08 Outubro 2012
Os sistemas produtivos do Cerrado “estão pautados em um modelo tecnológico que, além de desmatar grandes extensões de vegetação nativa e gerar poucos empregos, utiliza grandes quantidades de insumos químicos”, diz a coordenadora administrativa da Rede Cerrado.
Confira a entrevista.
As monoculturas que invadem o cerrado brasileiro são hoje o principal entrave à conservação do bioma. As plantações de soja, algodão, cana-de-açúcar e eucalipto já contribuíram para devastar metade dos dois milhões de km² do bioma, e “22 milhões de hectares já estão ocupados por cultivos agrícolas”, assinala a pesquisadora Lara Montenegro em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.
Em sua avaliação, a situação ambiental do bioma é um reflexo do “entendimento” do governo federal em relação à área. “O cerrado é a principal frente para a expansão do agronegócio” e é através da expansão agrícola no ecossistema que o governo pretende aumentar o “PIB e o superávit primário”, lamenta. Segundo Lara, “as linhas de crédito do Ministério da Agricultura para os grandes produtores de commodities são absurdamente superiores àquelas oferecidas pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário aos agricultores familiares, que são responsáveis por 70% dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros”.
Além da cana-de-açúcar, que abastece o setor sucroalcooleiro, o cerrado brasileiro está sendo invadido pela plantação de pinus e eucalipto. Conforme a pesquisadora, somente em 2010 mais de “6,5 milhões de hectares” do bioma eram destinados à silvicultura. Entretanto, apesar da constatação dos impactos ambientais, como a exaustão de nascentes e mananciais, “os Planos Setoriais de Mitigação e de Adaptação às Mudanças Climáticas, que estão sendo desenvolvidos pelo governo federal, preveem a ampliação desses plantios florestais em três milhões de hectares até 2020”, para substituir o carvão nativo.
Lara Montenegro é assessora técnica do Instituto Sociedade, População e Natureza – ISPN e coordenadora administrativa da Rede Cerrado. Faz parte da equipe de coordenação do VII Encontro e Feira dos Povos do Cerrado, ao lado de representantes de outras organizações.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é a situação e as demandas para a conservação do bioma Cerrado?
Lara Montenegro – O Cerrado ocupa quase ¼ do território nacional, o equivalente a dois milhões de km². Hoje, mais da metade dessa área já se encontra devastada, e muitas das regiões que ainda contam com cobertura vegetal estão fortemente antropizadas e sob grande pressão da expansão da demanda por terras para o agronegócio. A pecuária extensiva também é uma grande ameaça ao bioma, principalmente por conta das baixas tecnologias empregadas e do péssimo índice de produtividade: uma cabeça de gado por hectare. O precário manejo das pastagens resultou em mais de 4,2 milhões de hectares de pastagens degradadas, o equivalente a 10% da terra utilizada para pecuária no Cerrado.
Da perspectiva de conservação, há diferentes estratégias a serem promovidas e incentivadas por meio de políticas públicas e por iniciativa da sociedade civil. A Rede Cerrado entende que é fundamental fomentar modos de vida tradicionais que promovem o uso sustentável da biodiversidade (que aliam geração de renda, qualidade de vida e conservação da natureza), garantindo terra e acesso a recursos para agricultores familiares e povos e comunidades tradicionais. Nesse sentido, a demanda prioritária é de reconhecimento e demarcação de terras indígenas, territórios quilombolas e de comunidades tradicionais, áreas que ainda se encontram conservadas em função dos modos de vida desses grupos, mas que estão sob ameaça permanente.
Na Carta dos Povos do Cerrado, elaborada ao final do VII Encontro dos Povos do Cerrado, ocorrido em setembro em Brasília, está listada uma série de demandas nesse sentido. A estratégia de conservação pelo uso sustentável da biodiversidade tem potencial para ser aplicada em grande escala, inclusive fora de áreas protegidas. Além disso, propõe atividades econômicas em áreas que continuarão provendo seus serviços ambientais. A viabilização da atividade agroextrativista é, portanto, de grande urgência. Hoje, estas cadeias produtivas encontram todos os tipos de dificuldades fiscais, sanitárias e ambientais, que praticamente inviabilizam sua existência.
IHU On-Line – Nos últimos anos tem aumentado a plantação de eucalipto no Cerrado brasileiro. É possível estimar que percentual do território já é ocupado por essa cultura?
Lara Montenegro – Em 2010, a área plantada de pinus e eucalipto no Brasil era de mais de 6,5 milhões de hectares, área maior que as dos estados do Rio de Janeiro e de Sergipe somadas. Essas monoculturas ocupam uma área cada vez maior no Cerrado, principalmente no norte de Minas Gerais e no sul da Bahia. A atividade gera poucos empregos e é responsável por grande parte dos problemas que o bioma e seus povos têm enfrentado. Por serem árvores de crescimento rápido, ciclo curto e que são plantadas em elevada densidade, há grande demanda de água, o que frequentemente leva à exaustão de nascentes e mananciais. Além de reduzir a quantidade de água, a qualidade do solo e a biodiversidade, as plantações de eucalipto muitas vezes causam o isolamento de comunidades locais, impedindo seu acesso a recursos naturais essenciais a sua sobrevivência.
Apesar disso, os Planos Setoriais de Mitigação e de Adaptação às Mudanças Climáticas, que estão sendo desenvolvidos pelo governo federal, preveem a ampliação desses plantios florestais em três milhões de hectares até 2020. Partem do princípio de que o uso do eucalipto substituirá o carvão retirado do Cerrado nativo para a siderurgia. Porém, a solução não é tão linear quanto parece. Há muitos problemas ambientais e sociais associados a estes cultivos, já apontados por organizações e pesquisadores, como a Rede Alerta Contra o Deserto Verde.
IHU On-Line – Por que as monoculturas são prejudiciais para o bioma? Há algum controle em relação às plantações e à degradação gerada?
Lara Montenegro – A maior frente de expansão do cultivo de cana para produção do biocombustível etanol, de soja para exportação, de eucalipto para produção de celulose e de carvão para a siderurgia está ocorrendo no Cerrado, empurrando outras culturas e a criação de gado para áreas mais distantes, nas partes norte e oeste do Cerrado e sul da Amazônia.
Em geral, qualquer plantio homogêneo causa problemas que já são bem conhecidos. Estes problemas são ambientais (práticas agrícolas inadequadas que causam erosão, perda de biodiversidade, contaminação de mananciais e de pessoas com agrotóxicos, emissão de gases de efeito estufa) e sociais (expulsão de comunidades de seus territórios, concentração de renda, destruição de recursos naturais amplamente utilizados pelas comunidades locais).
Especificamente no caso da cana-de-açúcar, com o aumento das áreas plantadas, é cada vez mais frequente a constatação de problemas que envolvem a não observância das áreas de preservação permanente e a prática de trabalho escravo ou similar ao escravo. Na maioria dos casos, os trabalhadores são horistas e ganham por produtividade, trabalhando à exaustão, sob más condições de alojamento e alimentação. Tais questões precisam ser devidamente consideradas na discussão da estratégia do governo federal de promoção em larga escala do uso de biocombustíveis.
IHU On-Line – Como as comunidades tradicionais do Cerrado têm utilizado a terra?
Lara Montenegro – Muitas comunidades tradicionais e agricultores familiares comprometidos com a conservação do bioma têm trabalhado no sentido de aproveitar os ricos recursos oferecidos pelo Cerrado, por meio do extrativismo de frutos e produtos tais como o baru, o pequi, o babaçu, o buriti, a gueroba, entre outros. Tais recursos são utilizados para a produção de alimentos, fitocosméticos, artesanato etc., a partir de um conhecimento consolidado e transmitido através de gerações.
A aliança entre agricultura familiar e extrativismo sustentável (baseado em boas práticas de manejo na coleta) tem rendido bons resultados tanto do ponto de vista de conservação do bioma como do de geração de renda e qualidade de vida para a população do campo. O resgate de sementes crioulas tem permitido a muitos grupos retomar o cultivo de alimentos que vinham se perdendo. Práticas agroecológicas também vêm progressivamente ganhando espaço e se disseminando, consolidando-se como uma estratégia fundamental para melhoria da qualidade do solo, aumento da produtividade, conservação de biodiversidade e manutenção de serviços ecossistêmicos.
No caso das comunidades que vivem em áreas coletivas e protegidas (como alguns grupos quilombolas e indígenas), verifica-se que fazem melhor uso da área do que a média da região. Há um padrão verificado internacionalmente (e no Brasil não é diferente) que comprova que as florestas geridas por comunidades em geral são as áreas mais bem preservadas. Esses padrões são facilmente verificáveis por imagens de satélites.
IHU On-Line – Qual a importância delas para a manutenção e conservação do bioma?
Lara Montenegro – As práticas destes grupos permitem a consolidação do que chamamos de paisagens produtivas sustentáveis, baseadas na produção diversificada da agricultura familiar associada à prática do extrativismo. Dessa forma, a partir da variedade de espécies cultivadas e da manutenção de vegetação nativa, é possível manter fluxos gênicos, estabelecer corredores ecológicos, manter o ciclo hidrológico, entre diversas outras funções. Como se sabe, a diversidade biológica é fundamental para a polinização e para evitar pragas. As práticas de adubação verde também permitem a conservação de água e solo assim como a redução do consumo de fertilizantes.
IHU On-Line – De acordo com alguns pesquisadores, o Cerrado é o bioma menos contemplado pelas políticas públicas e tem menos regras em relação à ocupação. Diante disso, como o agronegócio tem ameaçado a sustentabilidade do bioma? É possível conciliar a conservação do bioma diante do crescimento de monoculturas?
Lara Montenegro – No Cerrado, 22 milhões de hectares estão ocupados por cultivos agrícolas. As monoculturas de maior expressão são as de soja, eucalipto, cana-de-açúcar e algodão. Estes sistemas produtivos estão pautados em um modelo tecnológico que, além de desmatar grandes extensões de vegetação nativa e gerar poucos empregos, utiliza grandes quantidades de insumos químicos, o que levou o Brasil ao posto de maior consumidor de agrotóxicos do mundo. Muitos dos pesticidas utilizados aqui já foram banidos em outros países. O resultado disso é a contaminação da água, do solo, dos alimentos e das pessoas. Tivemos um exemplo recente no Mato Grosso do Sul em que até o leite materno encontrava-se contaminado com agrotóxicos. Frequentemente, essas plantações deixam de herança vastas áreas de solos degradados, que, quando ainda conseguem ser recuperados, levam décadas até que possam voltar a desempenhar seus serviços ambientais para manutenção da água, da biodiversidade e do carbono.
Entendemos que o esforço deve se dar no sentido de destinar as áreas já desmatadas para as atividades de produção de grãos e cana-de-açúcar, aprimorar as tecnologias para ampliar a produtividade da pecuária (reduzindo a demanda de áreas para pastagens) e, por outro lado, garantir o direito à terra e à manutenção de modos de vida tradicionais de agricultores familiares e povos e comunidades tradicionais, de forma associada também à criação de Unidades de Conservação – UCs. Uma estratégia que vem ganhando visibilidade, com bons resultados, é a de criação de mosaicos de áreas protegidas, integrando UCs, terras indígenas e/ou territórios quilombolas, como no caso da experiência do Mosaico Sertão Veredas/Peruaçu, no norte de Minas Gerais. É possível compatibilizar o agronegócio com a conservação do Cerrado, desde que sejam adotadas novas práticas agrícolas que permitam a coexistência dessa atividade com a proteção do bioma. No modelo atual, a coexistência é um desafio quase intransponível.
IHU On-Line – Há denúncias de que as comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas têm sido expulsas dos biomas em que vivem. Isso se repete no Cerrado brasileiro?
Lara Montenegro – O modelo de produção vigente no campo brasileiro tem provocado inúmeros conflitos e causado o isolamento e a perda de territórios de povos e comunidades tradicionais em todo o país. Povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares estão sendo expulsos de suas terras, sofrendo ameaças constantes, com inúmeros casos de assassinato de lideranças comunitárias e indígenas, que infelizmente não têm sido devidamente investigados e encaminhados pelas autoridades competentes.
Há situações críticas e de largo conhecimento público, como o caso da Terra Indígena Xavante Maraiwatsede, no Mato Grosso, homologada em 1998, mas que permanece com 90% de sua área ocupada por fazendeiros e posseiros não indígenas, e dos etnocídios dos Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul e dos Ava-Canoeiro, em Goiás, mas que seguem invisíveis diante das autoridades, pois o poder econômico e os interesses do agronegócio falam mais alto do que os legítimos pedidos de reconhecimento de direito à terra de povos indígenas e comunidades tradicionais. Como forma de desestruturar as lutas destas minorias, as terras em disputa estão sendo queimadas e desmatadas por latifundiários.
IHU On-Line – De acordo com alguns pesquisadores, o Parque Nacional das Nascentes do Parnaíba está “na mira” de grupos econômicos, que pretendem utilizar as águas dos rios para formar lagos de usinas hidrelétricas ou plantações de soja. A informação procede? Qual a situação das unidades de conservação do bioma?
Lara Montenegro – A situação geral das unidades de conservação do bioma é de grande isolamento diante de uma área crescente de monoculturas em seus entornos. Apenas 2,8% do território do Cerrado encontra-se protegido por meio de unidades de conservação de proteção integral, e há mais de sete anos não se cria nenhuma nova unidade de conservação no bioma. Há entraves em função dos interesses do setor de mineração e do agronegócio, e as negociações dentro do governo federal não avançam. Além disso, as reservas extrativistas (ou simplesmente Resex) homologadas nunca foram implementadas, isto é, a regularização fundiária nunca se efetivou, o que tem gerado conflitos permanentes. Para completar, muitas das áreas previstas para criação de Resex vêm sendo destruídas com vistas a inviabilizar sua constituição, como ocorreu recentemente na área prevista para a Resex Areião/Vale do Guará, no norte de Minas, que foi foco de incêndios criminosos neste mês de setembro.
IHU On-Line – A senhora participou do encontro da Rede Cerrado com a ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira? Como foi a conversa e de que forma a ministra se posiciona diante das demandas do Cerrado? Nesse sentido, qual é a postura do governo brasileiro em relação à conservação do bioma?
Lara Montenegro – Na tarde do dia 13 de setembro, após o Grito do Cerrado, realizado na Esplanada dos Ministérios, a ministra Izabella Teixeira recebeu uma comissão de cerca de 20 representantes da Rede Cerrado, onde foram discutidas rapidamente algumas estratégias prioritárias para a defesa do bioma.
A ministra enfatizou a importância do Cerrado e da Caatinga, que não têm a mesma visibilidade que Amazônia e Mata Atlântica, e destacou a preocupação do ministério com o controle de queimadas no Cerrado. Ela autorizou o uso de recursos do GEF Cerrado para realizar o mapeamento de conflitos no bioma, mas declarou desconhecer diversas demandas pela criação de UCs.
No entanto, o entendimento predominante no âmbito do governo brasileiro é o de que é necessário ampliar o PIB e o superávit primário, e o Cerrado é a principal frente para a expansão do agronegócio. Assim, as linhas de crédito do Ministério da Agricultura para os grandes produtores de commodities, por exemplo, são absurdamente superiores àquelas oferecidas pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário aos agricultores familiares, que são responsáveis por 70% dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros.
No âmbito do próprio Ministério do Meio Ambiente, as ações voltadas para o Cerrado andam a passos lentos, como é o caso do Programa Cerrado Sustentável, criado em 2005, mas sem recursos orçamentários para sua implementação, e o Zoneamento Ecológico Econômico do bioma, que se arrasta há anos e que sequer tem a etapa de diagnóstico concluída. O fato de não se criar nenhuma unidade de conservação no bioma há sete anos, como disse acima, reforça o entendimento de que a conservação do Cerrado está longe de ser um tema prioritário para o governo brasileiro.
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Cerrado, mera fonte para aumentar o PIB brasileiro. Entrevista especial com Lara Montenegro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU