17 Fevereiro 2013
"Coloca-se agora em evidência a necessidade de uma reinvenção da igreja, de um novo tonus espiritual que illumine a instituição e seus fiéis para fazer frente à crise atual da cristandade", escreve Faustino Teixeira, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF, em artigo publicado no Boletim REDE – Rede de Cristãos, 15/02/2013.
Eis o artigo.
Em sua primeira missa depois da renúncia, na cerimônia de quarta feira de cinzas, Bento XVI serve-se da leitura do profeta Joel para sinalizar a presença de difíceis conflitos e divisões na vida da igreja católica romana. O profeta diz: “Rasgai os vossos corações e não as vossas roupas” (Jl 2,13). Diz o papa: “Mesmo nos nossos dias, muitos estão prontos para rasgar-se as vestes diante de escândalos e injustiças, naturalmente cometidas por outros, mas poucos parecem disponíveis para agir sobre seu próprio coração”. Tudo indica que entre as razões de sua renúncia não esteja apenas as referidas razões de saúde, mas também o esgotamento provocado pelas “lutas de poder internas” que contaminam a cúria romana.
Em editorial do jornal italiano Corriere della Sera (13/02/2013), seu diretor, Ferrucio de Bortoli trata do anúncio da renúncia de Bento XVI. O título é forte: “Uma frágil grandeza”. Aborda o delicado tema do “tormento interior” que também contribuiu para a decisão de Bento XVI. Teólogo de relevo, mas de gabinete, o papa Ratzinger não estava preparado para lidar com as querelas cotidianas da cúria romana e das espinhosas questões da vida da igreja. O autor sugere que nos últimos tempos, o sentimento de solidão deve ter sido “devastador” para ele. Foi se sentindo cada vez mais só...
Em clássica obra sobre o pontificado do papa Ratzinger, Marco Politi sublinha que o papa “experimenta o fracasso de decisões que imaginava profícuas, dá-se conta da ineficiência de quem na cúria deveria sustentá-lo e assiste impotente à uma revolta que se propaga nos meios de comunicação. Coisa ainda mais amarga: é obrigado a abrir os olhos para a rachadura radical do mundo católico com respeito à sua linha”. Encorajado pela insensibilidade de uma cúria mais voltada para os “jogos de poder” e pelas “lutas fratricidas”, acabou firmando sua decisão de renunciar ao cargo.
As resistências da cúria foram crescendo na medida em que o papa assumiu para si a responsabilidade de questionar certos abusos em curso na igreja, sobretudo no âmbito da pedofilia. Num dos documentos mais contundentes de seu pontificado, a carta aos católicos da Irlanda, em março de 2009, resolve denunciar “o grito dos inocentes” e reconhecer os graves pecados da igreja nesse campo dos abusos sexuais. Expressa com vigor, em nome da igreja, sua “vergonha e remorso”. É a primeira vez que um papa reconhece coletivamente a culpa da instituição eclesiástica pelos abusos cometidos ao longos dos anos por seus membros. Bento XVI rompe também com outro “muro de silêncio” ao ordenar uma investigação mais séria sobre o fundador dos Legionários de Cristo, Marcial Maciel Degollado, acusado de abusos sexuais reincidentes contra seminaristas. Tudo isso irritou segmentos conservadores da cúria, que preferiam manter o tradicional silêncio a respeito.
Mas como diz com acerto Marco Politi, em artigo publicado no dia 14/02/2013 no Il Fatto Quotidiano, a solidão em que o papa se viu envolvido, tem a ver com os colaboradores que ele próprio escolheu ao longo de sua atuação no Vaticano e a carência de eficiência nas estratégias de realização de seu projeto. Como diz o adágio espanhol: “Cria cuervos que ellos te sacarán los ojos”. Essa é a verdade. O que acabou ocorrendo em âmbito mundial, foi uma crescente desafeição dos fiéis e da opinião pública com respeito à instituição igreja e também ao seu líder, como também mostrou Politi em seu ousado artigo.
Trata-se de um pontificado turbulento, dizem os analistas, pontuado por muitas indefinições e gafes: envolvendo posicionamentos negativos sobre os gays e os preservativos, sobre o celibato eclesial, a atuação das mulheres, de impasses na relação com o islã, titubeios ecumênicos, concessões aos lefebvrianos, infeliz reedição da oração de sexta feira santa que tanto desagradou segmentos do judaísmo e posicionamentos críticos contra o pensamento teológico mais aberto. Politi sublinha que a obsessiva repetição dos “princípios não negociáveis” provocou, na verdade, “um cisma subterrâneo, silencioso mas profundo, no âmbito do Povo de Deus”.
A renúncia do papa foi talvez sua “única grande reforma”, como salientou Politi. Não foi um gesto qualquer, mas um ato de governo de grande alcance, um profundo ato de “magistério spiritual”. Daí ter provocado novamente a irritação da ala conservadora da igreja. Um ato que guarda consigo um significado preciso, de “dessacralização” de um cargo, de visualização de seu limitado alcance. Como pontuou Ernesto Galli em editorial do jornal Corriere della Sera (13/02/2013), o gesto de Bento XVI coloca em discussão “o modo de ser da estrutura central do governo da igreja”, abrindo também espaço para sinalizar os limites da própria instituição, os costumes arraigados e os sombrios jogos de poder.
Com a renúncia abrem-se novas possibilidades de mudança no campo eclesial, como mostrou John L. Allen Jr, em artigo publicado na Folha de São Paulo (14/02/2013). Ela pode, “na realidade, abrir espaço para um conclave mais inclinado a colocar a igreja num rumo diferente”, e ele indica três razões: a quebra de normalidade, com a possibilidade de surpresas no âmbito de uma tradição tão conservadora; o indício de que “a igreja precisa de um reinício”; e a realização de um conclave “livre do efeito funeral”, favorecendo um espaço de mais liberdade para decisões novidadeiras.
Coloca-se agora em evidência a necessidade de uma reinvenção da igreja, de um novo tonus espiritual que illumine a instituição e seus fiéis para fazer frente à crise atual da cristandade. Trata-se de um aceno importante para o conclave que se anuncia. A necessidade da presença de um pastor autêntico para guiar a comunidade dos cristãos, de alguém que saiba comunicar, antes de tudo, vida e esperança, mais que simples conhecimento teológico. Que saiba erguer sua voz ativa e profética contra as dores do mundo e mostrar a dignidade de todos, sobretudo dos mais excluídos e espoliados. O novo pontífice deve ser alguém, como mostrou com acerto Juan Arias, “capaz de entender que o mundo está mudando rapidamente e que de nada serve à igreja continuar levantando muros para impeder que lhe cheguem os gritos de mudança que provêm de grande parte da própria cristandade”.
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Rasgar os corações para reiventar a Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU