15 Agosto 2012
"O restante do mundo toma conhecimento dessas coisas por meio de jornais, Internet e emissoras de TV. Mas grande parte da África rural está em um vácuo de informação. O mundo poderia virar fumaça e não saberíamos a respeito. Nestas áreas rurais, você não tem como comprar jornal. Os únicos que você encontra têm meses de idade, vindos de países distantes do Oriente Médio e em línguas que ninguém aqui sabe ler, usados pelos balconistas para embrulhar analgésicos ou sabão", escreve Luke Glowacki, antropólogo evolucionista da Universidade de Harvard, que trabalha atualmente com pastores no Vale do Omo, no sul da Etiópia, em artigo publicado no International Herald Tribune e reproduzido pelo Portal Uol, 12-08-2012.
Eis o artigo.
Ninguém aqui sabe as notícias. Nem os moradores locais e nem o punhado de antropólogos, como eu, espelhado neste canto rural da Etiópia.
O primeiro-ministro, Meles Zenawi, está desaparecido, seriamente doente e em um hospital europeu, segundo relatos. Eu só tomei conhecimento disso quando embarquei em um avião para Adis Abeba e um alerta do Google apareceu no meu e-mail. O porta-voz do governo pintou um quadro mais cor-de-rosa: após 21 anos de serviço incansável, os médicos o aconselharam a descansar por algumas semanas, para se recuperar de complicações de saúde resultantes do excesso de trabalho. Nós somos tranquilizados de que tudo está transcorrendo normalmente.
Aqui na Etiópia nós clicamos em links que não funcionam, não que haja alguma notícia. Um jornal etíope, o “Feteh”, teve sua circulação diária de 30 mil exemplares suspensa no mês passado, porque o governo afirmou que ele se tratava de uma ameaça à segurança. Usar o Skype pode fazer uma pessoa pegar 15 anos de prisão.
Eu recebo outro e-mail, desta vez de um colega de Harvard, que diz: “Parece que as coisas estão realmente esquentando por aí. Eu espero que não seja muito perto de onde você se encontra”. Eu checo o Google de novo: 30 mil refugiados atravessaram a fronteira para o Quênia devido aos combates étnicos. Eu levo a notícia ao café da manhã com alguns poucos pesquisadores locais. Ninguém aqui parece ter ouvido algo a respeito, e está ocorrendo a apenas poucas centenas de quilômetros de distância.
É o mesmo com a Base da Força Aérea dos Estados Unidos a meio dia de carro daqui. Eu encontro um homem no ponto de ônibus e ele me diz que tem muitos amigos americanos. “Como? Onde?” eu pergunto. “Ora, há muitos soldados americanos aqui. Eles estão fazendo uma base no aeroporto.” Apenas meses depois uma publicação americana deu a notícia sobre bases no exterior sendo usadas para lançar aeronaves não tripuladas.
Eu pergunto aos pastores nômades com quem trabalho se eles sabem o que está acontecendo com o primeiro-ministro, ou sobre os combates perto de Moyale. Ninguém ouviu uma palavra a respeito.
O restante do mundo toma conhecimento dessas coisas por meio de jornais, Internet e emissoras de TV. Mas grande parte da África rural está em um vácuo de informação. O mundo poderia virar fumaça e não saberíamos a respeito. Nestas áreas rurais, você não tem como comprar jornal. Os únicos que você encontra têm meses de idade, vindos de países distantes do Oriente Médio e em línguas que ninguém aqui sabe ler, usados pelos balconistas para embrulhar analgésicos ou sabão.
Mas coisas que você ouve que nunca chegam ao mundo interconectado. Aqui a informação viaja no boca a boca. Ela pode levar dias ou meses, e o que acontece a apenas poucas centenas de quilômetros de distância pode ser de pouco interesse caso venha a chegar aqui.
As eleições presidenciais, as Olimpíadas, a Primavera Árabe, nada disso é ouvido aqui. Em vez disso, os eventos cotidianos viajam longe: a vaca de um primo distante teve bezerros gêmeos, uma organização não governamental está construindo uma bomba de água nas proximidades, o Rio Omo transbordou. Essas coisas importam porque afetam a vida cotidiana. Há mais leite, poderá haver água limpa, o plantio começará quando as águas do rio recuarem.
No mundo dos jornais, você pode nunca saber sobre a epidemia de sarampo que atingiu centenas, ou sobre a vez em que milhares de pastores fugiram para as montanhas, quando membros de tribos quenianas cruzaram a fronteira vazia do deserto. Você fica sabendo sobre quanto é gasto em ajuda humanitária no exterior, mas você não fica sabendo sobre as celebrações que ocorrem quando ela chega, assim como você não fica sabendo quando o caminhão que a transporta quebra e fica sem reparo por meses.
Você não fica sabendo como as crianças choram à noite devido a apenas um punhado de grãos por dia. Você ouve um político dizendo que as vacinas causam autismo, mas não ouve o gorgolejar de um menino com pólio, ao tentar mover um corpo que não mais responde.
Você fica sabendo sobre Matt Damon trazendo água limpa para a África, mas não fica sabendo como toda uma rota de migração muda quando rui o único poço em um raio de 40 quilômetros.
Você não fica sabendo como aldeias inteiras ganham vida por todo o país, com centenas de pessoas em túnicas brancas dançando nas ruas de terra ao amanhecer, quando os 56 dias de jejum da Quaresma chegam ao fim.
Você não fica sabendo como à noite, quando os clientes partem, os meninos que trocam sua infância servindo cerveja em algum bar sem nome, em alguma cidade sem nome, aumentam o volume da música e dançam uns com os outros, alguns poucos minutos de inocência em uma infância de trabalho.
As histórias que você não ouve têm tanta vida quanto as que você ouve. Apenas não há ninguém aqui para contá-las.
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Grande parte da África rural vive em um vácuo de informação - Instituto Humanitas Unisinos - IHU