29 Agosto 2012
“A percepção é de que vivemos um dos momentos mais medíocres da história do Brasil”, aponta o economista.
Confira a entrevista.
O pacote de concessões anunciado pela presidente Dilma é, na avaliação do economista Reinaldo Gonçalves, uma forma de privatização que expressa a combinação de três fatores: “o fracasso do Estado brasileiro; a evolução do modelo liberal periférico; e o desenvolvimento às avessas”. Para ele, o fato de não haver “restrições financeiras” no pacote, demonstra que o Estado pretende “encontrar administradores privados para serviços de utilidade pública. É curioso notar que isso ocorre em um período da história do Brasil em que, para compensar a total falta de liderança política, propaga-se a imagem da chefe de governo como uma ‘gerentona’”, argumenta na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.
Para ele, a “privatização via concessões ou parcerias tem problemas estruturais graves”, como a consolidação de um modelo liberal periférico, o aumento da vulnerabilidade externa, distorções na estrutura de produção e distribuição de renda. Além disso, as concessões podem acentuar ainda mais o processo de desnacionalização em curso no país, ao permitir que empresas estrangeiras administrem os empreendimentos nacionais. “Para ilustrar”, o economista menciona “os trechos da BR-101, da Fernão Dias e da Régis Bittencourt, que têm pedágios elevados, são administrados por empresa espanhola (OHL). Enquanto durar estas concessões haverá vazamento de renda do Brasil para a Espanha”, frisa. O desenvolvimento do Brasil, de acordo com Gonçalves, não depende de políticas econômicas, mas de “diretrizes estratégicas”. E dispara: “Somente as raparigas em flor do keynesianismo ou os novos desenvolvimentistas confundem políticas macroeconômicas com diretrizes estratégicas”.
O economista e professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ também comenta o projeto de desenvolvimento do PT e as críticas de que o partido se parece cada vez mais com o PSDB. Sobre essa discussão, ele é enfático: “A diferença marcante é que com o PT surgiu de forma ainda mais evidente o desenvolvimento às avessas. Durante o governo Lula o que se constata claramente é: desindustrialização, dessubstituição de importações; reprimarização das exportações; maior dependência tecnológica; maior desnacionalização; perda de competitividade internacional; crescente vulnerabilidade externa estrutural em função do aumento do passivo externo financeiro; maior concentração de capital; e crescente dominação financeira, que expressa a subordinação da política de desenvolvimento à política monetária focada no controle da inflação”.
Reinaldo Gonçalves é formado em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Obteve o título de mestre em Economia, pela Fundação Getúlio Vargas – FGV-RJ, e de doutor em Letters and Social Sciences pela University of Reading, na Inglaterra. Atualmente leciona na UFRJ. É autor de Economia internacional. Teoria e experiência brasileira (Rio de Janeiro: Elsevier, 2004) e Economia política internacional. Fundamentos teóricos e as relações internacionais do Brasil (Rio de Janeiro: Elsevier, 2005).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como avalia o projeto econômico do governo, de transferir 133 bilhões para a iniciativa privada investir em infraestrutura nos próximos 25 anos? O governo diz que se trata de concessão e os críticos dizem que se trata de uma privatização.
Reinaldo Gonçalves (foto) – Venda de ativos, concessão ou parceria são formas de privatização. O atual processo de privatização, na forma de concessão ou parceria, expressa a combinação de três fatores: o fracasso do Estado brasileiro; a evolução do modelo liberal periférico; e o desenvolvimento às avessas. O fracasso do Estado brasileiro envolve déficit de governança ou incapacidade gerencial e organizacional para administrar atividades relevantes (no caso, infraestrutura). Esta incapacidade ocorre ainda em outras áreas como saúde, educação e regulação. A privatização no governo Dilma é mais um atestado de incompetência ou de reprovação do Estado brasileiro. Vale notar que não há restrição financeira e, portanto, trata-se simples e vergonhosamente da questão de se encontrar administradores privados para serviços de utilidade pública. É curioso notar que isso ocorre em um período da história do Brasil em que, para compensar a total falta de liderança política, propaga-se a imagem da chefe de governo como uma “gerentona”.
O fato é que Dilma faz, com a infraestrutura no âmbito federal, o que governadores e prefeitos fazem com a contratação de organizações sociais para gerenciar a saúde. Na realidade, todos fogem da sua responsabilidade e, com as privatizações e terceirizações, desvelam a incompetência administrativa e a degradação institucional existente no país. A privatização expressa também a consolidação do modelo liberal periférico, que tem três conjuntos de características marcantes: liberalização, privatização e desregulação; subordinação e vulnerabilidade externa estrutural; e dominância do capital financeiro. Por fim, a privatização é própria ao desenvolvimento às avessas, que é a trajetória do Brasil no início do século XXI e que se caracteriza, na dimensão econômica, por fraco desempenho; crescente vulnerabilidade externa estrutural; transformações estruturais que fragilizam e implicam volta ao passado; e ausência de mudanças ou de reformas que sejam eixos estruturantes do desenvolvimento de longo prazo. Nas dimensões social, ética, institucional e política desta trajetória observa-se invertebramento da sociedade, deterioração do ethos, degradação das instituições, e sistema político corrupto e clientelista.
IHU On-Line – Há diferenças entre os modelos de privatização dos governos pré-Lula e das concessões dos governos Lula e Dilma?
Reinaldo Gonçalves – Nenhuma. O governo Dilma é réplica do governo Lula só que com dose menor de paparrotadas. Menos do mesmo!
IHU On-Line – O PT sempre criticou as privatizações e agora propõe um modelo de
parceria público-privada, em que o setor privado não terá prejuízos. O que isso significa? É impossível, nos dias de hoje, diante da conjuntura econômica, o Estado fazer parcerias com o setor privado?
Reinaldo Gonçalves – É o retorno à política do Segundo Império quando Pedro II, para atrair o capital inglês, dava garantias de taxas mínimas de retorno para investimentos em ferrovias. É o capitalismo subdesenvolvido e cartorial. O capitalismo no Brasil reproduz os vícios do sistema político cartorial e retrógrado. Isso também é parte do modelo liberal periférico e mostra a incapacidade dos grupos dirigentes de gerir um “vagão de 3ª classe” do capitalismo que é a economia brasileira. Com o descolamento relativo aos EUA e a atrelagem à China, o Brasil transformou-se em vagão de 4ª classe.
IHU On-Line – Seria possível desenvolver o país com outras políticas econômicas? Há outros caminhos? Que alternativas propõe?
Reinaldo Gonçalves – Não se trata de políticas econômicas, mas sim de diretrizes estratégicas. Somente as raparigas em flor do keynesianismo ou os novos desenvolvimentistas confundem políticas macroeconômicas com diretrizes estratégicas. O modelo liberal periférico implica a volta ao passado. Vale notar que parte expressiva dos investimentos em infraestrutura está focada no escoamento da produção do setor primário-exportador. O Brasil tem que romper com este modelo. Recomendo a leitura do livro que escrevi com Luis Filgueiras (A economia política do governo Lula. Rio de Janeiro: Contraponto, 2007). Vejam ainda o livro organizado pelo Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro (Os anos Lula. Rio de Janeiro: Garamond, 2010).
IHU On-Line – Quais são os limites e as implicações da parceria público-privada, tal qual está sendo implementada no país?
Reinaldo Gonçalves – A privatização via concessões ou parcerias tem problemas estruturais graves. O primeiro é a consolidação do modelo liberal periférico e o viés de deslocamento da fronteira de produção do país na direção do setor primário-exportador; ou seja, aumento da vulnerabilidade externa estrutural na esfera comercial. O segundo é que distorce ainda mais a estrutura de produção e distribuição de renda a favor dos grandes grupos econômicos (concentração do capital) focados na exploração de recursos naturais e na degradação do meio ambiente; isto é, aumenta a vulnerabilidade externa estrutural do país nas esferas produtiva e tecnológica. O terceiro é que se faz apelo a empresas estrangeiras para administrar empreendimentos, o que implica permanente vazamento de renda via contas externas, remessas de lucros (desnacionalização); ou seja, aumento da vulnerabilidade externa estrutural nas esferas produtiva, tecnológica e financeira. Para ilustrar, os trechos da BR-101, da Fernão Dias e da Régis Bittencourt, que têm pedágios elevados, são administrados por empresa espanhola (OHL).
