegue suas pesquisas para determinar o que aconteceu em 18 de setembro. Os ativistas do Greenpeace foram acusados, em um primeiro momento, de pirataria, o que poderia acarretar até 15 anos de prisão; mas formalmente essas acusações ainda não foram retiradas, confirma uma porta-voz do Greenpeace na Espanha. Na prática, foi a mudança da acusação para um crime de vandalismo, que contempla penas de até sete anos de prisão, o que facilitou a libertação sob fiança. "Mas tudo continua em um limbo", diz Speziale, que se mostra muito emocionada diante das manifestações de apoio recebidas ao longo desses dois meses e meio. "Precisamos que continuem fazendo protestos, que continuem lutando por nós, ainda não somos livres; precisamos que as acusações sejam retiradas."
Na madrugada de 18 de setembro, quando a jovem Camila, perita em escaladas, vestia o macacão de neoprene para iniciar a ação de protesto, mal podia imaginar o que lhe aconteceria. O objetivo era galgar a gigantesca plataforma de petróleo, propriedade da empresa de gás russa Gazprom, uma massa de 117 mil toneladas implantada no meio do oceano Ártico, para denunciar os perigos que representa a extração de petróleo no polo norte e suas consequências para o aquecimento global. Há anos que o Greenpeace e o WWF (World Wild Fund) denunciam que Prirazlomnaya não tem medidas de segurança adequadas para o caso de um vazamento.
A finlandesa Sini Saarela e o suíço Marco Weber foram encarregados naquele dia de tentar escalar a gigantesca plataforma russa. A ação foi abortada pelo serviço de guardas de fronteira russos. Os vigilantes da plataforma chegaram a efetuar disparos para dissuadir os ativistas.
Mas é no dia seguinte, 19 de setembro, que se desencadeia a operação de detenção. "Ao acessar a ponte de comando, nos apontaram com metralhadoras", lembra Pérez Orsi. Reuniram toda a tripulação no refeitório enquanto requisitavam celulares, câmeras, computadores e portáteis dos camarotes. Pérez Orsi, que é hipoacústico, teve arrancados seus fones de ouvido. "Não me agrediram", afirma, "mas vivemos cinco dias de violência: estiveram o tempo todo armados".
O Tribunal Internacional de Direito do Mar decidiu na sexta-feira (22) a favor dos ativistas do Greenpeace, respondendo a uma demanda das autoridades holandesas, sob cuja bandeira navegava o Arctic Sunrise. Esse tribunal, estabelecido na Convenção da ONU sobre Direito do Mar, ordenou que a Rússia libere os ativistas e não retenha mais o barco. A Federação Russa não participou das audiências alegando que essa corte não tem autoridade no caso.
A travessia durante a qual o Arctic Sunrise foi rebocado até o porto de Murmansk durou cinco dias. "Pensávamos que nos poriam em liberdade", conta Speziale. Mas não foi assim. Os ativistas foram interrogados nos tribunais da cidade portuária, situada no noroeste do país, e distribuídos por cinco prisões. Na quinta-feira, 3 de outubro, foram acusados formalmente de pirataria.
Camila Speziale, jovem estudante de fotografia com preocupações ambientais, conta que a experiência na prisão foi muito dura. Estava sozinha em uma cela de cerca de 6 m², na qual havia quatro catres e uma televisão. "Não vi o céu durante dois meses. Houve momentos em que me senti muito mal", relata.
Speziale reside em um bairro de classe média de Buenos Aires, Caallito. É a mais velha de seis irmãos. Ingressou como voluntária no Greenpeace há três anos, mas seu interesse pelo meio ambiente vem de longe. Estudou veterinária e participou de protestos contra a mineração a céu aberto no Chile e na Argentina. "Desde pequena tive uma grande conexão com a natureza."
