09 Janeiro 2013
" Lucas é intransigente em face da opressão econômica e quanto à exigência ética do cristianismo, mas, para fazê-la prevalecer, não se nega ao diálogo cultural e político, a fim de canalizar para o bem a força histórica do mal. Lucas percebeu, muito antes de Paulo Freire, que a melhor forma de amar os opressores é tirar das mãos deles as armas da opressão", escreve Frei Gilvander Luís Moreira, padre da Ordem dos carmelitas, mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblica, de Roma, Itália; é professor de Teologia Bíblica; assessor da Comissão Pastoral da Terra – CPT -, assessor do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos – CEBI -, assessor do Serviço de Animação Bíblica - SAB - e da Via Campesina em Minas Gerais, ao descrever as bases para uma Teologia da Missão dos jovens.
Eis o artigo.
As comunidades do Evangelho de Lucas e de Atos dos Apóstolos – obra lucana - apresentam um rosto diferente do rosto das comunidades da Judéia, da Samaria e da Galileia de cunho mais rural, comunidades dos Evangelhos de Marcos e Mateus. Eis, abaixo, seis características do rosto das Comunidades lucanas.
1. As comunidades de Lucas são predominantemente comunidades urbanas, melhor dizendo, das periferias das grandes cidades. No evangelho de Lucas, a palavra grega polis, que, em grego, significa cidade, aparece 40 vezes; em Mateus, 26; e em Marcos, 8. Nos evangelhos sinóticos (Mc, Mt e Lc), o ensinamento é realizado, basicamente, a partir de imagens da natureza, do campo e do trabalho rural (cf. ovelhas, pastores, videira, semente, semeador etc). No livro de Atos dos Apóstolos, essas imagens não aparecem. Isso dá a entender que são comunidades mais urbanas. De fato, no livro dos Atos dos Apóstolos, a palavra cidade aparece 42 vezes.
2. Comunidades de pobres com alguns ricos. Há um contraste que aparece, sobretudo, no evangelho de Lucas: de um lado, os pobres, famintos, perseguidos, aflitos (Lc 6,20-23) e, do outro, os ricos (Lc 12,16-21) que se banqueteiam sem se preocupar com a miséria dos outros (Lc 16,19-31). Para as comunidades lucanas era importante “não dar murro em ponta de faca”. No meio de uma correlação desigual de forças, melhor infiltrar-se do que confrontar-se com império gigante. Lucas é intransigente em face da opressão econômica e quanto à exigência ética do cristianismo, mas, para fazê-la prevalecer, não se nega ao diálogo cultural e político, a fim de canalizar para o bem a força histórica do mal. Lucas percebeu, muito antes de Paulo Freire, que a melhor forma de amar os opressores é tirar das mãos deles as armas da opressão.
3. Comunidades nas quais há cristãos que continuam ligados às instituições do Império Romano (Lc 7,1-10). Lucas não quer complicar ainda mais a situação dos cristãos que já estavam sendo perseguidos quando o Evangelho, primeira parte da sua obra, fora escrito. Ele demonstra simpatia pelos romanos ao dar a entender que a própria condenação de Jesus foi motivada pela ignorância romana¹. Por uma tática de sobrevivência, Lucas tenta passar a ideia de que as comunidades cristãs não são revolucionárias, subversivas. Assim, não cutuca a onça com vara curta, mas se prepara para cutucar com vara grande.
4. Comunidades que revelam um contexto patriarcal e machista. As mulheres, de uma forma geral, eram desprezadas e marginalizadas na sociedade. Mas no Evangelho de Lucas, Jesus dá prioridade às mulheres², valoriza sua presença e atuação nas comunidades e na sociedade. “Na narração do nascimento de João Batista e de Jesus (Lc 1,5–2,52) rompe-se o padrão que colocava o homem em primeiro plano e que deixava à margem tanto a mulher como a criança. Nessas narrativas, as crianças são apresentadas junto com a presença atuante de suas mães. Elas é que são protagonistas da novidade, anunciadoras das “grandes coisas que o Poderoso fez” (Lc 1,49)³, mesmo vivendo em um contexto patriarcal e machista.
5. Comunidades com pessoas cansadas, medrosas, desanimadas e perdidas por causa da situação na qual viviam (Lc 24,13-24). Os cristãos são uma minoria perdida no meio de um imenso império, nas periferias das grandes cidades. Apenas alguns milhares no meio de um Império com cerca de 60 milhões de pessoas. Uns começam a abandonar as comunidades; outros duvidam que Jesus seja o Salvador, têm dificuldade de acreditar que seja possível viver em fraternidade e resistir ao império com suas seduções opressoras.
6. Comunidades com diversidade de dons os quais se articulavam por meio do cimento da solidariedade. Isso é ótimo, pois o Espírito não se deixa encurralar e não aceita ser engaiolado; sopra onde quer, como quer; é livre e liberta. Paulo reitera diversas vezes: “Não percam a liberdade cristã!” (2Cor 3,17); “Não entristeçam o Espírito Santo!” (Ef 4,30).
Oxalá esse simples texto ajude na compreensão do Evangelho de Lucas e, principalmente, nos inspire na construção de comunidades que, de fato, tenham um rosto parecido com o rosto das Primeiras comunidades cristãs.
Notas: [¹] Cf. Lc 23,34; At 3,17; 7,60; 13,27; 16,29-40; 18,12-17.
[²] Cf. Lc 7,36-50; 8,1-3; 10,38-42; 13,10-17; 15,8-10.
[³] VASCONCELLOS, P. L. A Boa Notícia segundo a comunidade de Lucas. São Leopoldo, CEBI, 1998. p. 37. (Coleção A Palavra na Vida 123/124)
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Rosto das comunidades de Lucas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU