30 Novembro 2012
A infância de Jesus segundo Ratzinger: um Menino que nasce de "uma jovem desconhecida, em uma pequena cidade desconhecida, em uma desconhecida casa privada. O sinal da Nova Aliança é a humildade, o escondimento".
A análise é de Gianfranco Ravasi, cardeal presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 25-11-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Poucos sabem que o último livro a ser posto no Index – antes da sua abolição desejada por Paulo VI – foi uma Vie de Jésus (1959) de um conhecido biblista francês, Jean Steinmann, e a motivação se referia ao capítulo dedicado aos chamados "Evangelhos infância", interpretados substancialmente como parábolas teológicas sem vínculos históricos verificáveis. Trata-se de 180 versículos distribuídos em quatro capítulos, dois postos na abertura do Evangelho de Mateus e dois no limiar do de Lucas.
Páginas que geraram um ininterrupto fio dourado artístico, literário, musical e que foram assediados por uma verdadeira selva bibliográfica exegética. Relatos que se movem nos trilhos da narração, dotada de uma extraordinária montagem quase fílmica, e no da teologia, tanto que, subentendidas a eles, encontramos dois núcleos capitais da profissão de fé cristã: de um lado, a descendência histórica davídica e, portanto, messiânica de Jesus de Nazaré e, de outro lado, a sua concepção virginal por obra do Espírito Santo e, consequentemente, a divindade filiar do próprio Cristo.
A esses "Evangelhos da infância", Joseph Ratzinger-Bento XVI dedicou a terceira e última tábua do seu tríptico sobre Jesus de Nazaré. No prefácio, ele nos propõe uma metáfora descritiva para definir essa sua análise da infância de Jesus: estamos como que na "sala de entrada" daquela solene arquitetura já vasculhada nos dois livros anteriores, que colocavam em cena a vida pública de Cristo e a sua morte com o atracadouro na glória da ressurreição.
Bento XVI abre o seu livro com a técnica quase cinematográfica da antecipação: na "sala de entrada", ele faz ressoar uma pergunta que ecoará mais além sob as abóbadas do pretório romano de Jerusalém, quando o governador Pilatos interpelará o acusado Jesus: "De onde tu és?" (João 19, 9). Essa pergunta de sabor meramente cartorial se reveste, para o quarto Evangelho, de uma piscadela transcendente ulterior.
Pois bem, a interrogação tem a sua resposta justamente nesses 180 versículos que agora o papa vasculha em um itinerário quase narrativo nas suas etapas principais: a anunciação e o nascimento tanto de João Batista, o Precursor, quanto de Jesus, e a cena de Magos com a sucessiva fuga para o Egito e o retorno para a Galileia.
Agora, queremos apenas identificar alguns fios interpretativos que Bento XVI desenrola dentro da sua leitura desses textos. O primeiro e fundamental é o que faz rodar em interação história e fé, com base também na asserção central do cristianismo: o Logos eterno e infinito que é Cristo Deus se torna sarx, "carne", contingência, temporalidade, finitude, mortalidade, humanidade.
Eis-nos, portanto, diante da pergunta básica: "Trata-se verdadeiramente de história ocorrida, ou é apenas uma meditação teológica expressa em forma de história?". Todo quadro da infância de Jesus é submetido, portanto, pelo papa a uma verificação essencial de historicidade, até porque muitos exegetas optaram, não raramente, por uma chave "midráshica", para a qual estaríamos na presença de uma espécie de narração parabólica (o hebraico midrash) em torno de temas, teses, textos bíblicos e cristãos, ou seja, de uma espécie de dramatização narrativa de verdades teológicas.
A interpretação de Bento XVI é diferente: trata-se de "acontecimentos históricos cujo significado foi teologicamente interpretado pela comunidade cristã e pelos Evangelhos". E ainda: "Jesus não nasceu e apareceu em público no impreciso 'uma vez' do mito. Ele pertence a um tempo exatamente datável e a um ambiente geográfico exatamente indicado: o universal e o concreto se tocam reciprocamente".
Não é por nada que, nos textos, abundam as referências às coordenadas geopolíticas, destinadas a exercitar a acribia da exegese histórico-crítica, de Belém a Nazaré, de Augusto a Herodes, do Templo de Jerusalém com o seu culto ao censo imperial de Quirino. E, em apoio a essa historicidade, ele propõe a sugestiva classificação dos relatos sob o gênero das "tradições familiares", verdadeiro "fundamento judaico-cristão proveniente da tradição da família de Jesus".