Na prisão, todo dia havia uma hora para caminhar por longos corredores de paredes cinzas que compartilhavam um telhado comum e permitiam que as reclusas se comunicassem a gritos. A segunda vez em que saiu para caminhar, escutou uma presa gritar seu nome. Suas companheiras estavam ali. "Percebi que não estava só." A cada dia essa hora de caminhada se transformava em um pequeno bálsamo para superar a adversidade. Trocavam mensagens. Cantavam. O mítico "I will survive", de Gloria Gaynor, e o não menos mítico "No woman no cry", de Bob Marley, lhes davam forças para enfrentar a dureza da penitenciária.
Pérez Orsi compartilhou uma cela de cerca de 12 m² com dois jovens russos em Murmansk. Quando entrou na prisão, pesava 90 quilos. Perdeu 12 em dois meses e meio. Toda vez que lhe serviam uma sopa, remexia a verdura para ver se por sorte aparecia um pedacinho de carne. Conta que se acostumou rapidamente a um regime alimentício em que eram frequentes o repolho, as batatas e os cereais.
É um homem do mar que navega há 20 anos, acostumado a estar distante. "Mas sempre sei qual é minha data de regresso", explica. Agora não. Ainda não sabe quando acabará esse sonho ruim. "Vivi mares bravios, temporais, incêndios. Mas este processo é algo sobre o qual não se pode ter nenhum controle."
Pérez Orsi, nascido em Mar del Plata, é um fanático torcedor do Boca Juniors que entrou no Greenpeace há dois anos. "É como quando um jogador é chamado para entrar na seleção", diz. Sempre quis trabalhar para a organização ecologista. Mas demorou para encontrar o momento certo. Seu pequeno caderno de sudokus ficou totalmente amassado depois da passagem pela prisão. "Eram pequenos problemas que eu podia resolver." As 20 folhas com quatro sudokus por página foram apagadas várias vezes para recomeçar. Até oito vezes. Ele tentou inclusive montar um sudoku, "o que alguém só tem tempo de fazer quando está na prisão", brinca.
Na segunda-feira, 11 de novembro, os 30 detidos foram transferidos para São Petersburgo e distribuídos entre três penitenciárias da cidade. Camila Speziale ficou no centro penitenciário Sizo 5; Pérez Orsi, no Sizo 4. Desta vez, as condições das celas eram um pouco melhores. "O diretor da prisão mandou pintá-las para nossa chegada", conta Pérez Orsi.
Onze dias depois, na sexta-feira (22), o juiz lhe concedia a liberdade sob fiança. "Foi uma alegria muito grande, me emocionei", diz o marinheiro. Sua mulher já tinha passagens compradas para ir visitá-lo na prisão com a pequena Julia. Pôde se reencontrar com ela em liberdade. Mas a incerteza continua. "Ainda não sei se vão me julgar e me mandar de novo para a prisão." O Comitê de Investigações da Federação Russa tem agora três meses para prosseguir em suas averiguações.
Um dia antes, na quinta-feira (21), Speziale deixava a prisão. "Preocupa-me o que possa acontecer, tenho medo, obviamente", confessa, "mas agora estou mais relaxada, à espera de boas notícias". Speziale está satisfeita com a missão, apesar de tudo. "Graças ao fato de termos sido presos, sabe-se do problema que há no Ártico." Em seu quarto de hotel, conta que ainda tem dificuldade para dormir à noite. Não consegue deixar de pensar no que seria passar vários anos atrás das grades se, depois do julgamento, ela e seus companheiros forem condenados.
Ambos mostram-se infinitamente agradecidos pelas demonstrações de apoio que percorreram o planeta. No Arctic Sunrise viajavam ativistas procedentes de 18 países. Nesta ocasião não havia nenhum espanhol na tripulação comandada pelo legendário Pete Willcox, o homem que capitaneava o Rainbow Warrior em 1985, quando foi atacado pelos serviços secretos franceses. "Espero que não voltemos à prisão", declarou Pérez Orsi. "Precisam entender que as pessoas têm direito a levantar sua voz. O direito a protestar é muito importante. É preciso saber disso e é preciso divulgá-lo. Protestar nos torna seres humanos."