03 Dezembro 2012
As negociações para entrada da Bolívia no Mercosul, a serem iniciadas oficialmente com a reunião do bloco, nesta semana, começam em um momento dos mais delicados da relação do país andino com o Brasil. Enquanto avança a cooperação bilateral no combate às drogas e aos crimes transfronteiriços, brasileiros no país cobram apoio de Brasília para defender os interesses de empresas prejudicadas nos negócios, de cidadãos vitimados por um Judiciário kafkiano, de produtores rurais com terrenos invadidos sem amparo da polícia e Justiça locais e dos donos de carros, que tiveram seus carros roubados e recuperados, mas não devolvidos até hoje.
A reportagem é de Sergio Leo e publicada pelo jornal Valor, 03-12-2012.
O governo Evo Morales tem pressa para entrar no Mercosul, onde espera encontrar apoio econômico, e está às voltas com um escândalo político, do tipo que de vez em quando assola países da região. Altos funcionários do governo foram presos após o desbaratamento de um esquema que incluía extorsão contra oposicionistas presos, ameaças a juízes e documentos forjados para prisão e soltura de indivíduos.
A quadrilha foi desmascarada com intervenção do FBI, a polícia federal dos EUA, com quem o governo boliviano passou a cooperar, após gestões do governo americano e até um pedido pessoal ao presidente Evo Morales do ator Sean Penn, amigo de uma vítima dos bandidos.
A prisão da quadrilha foi provocado pelo caso dantesco de um americano preso há 18 meses "preventivamente", que teve seus bens apreendidos e vendidos pelos bandidos, aproveitando a máquina de governo. Nada parecido ocorreu com cidadãos do Brasil lá, mas estudantes brasileiros se queixam de achaques da polícia, que lhes cobra documentos, cuja entrega é inexplicavelmente retardada pela burocracia boliviana.
O mesmo retardo ocorre com papéis de regularização de terras, expondo fazendeiros a ações arbitrárias. Também sem explicação está o atraso na devolução de centenas de automóveis brasileiros roubados e apreendidos em território boliviano, onde apodrecem sem liberação.
É séria a situação de empresas brasileiras atraídas à Bolívia por negociações com o governo ou empresários locais. Caso notável é o da D'Andrea Agrimport, empresa contratada para fornecer máquinas e montar uma fábrica de papel estatal. O governo boliviano deveria garantir as obras de engenharia e fornecimento de gás, água e eletricidade - serviços contratados (e não entregues até hoje) a uma empresa boliviana dirigida pelo irmão de um bem conectado vice-ministro de governo.
O diretor da empresa brasileira teve o contrato rescindido por acusação de descumprimento de prazos, autoridades bolivianas o acusam - sem provas - nos jornais de entregar máquinas velhas, teve rejeitadas (por pressão do governo, segundo alega) suas tentativas de recorrer a arbitragem e só na sexta-feira, quase um ano depois de iniciado o caso, permitiu-se que fosse ouvido no processo.
O risco de intervenções indevidas sobre árbitros em disputa judicial também paira sobre a OAS, que, ameaçada de multas questionáveis, prepara sua retirada do país, após ver atoladas, em conflitos políticos, obras de estradas contratadas pelo governo boliviano.
Há um ano, a Votorantim tenta viabilizar o maior investimento privado previsto no país, uma fábrica de cimento, de US$ 180 milhões, já aprovada pelo governo boliviano, que não dá, porém, as necessárias garantias de fornecimento de gás. Autoridades locais alegam falta de estudos para comprovar que não haverá ameaça ao contrato de fornecimento de gás ao Brasil ou ao ambiente.
A empresa já encaminhou essas garantias à diplomacia boliviana, mas o fato de que os sócios da brasileira são empresários afastados do grupo alinhado com o governo é apontado por conhecedores do caso como um dos possíveis motivos das dificuldades.
Nem todas as histórias têm o Brasil como vítima e a Bolívia no papel de vilão. Com a greve nas aduanas brasileiras, uma operação de fabricação de cimento da fábrica da Votorantim no Mato Grosso, com uso de matéria-prima dos sócios bolivianos, sofre com retenções arbitrárias dos fiscais no Brasil, que chegam a levar dias para liberar caminhões, que antes transitavam diariamente, por mais de uma vez, pela fronteira. Falta cimento na Bolívia, e o Brasil tem parte de culpa nisso. Assim como os produtores de soja se queixam de que o Ministério da Agricultura levou um ano para liberar os papéis necessários à venda, no mercado do Brasil, do grão excedente boliviano.
Os bolivianos queixam-se, ainda, do atraso no repasse de cerca de US$ 700 milhões prometidos pelo Brasil pelos componentes nobres do gás importado da Bolívia. A falta de diálogo claro em temas como esse e as peraltices da burocracia brasileira não são o que se esperaria de um líder regional. Menos ainda é aceitável que, pelo temor de parecer uma espécie de subpotência imperialista, o Brasil deixe de exigir do governo boliviano revisão das decisões oficiais que causam injustamente prejuízo a cidadãos brasileiros no país vizinho - como fez o governo dos EUA no caso do americano preso arbitrariamente.
A Bolívia tem um bom argumento: as mazelas na Justiça e em outras instâncias de poder não são dirigidas contra o Brasil, mas um problema tradicional, contra o qual, teoricamente, tem atuado o presidente Evo Morales. Também lembram a mudança tectônica no arcabouço jurídico do país após a Constituição votada em 2009, com regras inéditas- de difícil absorção, aliás, já que permitem decisões judiciais paralelas, segundo a tradição dos povos indígenas.
Isolada na Comunidade Andina das Nações, de quem depende, mas que adota um franco liberalismo, a Bolívia, para entrar no Mercosul, terá não poucos desafios. O Brasil, na condição de líder regional, perderá uma oportunidade de peso se não aproveitar o processo de inclusão para cobrar e promover maior transparência e previsibilidade nas ações do governo boliviano - que, aliás, anuncia a edição, em breve, de uma lei de proteção ao investidor.
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Negócios na Bolívia, que deseja o Mercosul - Instituto Humanitas Unisinos - IHU