No antigo Oriente Próximo, esses memoriais históricos clânico-familiares tinham um tal destaque a ponto de serem considerados semelhante a patrimônios, protegidos com fidelidade nas páginas vivas da fértil memória semita. Mas há mais: nesses eventos históricos estruturais, cruza-se também o transcendente, e esse contato faz brotar centelhas em nível de interpretação. Em uma página muito poderosa, o papa se refere ao grande teólogo protestante Karl Barth, que definia claramente os dois pontos em que Deus intervém no mundo material: o nascimento de Jesus da Virgem e a sua ressurreição do sepulcro.
E comenta: "Esses dois pontos são um escândalo para o espírito moderno. A Deus, é concedido agir sobre as ideias e sobre os pensamentos, na esfera espiritual, mas não na matéria... Mas se Deus também não tem poder sobre a matéria, então ele não é Deus". Como é claro, divino e histórico se encontram em uma única encruzilhada, e, portanto, essas páginas exigem uma interpretação conjunta entre teologia e história.
Há um segundo fio interpretativo adotado por Ratzinger, o do nexo entre história e profecia: é conhecido, de fato, que Mateus constrói o seu edifício narrativo da infância de Jesus sobre uma sequência de citações bíblicas. Cria-se, assim, um contraponto entre profecia e evento.
Ratzinger usa uma fórmula sugestiva: chama os anúncios proféticos de "palavras em expectativa" de receber a sua decifração plena, o seu "protagonista". Essas palavras em si mesmas germinais desembocam em Cristo, como no célebre caso do oráculo de Isaías (7, 14) sobre a "jovem"/"virgem" que gera o Emanuel. Por isso, "na história de Jesus, as palavras antigas tornam-se realidade (...) e a história de Jesus provém da Palavra de Deus, sustentada e tecida a partir dela".
Também é possível ampliar esse olhar retrospectivo para além das profecias bíblicas e – como faz Bento XVI – aplicá-lo analogicamente à famosa IV Écloga de Virgílio, com as suas imagens geracionais, muitas vezes relidas em chave cristã, e até – seja mesmo que por superação – pode-se remeter à inscrição augusta de Priene (9 a.C.), onde nos deparamos com um léxico relido pelo cristianismo ("salvador, paz, ecumeno, evangelho"): talvez "os sonhos secretos e confusos da humanidade de um novo início se realizaram no acontecimento de Cristo, em uma realidade como só Deus pode criar". A figura dos Magos se torna, a esse respeito, emblemática: "Eles representam o encaminhamento da humanidade para Cristo, inauguram uma procissão que percorre a história inteira".
Por fim, há uma última sugestão que o Papa Ratzinger dá para a atual (mas também tradicional) narratologia: estão em ação dois atores, o autor e o leitor. Sobretudo diante de textos performativos e não meramente informativos como são os religiosas, o puro movimento "centrípeto" ("o que eles dizem em si mesmos") deve se conjugar com um percurso "centrífugo", que chega até hoje ("o que eles dizem para mim").
É nessa base que as páginas de Bento XVI são constantemente revestidas de interpelações dirigidas ao leitor. Assim, apenas para exemplificar, a relação entre fé e política é retomada no seu duplo perfil: "Às vezes, ao longo da história, os poderosos deste mundo atraem para si o reino de Deus; mas justamente então ele está em perigo: eles querem conectar o seu poder com o poder de Jesus, e justamente assim deformam o seu reino, o ameaçam. Ou seja, ele é submetido à insistente perseguição por parte dos dominadores, que não toleram nenhum reino e desejam eliminar o rei sem poder, cujo poder misterioso, no entanto, eles temem".
Uma nota final à margem. Diferentemente de muitos teólogos que se envolvem no manto da autorreferencialidade linguística, listrada de obscuridade esotérica e oracular, intransponível para "as pessoas que não conhecem a lei" (João 7, 49), Ratzinger adota uma linguagem sempre límpida, essencial, incisiva, até mesmo humilde ("não encontrei até agora uma explicação plenamente convincente disso...").
Ratzinger coloca em prática aquele princípio que Wittgenstein havia cunhado (mas havia seguido pouco) no seu Tractatus Logico-Philosophicus: "Tudo o que pode ser dito, pode ser dito claramente", e também aquele grande orador que era São Bernardino de Siena advertia que "aquele que fala claro tem clara a sua alma".
Essa virtude, aliás, é exigida pelo próprio objeto daqueles 180 versículos, que têm no seu centro um Menino que nasce de "uma jovem desconhecida, em uma pequena cidade desconhecida, em uma desconhecida casa privada. O sinal da Nova Aliança é a humildade, o escondimento".
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Quando Jesus era menino. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU