13 Fevereiro 2013
A inédita situação determinada pela renúncia de Bento XVI é de grande ajuda para compreender o que significa realmente ser papa. Até ontem, "ser papa" e "fazer o papel de papa" era a mesma coisa. A renúncia de Bento XVI é o fim de uma modalidade de entender o papado e pode ser o nascimento de algo novo.
A opinião é do teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Università Vita-Salute San Raffaele, de Milão. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 12-02-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Segundo o teólogo, "no mundo de ontem, sugere Bento XVI, a distinção entre pessoa e papel ainda podia não emergir, e um Joseph Ratzinger enfraquecido ainda poderia continuar desempenhando o papel de Bento XVI. No mundo de hoje, ao invés, não é mais assim. Eu considero essas palavras não somente uma grande lição de autoconsciência e de laicidade, mas também uma grande oportunidade de repensamento para o governo da Igreja".
Eis o texto.
A partir da Páscoa, a Igreja Católica terá dois papas, um só de facto, mas ambos os dois de iure?
À parte o célebre caso de Celestino V e de Bonifácio VIII, no fim do século XIII, uma situação desse tipo nunca havia sido verificada nos 2.000 anos de história, sem considerar que o Papa Celestino passou o tempo de ex-papa antes errante e depois preso a muita distância de Roma, enquanto Bento XVI continuará habitando no Vaticano a poucas centenas de metros do sucessor.
Constituirá para ele uma sombra ou uma fonte de luz e de inspiração? Obviamente, ninguém sabe, nem mesmo o próprio Bento XVI, que certamente é uma pessoa discreta e muito respeitosa das formas, mas cujo peso intelectual e espiritual não pode deixar de exercer uma pressão sobre quem quer que assuma o seu posto.
Uma coisa, porém, deve ficar clara: na Páscoa, não haverá dois papas, mas um só, porque Joseph Ratzinger não será mais bispo de Roma, e ser papa significa, acima de tudo e essencialmente, ser "bispo de Roma".
A inédita situação determinada pela renúncia de Bento XVI é de grande ajuda para compreender o que significa realmente ser papa. Até ontem, "ser papa" e "fazer o papel de papa" era a mesma coisa. Até ontem, a pessoa e o papel se identificavam, não havia solução de continuidade, e, ao contrário, se entre as duas dimensões uma devia prevalecer, certamente era a de "ser papa" que prevalecia, fazendo passar para o segundo plano o fato de ter ou não as plenas possibilidades de poder fazê-lo.
Todos se lembram, nos tempos da conclamada doença de João Paulo II, das repetidas garantias da Sala de Imprensa vaticana sobre as suas condições de saúde. João Paulo II não podia mais fazer o papel de papa, mas o era, e isso bastava. Prevalecia a dimensão sacral, ligada à essência, ao carisma, ao status, ao ser papa independentemente até do próprio corpo.
E, não por acaso, João Paulo II, quando alguém lhe sugeria a hipótese da renúncia, costumava repetir que "da cruz não se desce". Bento XVI quer, talvez, desce da cruz? Não, trata-se de outra coisa, simplesmente do fato de que ele reconheceu antes, dentro de si, e depois declarou publicamente que o declínio progressivo das forças físicas e psíquicas não lhe permite mais "fazer o papel de papa" e, portanto, pretende deixar de "ser papa". A função levou a melhor sobre a essência, o papel sobre a identidade. Eu acrescento que a laicidade levou a melhor sobre a sacralidade.
De fato, tratou-se de uma decisão laica, porque realiza uma distinção, e onde há distinção há laicidade. A distinção entre a pessoa e o papel introduzida nessa segunda-feira por Bento XVI, com a sua renúncia, se concretiza nestas palavras ditas em latim aos cardeais: "As minhas forças, devido à idade avançada, já não são idôneas para exercer adequadamente o ministério petrino". Há um ministério, uma função, um papel, um serviço, que tem prioridade sobre a identidade da pessoa.
A palavra decisiva no anúncio papal dessa segunda-feira, no entanto, é outra, a seguinte: "No mundo de hoje". Eis as suas palavras: "No mundo de hoje, para governar a barca de São Pedro, é necessário também o vigor quer do corpo quer do espírito; vigor este, que, nos últimos meses, foi diminuindo".
No mundo de ontem, sugere Bento XVI, a distinção entre pessoa e papel ainda podia não emergir, e um Joseph Ratzinger enfraquecido ainda poderia continuar desempenhando o papel de Bento XVI. No mundo de hoje, ao invés, não é mais assim. Eu considero essas palavras não somente uma grande lição de autoconsciência e de laicidade, mas também uma grande oportunidade de repensamento para o governo da Igreja.
A renúncia de Bento XVI pode conduzir a uma reforma da concepção monárquica e sacral do papado nascida na Idade Média e retomar a concepção mais aberta e funcional que o papel do papa tinha nos primeiros séculos cristãos?
É difícil que isso aconteça, mas permanece a urgência de colocar novamente no centro do governo da Igreja a espiritualidade do Novo Testamento, passando de uma concepção que confere ao papado um poder absoluto e solitário, a uma concepção mais aberta e capaz de fazer viver na cotidianidade o método conciliar.
Não se trata, de fato, somente das condições de saúde de Joseph Ratzinger que diminuem. É preciso ir além e chegar a fazer-se a inevitável interrogação: "No mundo de hoje", um único homem é capaz de guiar a barca de Pedro? Poder-se-á objetar que o papa não está sozinho, mas está cercado por inúmeros colaboradores. Mas se trata de colaboradores obsequiosos, muitas vezes escolhidos dentre yes-men que aplaudem e sem capacidade de instituir um verdadeiro debate e uma cerrada dialética interna, condições indispensáveis para tomar decisões capazes de fazer com que a barca de Pedro navegue "no mundo de hoje".
No início, porém, não era assim. São Pedro certamente tinha um papel de guia na primeira comunidade, como se apreende do livro dos Atos, mas não exercia tal função com poder absoluto, porque senão não se entenderia o concílio realizado em Jerusalém por volta do ano 50 e a aberta oposição de São Paulo com relação a ele no episódio de Antioquia.
O anúncio papal dessa segunda-feira ocorreu no contexto de algumas canonizações, uma das quais se referia aos Mártires de Otranto, os 800 cristãos mortos pelos otomanos em 1480 por não terem renegado a fé. Martírio é testemunho. A tradição da Igreja, porém, para além do martírio vermelho do sangue derramado, conhece o martírio verde da vida itinerante pelo apostolado, e o martírio branco pelo abandono de todos os próprios bens.
No caso de Bento XVI, estamos diante de um martírio-testemunho de outra cor, a do reconhecimento da própria fraqueza, da própria incapacidade, do próprio não estar à altura. É o fim de uma modalidade de entender o papado e pode ser o nascimento de algo novo.
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Os dois pontífices no Vaticano. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU