02 Outubro 2012
Músico, poeta e quadrinista lançam novas obras e fazem de Pelotas (RS) o centro de uma experiência artística original, que rejeita clichês da "brasilidade" e busca agregar a cultura platina à identidade artística nacional. Cosmopolitas, voltaram para produzir na terra natal, onde Ramil fundou sua Estética do Frio.
A reportagem e a entrevista é de Ronaldo Bressane e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 30-09-2012.
Nas últimas semanas, o forasteiro que aportasse em Pelotas jamais acreditaria estar pisando na capital da Estética do Frio. Em 2012, segundo a Embrapa, a cidade teve apenas 10 "horas de frio" no mês de agosto, contra uma média histórica de 68 horas abaixo de 7,2ºC. Mesmo escassas, as horas de frio de Pelotas, propícias ao cultivo de pêssegos e outras culturas que os produtores locais tentam levar para a região, deixam no chinelo a mínima de 9ºC que o paulistano enfrentou no dia mais frio do ano, a última quarta-feira.
Foi debaixo de um calorão carioca, no entanto, que o pelotense Vitor Ramil teve o estalo para criar aquilo que, se não é um movimento artístico no sentido clássico, com manifestos, revistas e dissidências, já é uma das mais interessantes experiências culturais do país: a Estética do Frio.
Não, não se trata de mais lamúrias contra "o eixo Rio-São Paulo". "Não estamos fora do centro, mas no centro de outra história", resume Ramil. Por "outra história", entenda-se produzir, a partir da tradição do sul do Brasil e dos países do Prata, uma "antitropicália", articulando música, literatura e artes gráficas.
"A Estética do Frio reabre uma discussão central no país sobre a sensação de exílio na própria terra, algo que chamo de 'lugar não comum'", diz o crítico e poeta Sérgio Alcides, professor da UFMG.
Ao desembarcar no minúsculo aeroporto, os 35ºC já afastaram a hipótese de um encontro gelado com Ramil e outros artistas locais que, a partir de Pelotas, vêm movimentando suas respectivas áreas.
A microcélula de terrorismo poético, armada por ele ao voltar do Rio nos anos 90, reúne outros "insulados" locais: a poeta Angélica Freitas, que à casa tornou depois de morar em São Paulo, México, Holanda e Argentina, e o quadrinista Odyr Bernardi, vindo do Rio, Curitiba e Porto Alegre. Apesar de residirem a poucos quarteirões de distância, o trio calafrio pouco se frequenta. Mais uma singularidade de Pelotas: uma cidade onde a solidão é acolhedora. Mas, neste abafado 2012, o trio sai da toca.
Em novembro, Ramil lança seu songbook e o álbum Foi no Mês que Vem, com 33 canções de seus 33 anos de carreira, iniciada com o sucesso Estrela Estrela, composto quando o irmão caçula da dupla Kleiton & Kledir tinha 17 anos. Hoje, aos 50, ele desponta como uma das novidades mais interessantes na música e nas letras brasileiras. Os irmãos, que nos anos 80 estouraram com o hit Deu pra ti, dão shows esporádicos.
Parceira de Ramil em um futuro álbum, Angélica, a festejada Angie, 39, publica nesta semana seu segundo livro de poesia, Um Útero É do Tamanho de Um Punho e o primeiro de quadrinhos, o romance gráfico Guadalupe, ilustrado pelo verborrágico Odyr, 45. Ele, por sua vez, publica ainda uma HQ na coletânea Dias Negros (Dead Pop), lançada em Buenos Aires.
Ramil me busca no hotel e, antes de apanharmos Angie e Odyr, damos um giro pelas ruas de calçadas largas com casarões neoclássicos centenários -uns desertos, outros restaurados, muitos decrépitos. "Um amigo chileno se encantou com a cidade. Disse que nunca viu nada tão decadente", sorri o magro e barbado grisalho, que daria um belo e diminuto Cristo nas "Paixões"de Nova Jerusalém. Decadência é virtude em sua obra: remete à paisagem urbana que condensa passado e presente, em diálogo com seus fantasmas.
O charme discreto da decadência, é claro, só tem valor se houve glória. Entre as lagoas dos Patos e Mirim, 250 km ao sul de Porto Alegre, Pelotas é, segundo os locais, "a segunda cidade mais úmida do mundo", só perdendo para Londres. Ramil adora passear em noites de nevoeiro: "Pego o carro, coloco um Radiohead e fico viajando na neblina... Não se vê nada."
