03 Novembro 2012
"Interpretar o Vaticano II já é em si um ato de recepção do concílio", afirma o Prof. Dr. Rodrigo Coppe Caldeira, historiador e professor Adjunto da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, em entrevista concedida a Daniel Marques e publicada por Zenit, 02-11-2012.
Segundo o historiador, citando o jesuíta John O'Malley, "o Vaticano II (significou) um "dramático deslocamento de estilo", uma nova maneira de pensar a relação entre a Igreja e o mundo, não marcado por anátemas, mas por relação convidativa, aberta e dialogal". Ou seja, "o Vaticano II transformou o modo da Igreja falar do mundo e com o mundo, e palavras como “cooperação”, “parceria”, “colaboração” e “diálogo” são constantes em seus documentos para definir esta relação".
Eis a entrevista.
Poderia explicar o Concilio Vaticano II no contexto histórico do século XX?
Entender o concílio num contexto histórico mais alargado é um esforço que venho fazendo. De fato, este esforço é necessário na medida em que se busque uma hermenêutica do concílio em que leve em conta tanto o seu lugar particular na história dos concílios da Igreja, sendo aquele que recepciona as determinações dos anteriores, e também como aquele que traz novas formas da Igreja pensar a si mesma e suas relações com o mundo contemporâneo. Dessa forma, é de central importância compreendê-lo numa convergência histórica que possibilite vizualizá-lo numa longa duração, sendo ele mesmo entendido como um "evento de recepção", além, claro, de criador de novas possibilidades da Igreja caminhar e ser sinal na história humana. Lembro-me, assim, de vários movimentos eclesiais que abriram os caminhos para que a Igreja se pensasse e agisse de forma não mais apenas antinômica ao mundo, mas oferecesse outras perspectivas, atualizadas (aggiornamento), de compreensão de si, de formas de atuação, de encontro com a pluralidade contemporânea. Foram estes movimentos que se delinearam inicialmente no final do século XIX e início do XX, como o movimento litúrgico, o bíblico, o teológico, especialmente com a emergência da eclesiologia de comunhão, o leigo, com cada vez mais ativa participação dos fieis na obra evangélica, que serão recepcionados no Vaticano II em várias de suas perspectivas.
Cada período histórico possui sua própria modernização, entendida como período de mudanças sociais, políticas, culturais, econômicas e religiosas. O que a história nos ensina sobre o esforço da Igreja Católica em dialogar com esse mundo em mudança?
Utilizando-se de uma linguagem teológica, podemos dizer que a Igreja age no mundo a partir da atuação do Espírito Santo. A Igreja peregrina, assim, mantém viva a força do Evangelho durante os séculos a partir da sua capacidade em se adptar aos meios mais adversos. O Vaticano II - inclusive compreendido como um "novo Pentecostes" por João XXIII, o papa que o convocou - representa mais um destes momentos históricos que exigem da Igreja uma resposta, uma transformação, uma conversão, a fim de que se torne mais fiel ao Evangelho e que, a partir de uma linguagem que seja compreensível ao homens contemporâneos, possa se fazer presença, inspirando-os sempre e mais profundamente a vivê-lo de maneira criativa e fiel.
Quais as novidades do CVII? O que significa interpretar o CVII? É possível compreender e interpretar o CVII sem considerar o processo de recepção?
Eis a pergunta que não quer calar, e é bom que não se cale, pois isso demonstra que estamos pensando o concílio e as maneiras de recepcioná-lo. São inúmeras as transformações da Igreja como evento conciliar. E aqui cito algumas: redescoberta da teologia patrística, a compreensão da Igreja como comunhão de fiéis, não apenas uma instituição jurídica visível, mas Corpo Místico de Cristo, a abertura ao diálogo ecumênico e interreligioso, a compreensão da positividade da liberdade religiosa, a centralidade da Palavra de Deus, entre muitas outras.
Interpretar o Vaticano II já é em si um ato de recepção do concílio. Assim, especialmente depois do discurso de Bento XVI aos cardeais no Natal de 2005, quando o papa fez referência às hermenêuticas do concílio, os debates sobre a temática vêm crescendo entre teólogos e historiadores. Assim, todo processo de recepção é um ato interpretativo que se dá tanto no âmbito do Magistério da Igreja, como também entre as Igrejas Particulares, que, em seu contexto sócio-político, econômico e cultural, lêem e interpretam - ou seja, recepcionam - as determinações conciliares, encarnando suas principais intuições em função da realidade circundante. Observem, por exemplo, a Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano de Medellín ocorrida em 1968. Esse grande encontro é compreendido como um ato interpretativo do concílio para a realidade de nosso continente. O que o concílio nos diz, o que ele traz para a nossa realidade
O que se pode dizer do CVII como evento lingüístico?
A tese que compreende o Vaticano II como um evento linguístico é do padre norte-americano John O'Malley. Esta é apenas mais uma forma, entre tantas outras, de se interpretar o Vaticano II, de fato, muito plausível. Entender o Vaticano II como um "evento linguístico" é tentar a partir da linguagem dos textos conciliares, de sua retórica, compreender o seu "espírito", o "espírito do concílio". Segundo O'Malley, ocorre com o Vaticano II um "dramático deslocamento de estilo", uma nova maneira de pensar a relação entre a Igreja e o mundo, não marcado por anátemas, mas por relação convidativa, aberta e dialogal. Outras palavras que aparecem nos documentos finais e trazem esta perspectiva inaugurada por Roncalli em seu discurso de abertura do concílio são “desenvolvimento”, “progresso” e até mesmo “evolução". Palavras que assinalariam o deslocamento perpetrado pelo concílio. Notavelmente, em seus textos, não estão presentes palavras de exclusão, inimizade, intimidação, punição e vigilância. Dessa forma, entendido como um evento linguístico , o Vaticano II transformou o modo da Igreja falar do mundo e com o mundo, e palavras como “cooperação”, “parceria”, “colaboração” e “diálogo” são constantes em seus documentos para definir esta relação.
Você considera que apesar dos 50 anos do CVII ainda não existe um debate que permita uma compreensão da complexidade e importância desse evento?
Surgem, aqui e ali, algumas falas que tentam desqualificar o evento. Porém é possível notar que Bento XVI está muito atento a estas questões. Ao meu juízo, a temática do concílio é a principal na agenda do atual papado, como também já o era no do beato João Paulo II. Acredito que o debate se aprofunda cada vez mais, já que a recepção do Vaticano II é crucial para a Igreja do terceiro milênio. Todavia, é preciso estar atentos aos termos do debate e o lugar do concílio na história bimilenar da Igreja.
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Concilio Vaticano II no contexto histórico do século XX - Instituto Humanitas Unisinos - IHU