Enquanto durar estas concessões haverá vazamento de renda do Brasil para a Espanha. O quarto problema é que, tendo em visto a fragilidade institucional, em particular a inoperância das agências reguladoras, aumenta ainda mais as práticas de abuso do poder econômico que provocam inúmeros problemas (ineficiência, corrupção etc). Vejam os problemas recentes na área de telecomunicações, com a falta de investimentos e as práticas comerciais restritivas usadas pelas empresas que surgiram com a privatização. Ou seja, em um país marcado por frágil aparato regulatório, enormes deficiências institucionais e invertebramento da sociedade, o processo de privatização agrava a vulnerabilidade externa estrutural, a concentração de poder econômico, o abuso do poder econômico e a ineficiência sistêmica.
IHU On-0Line – Diante desse pacote, que incentiva a parceria público-privada, como ficam os investimentos nas empresas estatais? Essa compreensão de que o Estado deve ser o indutor do crescimento, e não seu gestor, direciona que rumos para o desenvolvimento do país?
Reinaldo Gonçalves – O Estado tem quatro funções: distributiva, estabilizadora, alocativa e reguladora. Como mencionado, a função distributiva tem como eixo estruturante as políticas assistencialistas que tornam a sociedade brasileira ainda mais invertebrada. A política estabilizadora é determinada pelo jogo de interesses; de um lado, os grupos dirigentes que focam na perpetuação no poder; de outro, os setores dominantes, com destaque para os bancos, que procuram manter absurdas taxas de retorno sobre patrimônio. A função alocativa do Estado é fragilizada com a privatização e com o uso discricionário de empresas estatais para se alcançar objetivos econômicos e políticos, alguns deles questionáveis (com recursos, por exemplo, do BNDES, Petrobras, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal). Pode-se mencionar o envolvimento do Banco do Brasil no esquema do Mensalão ou da CEF no esquema do Banco Panamericano. A função reguladora é lamentável no Brasil tendo em vista a fragilidade das agências reguladoras. Para ilustrar, reportagem recente sobre concessões de estradas federais à empresa espanhola OHL conclui que “4 anos após licitações de estradas do governo Lula melhorias não foram entregues” (O Globo, 25 de agosto de 2012, p. 27). O fracasso da atividade reguladora no Brasil é evidente quando se constata que no período 2008-2010 somente 4,7% das multas aplicadas pelas agências reguladoras no Brasil foram efetivamente pagas (cf. O Globo, 27 de novembro de 2011, p. 33). É o Estado ruim, incapaz de exercer adequadamente suas funções, que direciona o capitalismo ruim, marcado pela ineficiência sistêmica e pelo abuso do poder econômico, cujo rumo é o desenvolvimento medíocre.
IHU On-Line – Como esse pacote irá refletir no cenário de desindustrialização acentuada no país? Ou não há espaço para o desenvolvimento da indústria diante deste pacote?
Reinaldo Gonçalves – Com a inoperância da atividade reguladora há abuso de poder econômico por parte das empresas que foram privatizadas. Para ilustrar, no Norte Fluminense o custo de transporte rodoviário dobrou no passado recente enquanto as deficiências persistem (cf. O Globo, 25 de agosto de 2012, p. 27). Além do aumento do custo de transporte, a indústria é negativamente afetada pelo desvio de recursos de investimento para o setor primário-exportador. Na realidade, parte expressiva dos projetos apresentados refere-se a rodovias e ferrovias orientadas para o escoamento de produtos primários (alimentos, matérias-primas e minérios). Um levantamento recente mostra que a participação da indústria de transformação no total dos financiamentos do BNDES caiu de aproximadamente 50% no período 2000-2006 para menos de 30% em 2011-2012 (O Estado de São Paulo, 27 de agosto de 2012).
IHU On-Line – Como esse pacote tenderá a repercutir no emprego?
Reinaldo Gonçalves – No curto e médio prazo há aumento do emprego no setor de construção pesada. Entretanto, como as experiências recentes de construção de hidrelétricas têm mostrado, as condições de trabalho frequentemente são deficientes. No longo prazo o deslocamento da fronteira de produção na direção do setor primário-exportador tende a gerar problemas de desemprego estrutural visto que estes setores são, ao mesmo tempo, intensivos em recursos naturais e intensivos em capital.