A proximidade com o porto de Rio Grande abriu a cidade para o exterior, com a exportação de charque e couro em pelotas, "embarcações fluviais rústicas e improvisadas, feitas de trançado de varas recoberto por couro de boi", como diz o Houaiss. Como o charque dependia da mão de obra escrava, a cidade chegou a ter mais negros que brancos -o censo de 2000 aponta uma população de 16% de negros e mulatos. Virou um polo de religiões afro e tem um carnaval de rua vibrante.
"Uma recordação da infância é a da festa na 15 de Novembro, rua por onde desfilavam blocos e escolas", lembra Ramil. "A batucada reverberando entre os prédios me emocionava. Até hoje, ao ouvir batucada, tenho vontade de chorar."
RAMILONGA
O batuque, que já foi protagonista na música de Ramil em discos como Satolep Sambatown (2007), hoje dá lugar a uma expressão sulista mais arcaica a milonga, "música platina de ritmo dolente", como diz o mesmo Houaiss.
A primeira delas data de 1985: a tristíssima Ramilonga marcou sua despedida rumo ao Rio ("Chove na tarde fria de Porto Alegre.../Nunca mais, nunca mais"). Ao voltar a Pelotas, nos anos 90,
Ramil entendeu que esse ritmo, tão popular entre gaúchos do pampa quanto marginalizado pelo pop sulista, seria o centro de sua obra.
"Há uma tese de que a milonga vem de uma melodia medieval portuguesa que chegou ao Sul do Brasil. Outra diz que nasceu em Montevidéu e que o milongueiro é o improvisador. A mais aceita diz que seria, como o tango, originária da habanera, com nome de origem africana: plural de mulonga, palavra. Milonga seria 'palavras'", diz.
A milonga caiu como luva na Estética do Frio. Ramil vivia em Copacabana e, num dia, tomando mate, viu na TV uma notícia sobre o Carnaval baiano, com todos seminus.
"Tomando o mate, de calção, pensei: 'Jamais estaria atrás ali!'. Daí veio uma matéria sobre o Sul, com imagens dos caras escrevendo nos vidros nevados, e tive duas sensações: saudade e exílio. O jornal tratava o povo seminu com mais naturalidade que as pessoas escrevendo nos vidros. Me veio à cabeça a sensação que todo gaúcho tem de ser ou não brasileiro."
Uma frase de Alejo Carpentier, "o frio geometriza as coisas", deu corpo à imaginação de Ramil. Associou o mate à paisagem plana do pampa e os gaúchos isolados com suas cuias de chimarrão. "O equivalente musical disso seria um cara tocando milonga. Daí surgiram os valores que identifico na Estética do Frio: rigor, concisão, melancolia, profundidade."
A ideia encontrou ressonância na região. "Virou referência. Em 2011, a Bienal do Mercosul mencionou o termo; em Buenos Aires e Montevidéu, é citado como movimento, algo como a tropicália, guardadas as proporções", aponta o crítico Luís Augusto Fischer.
Embora o ramilongueiro não goste de falar em movimento, notam-se as suas reflexões na obra de músicos como o uruguaio Jorge Drexler. Curiosamente, o timbre de voz de Ramil remete a um músico quase antípoda no "rigor" e na "concisão": Caetano Veloso. "Essa influência existe, assim como Chico Buarque, a bossa nova, marcas da minha geração." Como se estendesse uma ponte da milonga ao samba, via bossa -o tropicalismo visto do avesso, do outro lado da ponte.
A ideia de avesso está no apelido que ele criou para a cidade e que colou: Satolep, o título de seu segundo romance (Cosac Naify, 2008), já aparecia no primeiro, Pequod (Artes e Ofícios, 1995), e numa canção de 1984.
"Era coisa de garoto, a ideia de uma cidade mítica, com tempos sobrepostos. Hoje tem Bar Satolep, Padaria Satolep, Ótica Satolep."
Em Pequod, há a busca de um filho pelo pai. No denso Satolep, um fotógrafo volta a Pelotas após 30 anos e encontra um caderno com descrições da cidade. Sai para retratá-la e, ao voltar, lê no caderno a descrição exata do que fotografou, como um oráculo.
"Nesse livro fica clara a vocação para o relato mítico, o que o aproxima de outros descendentes de árabes, como Raduan Nassar e Milton Hatoum", aponta Fischer. No disco mais recente, Délibáb, Ramil radicalizou o diálogo sul-sul ao musicar poemas do quase desconhecido João da Cunha Vargas e milongas de Jorge Luis Borges.
"Ele nunca teve medo de experimentar no pop ou chafurdar na tradição, especialmente na milonga, que não tinha prestígio culto nem aqui nem nos países do Prata. Em Buenos Aires, falam que um brasileiro revitalizou a milonga; algo como um argentino revitalizar o partido alto", diz Fischer
ABSINTO
Pouco antes do jantar regado a absinto, Ramil pega Bernardi e Angélica na casa do quadrinista, numa região remota -Bernardi diz morar "na penúltima rua antes do fim do mundo"-, onde os dois finalizam Guadalupe.
O magérrimo Bernardi, semioculto sob lentes grossas e longos cabelos encaracolados, leva ao jantar um cheiroso pão que ele mesmo fez ("um homem deve ser capaz de produzir o próprio pão", filosofa). Angie leva sua notoriamente enigmática timidez.
A casa centenária dos Ramil foi adquirida e reformada pelo pai, engenheiro civil uruguaio. Os filhos -Isabel, 25, artista plástica, e Ian, 23, músico-, vivem em Porto Alegre. Como Kleiton e Kledir se fixaram no Rio, sobrou para Vitor assumir a casa paterna, onde vive com a mulher, a fonoaudióloga Ana Ruth. Na sala, onde há um piano Fritz Dobbert e dois relógios parados (às 6h e às 12h20), Ramil serve, à moda do século 19, o absinto trazido de viagem à França: água com cubos de açúcar misturada lentamente à bebida, para deixar "escapar" a verde fada do absinto.
A fada flutua por sobre sete músicas do próximo disco inédito de Ramil, a sair em 2013. As canções são baseadas em poemas de Rilke Shake, de Angélica (Cosac Naify, 2007). Musicalmente, numa definição apressada (e temperada pelo absinto), poderiam ser definidos como blues-bossa-milongas.
O forte acento pop é reforçado pelas letras de Angie, que brincam com o cânone e as contradições do amor, sem falar no erotismo desavergonhado -em recente carta ao poeta Fabrício Corsaletti, publicada no blog do Instituto Moreira Salles, Angie reclama: "Há uma pergunta dando voltas em rollers na minha cabeça, e ela veste collant de oncinha e não quer calar: fode-se pouco na poesia brasileira contemporânea, você não acha?". Difícil ver a moça tímida nessa poeta tão despudorada.
VOLTAGEM
O responsável pelo contato entre Vitor e Angélica foi o professor de literatura na USP Augusto Massi, que editou ambos na Cosac Naify. "O trabalho dele como romancista transcende as questões da Estética do Frio. Vitor tem uma prosa com alta voltagem de inteligência e boa dose de melancolia. Já o músico é mais alegre e irônico. Talvez tenha vindo daí a afinidade com Angélica", avalia.
Com a dica de Massi, Ramil musicou Vida Aérea e pediu o contato da poeta -mal sabia que ela também vivia em Pelotas. Angélica levou um susto: Ramil era um mito local. "Foi difícil acreditar que era ele ao telefone, falando que tinha musicado um poema meu, com aquela voz lá dele."
Angie é um mistério. Ao contrário dos colegas, não sai facilmente do casulo. Fala para baixo, com a mão quase em frente à boca, como se olhasse para dentro de si; guarda um ar de criançona no fundo da classe, espiando travessuras alheias. Mas é mais viajante que Ramil e Bernardi. Já leu poemas no Equador, na Alemanha, na Holanda, no México, na Argentina e por todo o Brasil.
"Vou sempre que me chamam. Mas, para morar, prefiro Pelotas, a vida é mais barata e melhor." Nos poemas, o misto de timidez e fome de mundo se reflete no contraste entre humor e contenção.
Para o poeta argentino Anibal Cristobo, sua graça está em desarticular o estereótipo do brasileiro. "Desconstruindo feminilidade e exuberância, Angélica está no outro extremo do Rio 40ºC. Esse olhar não ultrapassaria a esfera política se não fossem poemas muito bem realizados, de um humor lento."
Até em Pelotas Angie é meio nômade. Vagueia entre a casa da mãe e a da irmã, no bairro do Laranjal, vasta praia de areia branca e águas silenciosas da lagoa dos Patos.
Começou a ler poesia aos dez anos, sob o impacto do poema Bicho, de Manuel Bandeira. Hoje seus poemas favoritos são as letras dos rocks da pernambucana Karina Buhr. Jornalista, foi repórter de cidades em "O Estado de S. Paulo", onde achou histórias para criar poemas, mas se encontrou mesmo como tradutora.
