Por: Cesar Sanson | 28 Junho 2012
“Não há revolução sem sujeito. E, no Paraguai, esse sujeito é o movimento campesino, que não se manifesta a favor do governo na Praça de Armas”. A avaliação é da socióloga Lorena Soler, professora da Universidade de Buenos Aires, especialista em história da América Latina e Caribe, em entrevista à Saul Leblon da Carta Maior, 27-06-2012. Para ela, sem apoio no Parlamento e com um movimento campesino sem maiores respostas até aqui, Fernando Lugo enfrente uma correlação de forças muito desigual.
A socióloga Lorena Soler, professora da Universidade de Buenos Aires, é especialista em história da América Latina e Caribe e profunda conhecedora da política paraguaia, onde acompanhou de perto o dia seguinte ao fulminante processo de destituição do Presidente Fernando Lugo. Em uma crônica publicada no jornal Página/12, três dias após o golpe, Lorena sintetiza na frase de uma índia pobre, ouvida enquanto percorria uma Assunção 'coberta de inesperada normalidade' , todo o impasse da equação política que derrubou o Presidente eleito em 2008: "Felizmente, hoje já estamos tranquilos”, sussurrou a índia, num guarani estranho, quando comprei meu religioso chipá diário".
Em entrevista à Carta Maior, concedida por correio eletrônico, Lorena deixa claro seu diagnóstico sobre o fulminante simulacro de impeachment que sufocou o primeiro governo de recorte popular, depois de mais de 60 anos de poder conservador no país: “Não há revolução sem sujeito. E, no Paraguai, esse sujeito é o movimento campesino, que não se manifesta a favor do governo na Praça de Armas.”
Como foi possível a vitória de Fernando Lugo em 2008? Que forças e que fraquezas criaram espaço para sua eleição?
Fernando Lugo Mendez chega a presidência da nação, a partir de uma aliança partidária eleitoral, sob o rótulo da Aliança Patriótica para a Mudança, na qual se agrupavam cinco centrais sindicais, um setor do movimento campesino e um grupo importante de partidos de centro-esquerda. O sócio político e institucional mais importante foi o Partido Liberal (PLRA), que indicou o vice-presidente e disponibilizou sua estrutura partidária nacional para ganhar as eleições. Como sempre ocorreu na história política paraguaia, este partido, junto com o Partido Colorado (ANR), conquistaram a maioria absoluta nas duas câmaras.
Foi então uma trajetória política na qual se misturaram interesses históricos muito distintos?
A origem político-presidencial de Fernando Lugo se dá em março de 2006, quando encabeçou uma manifestação coletiva de 40 mil pessoas, uma magnitude nunca antes vista na história recente do Paraguai, que saiu ás ruas sob o lema “Ditadura: Nunca Mais” e “O Paraguai está farto”. A marcha multisetorial obedecia, em parte, às manobras políticas e judiciais do presidente Nicanor Duarte Frutos (2003-2008) com o objetivo de impulsionar sua reeleição presidencial e violar, assim, a Constituição nacional. Neste contexto e no de uma classe política, sob suspeita, Fernando Lugo era antes de tudo um possível presidente sem vinculações com o status quo político, de onde retirou sua principal legitimidade. Em seu favor pesou a conversão de uma referência eclesiástica para um dirigente político dos movimentos campesinos que se radicalizavam à medida que avançava o agronegócio e a expulsão das terras. Apenas dois anos mais tarde daquela irrupção nas ruas, ele conseguiria sua vitória como presidente. O crescimento foi tão vertiginoso como seria sua queda.
Essa velocidade surpreendeu a estrutura de poder dominante, tornando impossível sufocá-lo num primeiro momento?
Em 2005, Lugo renunciou a seu posto eclesiástico; em dezembro de 2006 anunciou que disputaria as eleições e, em 2007, aceitou a companhia do Partido Liberal. O cenário eleitoral de 2008 foi a expressão das novas formas de representação e de uma mudança política em marcha. Se o triunfo de Fernando Lugo foi inesperado na história do país, também o foi a disputa e os candidatos presidenciais com maior volume de votos: um bispo (Fernando Lugo, 41%); uma mulher (Blanca Ovelar, 30%); um militar (Lino Oviedo, 22%) e um empresário (Pedro Fadul, 3%), que conseguiram apresentar-se como lideranças, para além de seus partidos.
Em parte, esse cenário reconhecia um antecedente nas eleições presidenciais de 2003. Nelas, um empresário alcançou uma porcentagem de votos similar à obtida pelo PLRA (22% e 24% respectivamente) e Nicanor Duarte Frutos utilizou a legitimidade conquistada por fora da estrutura partidária do coloradismo.
Lideranças liberais que lutaram contra a ditadura de Stroessner, como Domingo Laino, tiveram que papel no golpe?