IHU On-Line – Muitos especialistas criticam a ação do governo e afirmam que o projeto de desenvolvimento do PT é o mesmo do PSDB. Em que aspectos são diferentes e semelhantes?
Reinaldo Gonçalves – Agora sim, mais do mesmo! Com o PT, a partir de 2003, consolidou-se o modelo liberal periférico, que tem sua origem no início dos anos 1990 e que se aprofundou durante o governo Fernando Henrique Cardoso. A diferença marcante é que com o PT surgiu de forma ainda mais evidente o desenvolvimento às avessas. Durante o governo Lula o que se constata claramente é: desindustrialização, dessubstituição de importações; reprimarização das exportações; maior dependência tecnológica; maior desnacionalização; perda de competitividade internacional, crescente vulnerabilidade externa estrutural em função do aumento do passivo externo financeiro; maior concentração de capital; e crescente dominação financeira, que expressa a subordinação da política de desenvolvimento à política monetária focada no controle da inflação.
IHU On-Line – Considerando que o PT surgiu no Brasil também com uma proposta social, como avalia os investimentos nessa área nos últimos anos?
Reinaldo Gonçalves – Esse tema é tratado no capítulo 4 do livro A economia política do governo Lula. Os governos Lula e Dilma ilustram bem o caso de grupos dirigentes latino-americanos que aprenderam, com o Banco Mundial, que a perpetuação no poder pode resultar da linha de menor resistência. Não se fazem mudanças estruturais no que diz respeito ao estoque de riqueza e à geração de renda. Trata-se, simplesmente, de um pacto social tácito em que todos, no curto prazo, ganham via alocação dos recursos públicos ou, em decorrência, de políticas públicas. O Leviathan brasileiro (esse Estado que controla quase 40% da renda via arrecadação de impostos) finge que não é um monstro que protege os interesses dos setores dominantes. Via hegemonia às avessas (leiam as análises de grande valor de Francisco de Oliveira), o governo opera o Estado brasileiro que se transforma simplesmente em mágico em espetáculo de playground.
O sistema político clientelista e corrupto é alimentado pelo orçamento público em todos os níveis. O Estado brasileiro beneficia dezenas de milhões de pessoas com políticas assistencialistas que geram, de um lado, bem-estar e, de outro, acomodação, invertebramento e cooptação. Por exemplo, o Programa Bolsa Família atende 13,3 milhões de famílias em que 93% têm mulheres como titulares. Somente este programa social atinge quase 60 milhões de brasileiros (30% da população). Programas assistencialistas são necessários, porém eles também são capazes de enfraquecer de forma significativa o próprio tecido social. Este é o caso, por exemplo, do Movimento dos Sem Terra – MST, que já foi considerado um dos mais importantes movimentos sociais do Hemisfério Ocidental. A deterioração da sociedade civil organizada também é evidente quando se constatam irregularidades em parcela expressiva dos convênios entre a União e as organizações não governamentais. Isso sem contar, naturalmente, os analistas que, financiados por órgãos públicos ou empresas estatais ou na expectativa de uma função gratificada, limitam-se a qualificar as políticas pontuais, jamais o governo e, até mesmo, mudam de princípios. É o Brasil invertebrado!
IHU On-Line – Que desenvolvimento é possível vislumbrar para o país nos próximos 25 anos diante deste pacote?
Reinaldo Gonçalves – No Brasil o modelo liberal periférico tem tido fraco desempenho pelos padrões históricos brasileiros e atuais padrões internacionais, inclusive durante os governos Lula e Dilma. E, como resultado do modelo liberal periférico, o país está em trajetória de desenvolvimento às avessas. Se continuarmos com este modelo e nesta trajetória, a poucos anos do bicentenário da independência o país fará viagem rumo ao passado. O Brasil invertebrado entranha-se em trajetória de fraco desempenho econômico, com recorrentes momentos de instabilidade e crise, e embrenha-se em nuvens cinzentas que turvam o caminho do desenvolvimento social, político, ético e institucional. A privatização só reforça esta trajetória. A percepção é de que vivemos um dos momentos mais medíocres da história do Brasil. Isso também é parte da herança nefasta do governo Lula.
(Por Patricia Fachin)
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O Leviathan brasileiro e o espetáculo de playground do governo. Entrevista especial com Reinaldo Gonçalves - Instituto Humanitas Unisinos - IHU