18 Mai 2013
Acontece só na Europa, atraída pelo naufrágio, não por causa da economia, mas por causa da loucura convulsionada da sua política: falamos do escândalo de um Tribunal Constitucional Alemão que se tornou crucial para todo cidadão da União, enquanto o Tribunal Constitucional em Portugal vale zero. Falamos de Jens Weidmann, governador do Banco Central Alemão, que acusa Mario Draghi de passar por cima do seu mandato – salvando o euro com os meios à sua disposição – e descaradamente declara guerra a uma moeda que nós chamamos de única justamente porque não pertence só a Berlim.
A reportagem é de Barbara Spinelli, publicada no jornal La Repubblica, 15-05-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O mandato do BCE é claro, de fato, mesmo que Weidmann conteste a sua constitucionalidade: manter a estabilidade dos preços (artigo 127 do Tratado de Lisboa), mas no respeito ao artigo 3, que prescreve o desenvolvimento sustentável da Europa, o pleno emprego e a melhoria da qualidade do ambiente, a luta contra a exclusão social, a justiça e a proteção social, a coesão econômica, social e territorial, a solidariedade entre os Estados membros. Algo está errado na história que está sendo construída, se o artigo 3 nem aparece no site do BCE, por temor de que Berlim talvez se assuste.
Em pouco mais de um ano, em maio de 2014, votaremos pela renovação do Parlamento europeu. Especialmente para os italianos, será uma data diferente do habitual. Porque a Europa da trojka (BCE, Comissão, FMI) pesa sobre as nossas vidas como nunca antes. Porque os seus remédios anticrise são contestados em toda a parte pelos povos, abalando até mesmo o médico que mais ardentemente os administra: no dia 22 de setembro, os alemães votarão e talvez premiarão um partido antieuropeu – Alternativa para a Alemanha – recém-nascido em fevereiro passado. Os partidos terão que parar com as mentiras que estão dizendo sobre a possibilidade de "dobrar" Angela Merkel. Especialmente na Itália, eles terão que dizer que ela traiu eleitores e cidadãos. Pela primeira vez, finalmente, se ousarem, poderão indicar o presidente da Comissão. Está nos tratados.
Se falamos de mentiras, é porque nenhum governo é capaz de dobrar Berlim com os argumentos exclusivamente econômicos até agora cogitados: um pouco menos de austeridade, um pouco de crescimento, algumas remissões. Convencida como é de que são os mercados e mais ninguém que nos disciplinam, Berlim só vai se mexer se a política prevalecer sobre teses econômicas degeneradas em dogmas. Se governos, partidos e cidadãos puserem em campo visões claras daquela que deve ser uma outra Europa: não a presente, dotada de recursos mínimos, precipitada em equilíbrios de poderes do século XIX.
A União se assemelha hoje a uma Igreja corrupta, que precisa de um Cisma protestante: de uma Reforma do credo, dos vocabulários. De um plano com pontos específicos (eram 95 as teses de Martinho Lutero). O Papado econômico deve ser subvertido, opondo-se-lhe uma fé política. Só assim a religião dominante se romperá, e Berlim terá que escolher: ou a Europa alemã ou a Alemanha europeia, ou a hegemonia ou a paridade entre os Estados membros. Ela sempre teve que escolher dessa forma: a Europa, disse Adenauer em 1958, "não deve ser entregue aos economistas".
A ortodoxia alemã já é antiga, se afirmou depois da guerra e se chama de ordoliberalismo: os mercados sabem perfeitamente corrigir os desequilíbrios, sem ingerências do Estado, por estarem dotados de uma racionalidade inalterada. É a ideologia da "casa em ordem": cada nação expiará as suas próprias culpas sozinha (Schuld significa dívida e culpa, em alemão). Solidariedade e cooperação internacional, depois, vêm coroar as tarefas de casa, se bem feitas. Como na Inglaterra, a democracia também é invocada enganosamente: transferir parte da própria soberania esvazia os parlamentos nacionais. Por isso, o Tribunal Constitucional Alemão é convidado a se pronunciar sobre qualquer movimento europeu.
Se é engano, é porque na fazenda-Europa nem todas as democracias são iguais: há as sacrossantas e há as condenadas. No dia 5 de abril passado, o Tribunal Constitucional Português rejeitou quatro medidas de austeridade impostas pela trojka (cortes nos salários estatais e nas pensões), por serem contrárias ao princípio de igualdade. O comunicado emitido dois dias depois pela Comissão Europeia, no dia 7 de abril, ignora totalmente o veredito, "se felicita" que Lisboa continua a terapia concordada, rejeita toda renegociação: "É essencial que as instituições políticas chave de Portugal continuem unidas em apoiar" a retomada como ela é. O tratamento diferenciado reservado aos juízes constitucionais alemães e portugueses é tão desonesto que a Europa dificilmente sobreviverá como ideal nos seus cidadãos.
Alguns dizem que ela pode sobreviver se a hegemonia alemã se tornar mais benévola, permanecendo como hegemonia. George Soros pediu isso em setembro de 2012 na New York Review of Books, com sólidos argumentos. O governo polonês exige isso. Na Alemanha, isso é pedido por quem teme não a hegemonia, mas sim uma autoidolatria esplêndida, introvertida.
Hegemonia e autoidolatria são, porém, os sintomas, não a causa do mal que cronicamente assombra a Alemanha. Também aos seus governos coube fazer as contas com o dogma da casa em ordem. Desde o pós-guerra, a sua política da memória foi mutilada: consciente como ninguém mais do passado nazifascista, mas esquecida do ciclone econômico que surpreendeu os alemães nos anos 1930 com a austeridade das reparações impostas pelos vencedores. O deboche da história é atroz: justamente Keynes, que tinha denunciado em 1919 a punição disciplinadora do derrotado, é o economista mais malvisto na Alemanha.
Se a Alemanha queria uma Europa supranacional, até inseri-la na Constituição, é porque os ordoliberais (no Banco Central, nas academias) foram repetidamente desmontados. Adenauer impôs a CEE e o pacto franco-alemão a um ministro da Economia – Ludwig Erhard – que fez de tudo para enterrá-los. Que acusava a CEE de "endogamia" protecionista, de "estupidez econômica".
Com London, ela tentou sabotar os tratados de Roma, preferindo, de longe, uma zona de livre comércio. Não a ouviram, nem Adenauer, nem o primeiro chefe da Comissão Hallstein, graças aos quais a racionalidade política venceu. O mesmo cenário reapareceu com o euro: aqui também, agarrado a Paris, Kohl antepôs a política passando por cima de economistas mainstream e do Banco Central. Hoje, o dilema é semelhante, mas com políticos camaleônicos, sem mais vontades firmes. A crise decepcionou o povo alemão. O ordoliberalismo se politiza, saboreia vinganças antigas.
Só resta o Cisma: a construção de uma outra Europa, que parte de baixo mais do que dos governos. Um projeto já existe, escrito pelo economista Alfonso Iozzo: segundo os federalistas, pode se tornar uma "iniciativa os cidadãos europeus" (artigo 11 do Tratado de Lisboa), a ser apresentada à Comissão. A ideia é de munir a União com recursos suficientes para gerar crescimento no lugar de Estados obrigados ao rigor. Um crescimento não só menos custoso, por ser feito junto, mas também socialmente mais justo e mais ecológico, por ser alimentado pelo imposto sobre as transações financeiras, pela carbon tax (dióxido de carbono) e por um IVA europeu. Com os primeiros dois impostos, se obteria 80-90 bilhões de euros: o orçamento comum respeitaria o limite de 1,27 concordado à época. Mobilizando o Banco Europeu com investimentos e eurobonds, teríamos um plano de 300-500 bilhões e 20 milhões de novos postos de trabalho na economia do futuro (pesquisa, energia).
Para fazer essas coisas, no entanto, é preciso que a política volte à tona e se torne novamente, como diz o economista Jean-Paul Fitoussi, não um conjunto de regras automáticas, mas sim uma escolha. É preciso a autossubversão de Lutero, quando ele escreveu as suas 95 teses e disse, segundo alguns: "Aqui estou. Não posso agir de outra forma. Que Deus me ajude. Amém".
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Europa, o sono da política - Instituto Humanitas Unisinos - IHU