A figura de Domingo Laino, emblemática na transição à democracia em 1989, hoje é absolutamente marginal. De fato, ele participou junto com outros liberais sem peso no partido, do ano na Praça de Armas, dia 22 de junho, defendendo explicitamente a Lugo, expressando repúdio ao golpe de Estado e à atuação de seu partido no parlamento. É preciso esclarecer que nunca se convocou a direção do Partido liberal para discutir a questão do julgamento político de Lugo. Pelo contrário, armou-se de maneira “express”, como os tempos do golpe exigiam, um comitê político que respondia a Federico Franco, para que se preparassem o caminho de sua chegada à presidência. Franco obteve o último lugar nas recentes internas partidárias, inviabilizando que ele fosse o candidato do partido nas eleições presidenciais de 2013.
Enfim, a destituição de Fernando Lugo expressa também a crise interna do próprio Partido Liberal (PLRA). Isso explica também porque das 23 vezes que o Congresso debateu a abertura de um processo político contra o governo de Fernando Lugo somente agora o Partido Liberal apoiou em sua totalidade essa moção.
As organizações de esquerda não tinham conhecimento da marcha golpista?
O golpe pegou de surpresa a todas as forças políticas. A rapidez, quase um roteiro para os tempos televisivos, diminuiu sem dúvida a capacidade de reação da cidadania e dos fragmentados grupos de esquerda. Inclusive, aqueles que o concretizaram, foram antes tudo bons leitores de uma conjuntura crítica antes que grandes estrategistas.
Como assim?
A crise, ainda que alguns colegas se neguem a estabelecer esse vínculo, iniciou com a matança de 11 membros do Movimento Campesino dos Carperos e de 7 policiais, a partir da decisão do governo de Fernando Lugo de “executar” uma ordem judicial de despejo das terras da fazenda Morombí, de mais de 70 mil hectares, pertencente ao latifundiário, agora empresário e antes senador pelo Partido Colorado, Blas Riquelme.
Esse episódio teve, de fato, a força simbólica letal que lhe atribui a direita?
Embora o assassinato tenha sido um dos argumentos utilizado pelas direitas parlamentares para abrir o processo contra Lugo, não se deveria desvalorizar com tanta facilidade as consequências do fato, na medida em que o assassinato dos camponeses nas terras de um latifundiário condensa vários problemas estruturais do país e do então governo luguista. Por um lado, Lugo rompeu aí o último elo que o vinculava ao movimento campesino, o único ator real de seu governo.
Um ator ausente na cena mais dramática do enredo?
De fato, o movimento campesino não se manifestou a favor do governo na Praça de Armas. Por outro lado, as mortes evidenciam a falta de controle estatal (que nunca se exerce em sua totalidade, mas ao menos se ambiciona): uma justiça cúmplice dos agronegócios, do partido Colorado e da autonomia das forças repressivas. Por último, a incapacidade do então governo para estabelecer uma negociação com o movimento campesino e, fundamentalmente, o fracasso da reforma agrária.
Sem parlamento e com um movimento campesino sem maiores respostas, uma correlação de força muito desigual frente aos poderes fáticos das ordens políticas atuais da América Latina, não se vislumbra a possibilidade de gerar grandes transformações. Enfim, não há revolução sem sujeito. E, no Paraguai, esse sujeito é o movimento campesino.
Cerca de 2,5% da população tem 80% das terras no Paraguai. Lugo não conseguiu alterar em nada essa equação que define o jogo político?
Os problemas da terra no Paraguai iniciam com os resultados da Guerra da Tríplice Aliança (1865-1870), onde os capitais estrangeiros adquiriram a preços irrisórios grandes extensões de terra. Mas tarde, o regime stronista (1954-1989) produz o ponto mais alta de concentração da propriedade da terra nas mãos de uma burguesia que forjou a estabilidade de uma ordem por 35 anos. Para isso, o Estado stronista utilizou as terras públicas ainda existentes no país, sem possibilidade de reconversão econômica, receptora de camponeses nacionais e de contingentes de imigrantes brasileiros. O incremento da imigração nas fronteiras deu lugar à expansão da produção agrícola e à ocupação de terras por parte de colonos e proprietários brasileiros. Assim, a Comissão de Verdade e Justiça do Paraguai (2009) determinou que, do total de terras adjudicadas naqueles anos, 64% o foram de modo irregular. Neste processo, os camponeses foram o foco central da resistência e o alvo predileto das políticas repressivas.
Como é possível que uma índia pobre, descrita em sua crônica recente, publicada no Página/12, perceba o dia seguinte ao golpe como uma “volta à tranquilidade? O governo Lugo não fez nenhuma diferença em sua pobre vida?
Além dos fatores já expostos acerca da debilidade política do governo, a ruptura com seu único sujeito social – os camponeses – e sua condição de orfandade social, tanto como a ausência de uma liderança política, não se deveria subestimar o sentido disciplinador que condensam os momentos históricos de crescimento econômico. Isso gera o que, nós sociólogos, chamamos de um consenso conservador. A economia paraguaia vem crescendo a um ritmo sustentado, com previsão de colheita e preços recordes da soja.
O Estado paraguaio tem uma receita tributária de 13% do PIB. No Brasil, esse índice é de 35%; na União Europeia apresenta uma média de 40%. Lugo poderia ter feito um governo diferente com recursos tão escassos?
O mesmo Senado que terminou realizando o julgamento de Lugo na semana passada, foge do debate sobre a entrada em vigor do imposto de renda, prometida pelo Paraguai em 2003 ao FMI em troca de assistência. É o único país latino-americano que ainda não paga esse tributo. Em razão disso, o Estado paraguaio adia uma soberania política, enquanto não recompõe sua capacidade econômica. Sem riqueza estatal, não há soberania possível e, em consequência, condições para a constituição de uma vontade pública que possa se impor em uma trama de relações de forças muito assimétrica. Lugo não conseguiu reter uma mínima parte dos lucros extraordinários dos empresários que, mesmo assim, acabaram terminando com seu governo. O Estado também não consegue cobrar imposto sobre a terra ou sobre a exportação de soja. Das reformas em favor de uma ordem mais justa, com a ambiguidade que isso supõe, só restou parte da renegociação pelos recursos provenientes das centrais hidroelétricas de Itaipú e Yacyretá.
Como analisa a reação dos governos do Mercosul, em especial do Brasil e da Argentina?
A Argentina teve uma rápida reação, mas o Brasil se mostrou mais ambíguo, ou ao menos aguarda com evidente prudência a decisão que será adotada na próxima reunião do bloco. Até o momento, o mais viável no plano interno é a proposta do Uruguai de antecipar as eleições.
Diferentemente destes dois países, o Brasil desde a década de 1970 desenvolveu uma política de integração comercial e cultural muito forte com o Paraguai e hoje a coletividade dos brasiguaios, ou ao menos suas vozes visíveis, reclamam que seu país de origem reconheça Franco. Esse setor conforma a maior e mais poderosa comunidade estrangeira no Paraguai, com uma população estimada em cerca de 300 mil pessoas. Além disso, são donos de terras férteis e responsáveis por 70% da colheita de soja no Paraguai, quarto maior produtor do grão.
Em 2011, Wikileaks divulgou telegramas da embaixada dos EUA em Assunção remetidos a Washington em março de 2009. A embaixada já relatava tratativas de um golpe contra Lugo. Mas, a embaixada criticava os golpistas na ocasião dizendo que as condições não estavam maduras. Você acredita que os EUA participaram agora quando as condições amadureceram?
As intervenções golpistas dos EUA não são estranhas aos países da América Latina. Não foram no passado e não são agora, ainda que sem necessidade mobilizar tanques de guerra ou de construir outro Guantánamo. Nem tampouco recorrer à base militar norteamericana na localidade de Mariscal José Félix Estigarribia, uma pequena população de 30 mil habitantes na República do Paraguai, onde forças militares dos EUA construíram uma infraestrutura de quartel para abrigar 16 mil efetivos militares.
Diferentemente do passado, o “novo golpismo”, liderado por civis, apela a formatos constitucionais e mantem uma fachada institucional, sendo o caso mais similar à substituição “constitucional” de Zelaya em Honduras, em 2009. No entanto, a possibilidade de apelar a uma legalidade abstrata, profundamente ideológica, mas disfarçada de imparcialidade, só é possível quando não há setores que disputem esse argumento. Geralmente, os setores conservadores oligárquicos locais contam com o apoio dos EUA. Porém, a pergunta deveria ser outra: como se liberta o Paraguai e a América Latina, apesar desses atores locais e da pressão internacional reacionária. Alguns processos recentes mostram que isso é possível, mas no Paraguai ainda é uma incógnita.
Você acredita que até as eleições de abril de 2013, seja possível organizar uma alternativa de poder para repetir uma vitória à esquerda?
O desafio e a aprendizagem deste processo, dadas as características do sistema político paraguaio, será a formação de um movimento partidário que possa assegurar representação parlamentar. Dadas as características da Constituição de 1992, ou seja a Carta Magna pós-Stroessner, o Poder Executivo não tem faculdades que permitam adotar políticas com autonomia das câmaras de senadores e deputados. Esta é a questão decisiva.
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Futuro de Lugo depende de reação de camponeses, avalia socióloga - Instituto Humanitas Unisinos - IHU