Sua poesia, vertida ao alemão, ao inglês, ao espanhol, ao francês, ao romeno e ao sueco, é cheia de referências, mas nada hermética. Dialoga com os mestres sem colocá-los num pedestal. Nesse liquidificador, Rilke pode virar milk-shake, Ezra Pound vai parar numa jaula ("Não Consigo Ler os Cantos") e Homero é tratado sem frescura ("se quiser empreender viagem a ítaca/ ligue antes/ porque parece que tudo em ítaca/ está lotado"). A figura feminina também é uma centelha poética para Angélica: a "Ilustríssima" adiantou, em outubro de 2011, alguns dos poemas da série sobre mulheres que integra seu novo livro (leia em folha.com/ilustrissima).
"Meus poemas são assim, tenho uma ideia, começo a escrever e de repente paro", diz ela, servindo-se o bacalhau com batatas feito pela mulher de Ramil. Até os poemas mais trabalhados são espontâneos, inclusive os que têm certa aparência de "malfeitos". Caso das séries "3 Poemas com o Auxílio do Google", em que o automatismo da ferramenta "autocompletar" do sistema de buscas traz resultados entre o cômico e o melancólico.
"Ela combina o lírico e o satírico de forma sofisticada. Angélica é precursora no Brasil da 'googlagem', carro-chefe da poesia flarfista, surgida na última década nos EUA", conta Cristobo.
SOLITÁRIO
A terceira ponta do tridente gelado, Odyr Bernardi, é daqueles caras solitários que, quando começam a falar, desembestam. Bernardi voltou a Pelotas para dedicar-se só aos quadrinhos. No Rio, foi diretor de arte da Desiderata, responsável pela reedição de clássicos do Pasquim.
Mas, no Rio, ele não conseguia se concentrar em suas histórias -a não ser na perturbadora Copacabana, roteirizada por Lobo. "Só mesmo Odyr para mostrar a princesinha do mar de modo cru, hard, sem filtro, noir", escreveu Telio Navega, no jornal O Globo.
Em Pelotas, Bernardi encontrou condições ideais. "Acordo cedo, faço meu pão, resolvo meus 'frilas'. Daí almoço e fico desenhando até as 22h. Não saio quase nunca. Os índios que viviam aqui antes dos ibéricos já eram assim: no frio, para se aquecer, se enterravam em buracos", diz o hiperativo quadrinista, acendendo mais um cigarro.
Namoradas? Já foi casado, hoje é um feliz misantropo. Vida noturna? Esqueça.
Piqueniques aos fim de semana? Necas. Visitas de amigos? "Quando fazíamos 'Guadalupe', às vezes eu notava que ele já tinha se ausentado, começado a fazer outra coisa. Aí sacava que era hora de ir embora", ri Angie.
O jornalista especializado em quadrinhos Eduardo Nasi considera que o rigor melhorou sua produção: "Quando Odyr saiu do Rio, entendi que era um artista do frio, com momentos de clausura."
Ele é um raro cartunista eminentemente "literário". Nos fanzines que edita pela Secreta, adapta histórias de Borges, Cortázar, Verne, mescladas a reflexões metalinguísticas. Embora condene certas adaptações de clássicos ("literais e pouco ambiciosas"), ele se investiu de uma empreitada gigante: quadrinizar vida e obra de Qorpo Santo, um dos mais peculiares autores gaúchos do século XIX.
Quer terminar logo: não gosta de passar anos amarrado a um projeto. "Precisamos ter uma indústria de quadrinhos como na França, em que o sujeito escreve um livro por semestre, e vende milhares nas bancas." Daí a busca pelo traço a um só tempo elaborado e quase tosco que se vê nas ilustrações desta reportagem. As 120 pranchas de Guadalupe -história de uma moça que atravessa o México para enterrar a avó-, que ele desenhou em apenas três meses, dão prova dessa procura.
"Tudo o que Guadalupe Vega quer é esquecer o trabalho que tem no sebo de Minerva, de seu tio travesti. No meio do pior engarrafamento do ano, fica sabendo que a avó, Milagros, morreu ao chocar sua scooter com um tacomóvel. Como Guadalupe tem o furgão da Minerva Livros, é a única que pode cumprir o último desejo da avó: um enterro com banda de música em Oaxaca, onde nasceu." Assim começava a sinopse de Angie.
"Depois entraram cogumelos alucinógenos, rituais, deuses histéricos, comédia ligeira e o Village People", conta Bernardi, que foi convidado pelo escritor Joca Reiners Terron, responsável pelos "casamentos" entre desenhistas e escritores nos romances gráficos da Companhia das Letras, a passar o lápis no roteiro da vizinha.
Ao fim do jantar, Vitor Ramil serve pastéis de Santa Clara - os doces são uma especialidade pelotense - e abre um doce de leite uruguaio, numa simbólica menção ao diálogo sul-sul.
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O avesso dos trópicos. Por dentro da cena cultural de Pelotas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU