05 Março 2013
Em uma época que requer leveza, abertura mental, senso de provisoriedade, a instituição papal deve ser completamente repensada. Trata-se de passar do Magisterium ao Ministerium, do magis ao minus, da doutrina à sabedoria, do poder à cooperação.
A opinião é do teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Università Vita-Salute San Raffaele, de Milão. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 04-03-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
No desfile de séculos às nossas costas, os povos determinaram ininterruptamente a sua vida com base na autoridade que derivava do passado. A tradição era a fonte de tudo, ética, direito, política, além, obviamente, de religião e espiritualidade. Ela constituía um princípio generativo e hierarquizante, do qual brotava uma ordem que se impunha simplesmente pelo fato de vir antes: "Sempre se fez e se acreditou assim, portanto faça e pense assim". Era uma autoridade que não era preciso conquistar, dava-se a priori, graças à força do tempo.
O filósofo católico Jean Guitton afirmou: "Estamos vivendo um momento capital na vida da humanidade. Em vez de se desenvolver em um regime de tradições, está evoluindo em um regime em que não existe mais uma tradição precisa... O nosso século é um século que até agora nunca se havia visto".
Hoje todos percebemos – alguns com satisfação, alguns com ansiedade – que não há mais uma tradição que se imponha sobre os indivíduos como força reguladora da vida: o presente dos indivíduos é decisivamente mais forte do que o passado da tradição.
Por que se produziu a crise da autoridade como tradição? Bento XVI e os papas anteriores deram a culpa à modernidade e ao relativismo, mas não é uma questão de "culpa"; é que a imagem do mundo sobre a qual se sustentava a tradição simplesmente ruiu. Tendo surgido com a metafísica de Aristóteles, se estruturado com a astronomia de Ptolomeu, se consagrado pela poesia de Dante, ela reinou inconteste nas mentes até o século XVII, 2.000 anos nos quais a Terra era concebida como imóvel no centro do universo, os planetas e o Sol que giravam ao seu redor, cada um em um céu diferente. O universo era um cosmos, isto é, tendo ordem e beleza (cosmos, cosmese, cosméticos) e imprimindo ordem e beleza (o cânone estético). Tudo se mantinha porque tudo era compreendido como dependente do alto. Assim dizia Hegel, na Fenomenologia do Espírito: "A significação de tudo o que existe estava no fio de luz que o unia ao céu".
A revolução astronômica inaugurada por Copérnico em 1543, e que se tornou efetiva ao longo do século XVII com Kepler, Galileu e Newton, provocou uma série de transtornos posteriores, como em um edifício que, atacado nos seus fundamentos, manifesta contínuos cedimentos. Daí as outras revoluções: política e social (Marx), biológica (Darwin), moral (Nietzsche), antropológica (Freud).
Essa subversão provocou, no nível das massas, uma alegria despreocupada, a chamada Belle Époque, mas, no subsolo, adensou-se tal conflito de forças já desprovidas de princípio unificador que levou o Ocidente à tempestade de duas guerras mundiais em 25 anos, com abismos de violência nunca tocados antes.
A Guerra Fria que se seguiu, os milhões de mortos do comunismo onde quer que tenha se instalado, as tentativas sanguinárias da direita fascista de restaurar a ordem mediante as juntas militares, a sensação de vazio e de frio no coração das democracias ocidentais e a corrupção desenfreada, tudo isso mostra a falta de um horizonte ideal capaz de falar às liberdades dos indivíduos, tornando-os capazes de solidariedade e de cooperação.
A porteira do oratório da minha cidade em Brianza costumava gritar para nós, crianças, com um tom áspero de reprovação: Ghe pü de religiun! (não há mais religião). Nem aquela idosa senhora, muito menos nós, crianças, podíamos compreender que essas palavras eram a denúncia inconsciente e angustiante de um movimento epocal muito mais profundo, até mesmo capaz de evocar na sua veste aldeã a épica passagem de Plutarco sobre a morte do deus Pan e do paganismo: "Assim que se chegou a Palodes, reinou uma grande paz de ventos e de ondas; Tamos, da popa, com o olhar voltado para a margem, exclamou, como ouvira: 'Pan, o grande Pan, está morto!'. Ele ainda não havia fechado a boca quando um imenso gemido, não de um, mas de muitos, se elevou, misturado com gritos de estupor".
Poder-se-ia objetar que, se formos ver a história dos chamados séculos cristãos da Idade Média, não se encontram cenários muito diferentes. E é verdade, a história nunca reservou a ninguém viagens de primeira classe. Com uma diferença, porém: naquela época, havia uma ordem hierárquica e e moral à qual podíamos apelar, a fé compartilhada em um Deus que regia e ordenava o mundo, um livro sagrado sobre o qual se jurava.
É possível pode ter uma ideia disso considerando os regimes teocráticos que, a partir da revolução iraniana de 1979, se espalharam um pouco por toda parte do mundo islâmico, com grandes consequências sobre o resto do planeta: lá ainda se pode ver a presença de um princípio ordenador da sociedade, graças à força da autoridade que vem do passado.
Aí, porém, também se vê outra coisa: vê-se como o princípio hierárquico da autoridade se torna muitas vezes autoritário, e a tradição, tradicionalismo. Aí se vê como a configuração que pretende governar a vida dos seres humanos de modo dedutivo, de cima para baixo, é desprovida de fundamentos reais e se torna muitas vezes opressão do homem concreto e mais ainda da mulher concreta nas suas exigências de liberdade e de autodeterminação. E portanto se entende como o processo que, no Ocidente, levou à crise da tradição deve ser julgado como algo necessário e positivo, uma etapa imprescindível da longa marcha da humanidade rumo à liberdade. Exatamente como as descobertas astronômicas que agora nos fazem sentir perdidos no cosmos, mas é melhor perdidos em uma odisseia insensata no espaço do que acorrentados na ilusão e no erro.
O que temos então? Constatamos os limites de não ter mais princípios compartilhados de ordem e de hierarquia, mas, do mesmo modo, conhecemos bem os limites de princípios que caem de cima de modo autoritário, anulando a autodeterminação da consciência. Não temos nem uma coisa nem outra, uma situação pouco invejável. Voltar atrás não é possível, porque ninguém quer perder os direitos sobre a própria vida privada, mas seguir em frente dá medo, porque se vê o vazio, o nada, a perda até dos últimos remanescentes de ordem que a tradição ainda garante.
Hoje, além disso, a revolução biológica inaugurada por Darwin alcançou o ápice soldando-se com a revolução moral e a revolução antropológica, com todos os problemas sobre a ética sexual, sobre a bioética, sobre a estrutura tradicional da família e sobre a própria identidade humana, como mostram as neurociências por causa das quais o antigo debate sobre o livre arbítrio voltou mais atual do que nunca.
Eu não acho que possa haver alguém hoje que, diante de um cenário assim, possa se considerar em posse da verdade. No entanto, o papa, por estatuto, deve fazer isso. Eis a armadilha em que o Concílio de Trento (1545-1563) e, principalmente, o Concílio Vaticano I (1870) trancaram a instituição do Romano Pontífice.
Em uma época que requer leveza, abertura mental, senso de provisoriedade, a instituição papal deve ser completamente repensada, e a renúncia de Bento XVI é um exemplo disso e um estímulo ao mesmo tempo. Trata-se de passar do Magisterium ao Ministerium, do magis ao minus, da doutrina à sabedoria, do poder à cooperação. Ou a Igreja Católica começa a rever seriamente a concepção do poder que a governa e que ainda reflete a imagem ptolomaica do universo (problema de fundo do qual todos os outros dependem), ou não sairá da sua crise, e a extinção que atingiu o paganismo também será o seu destino.
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O ofício de Pedro. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU