28 Junho 2012
"Interfaces entre programas compensatórios, como Bolsa Família, e produtivos como o Agroamigo, devem ser potencializadas. Lembrando a máxima: família não se escolhe. Na família e na pobreza, ajudar não é opção. Já amigo e crédito pressupõem troca e devem sempre ser escolhidos", escreve Marcelo Côrtes Neri, economista-chefe do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas e professor da EPGE/FGV, em artigo publicado no jornal Valor, 26-06-2012.
Eis o artigo.
O binômio alta taxa de juros e escassez de crédito é central entre os problemas brasileiros como a desigualdade inercial e a inflação crônica no passado. O crédito não é só caro e raro aqui mas é de curto prazo e chega mais ao consumidor e a alta renda. Portanto, o crédito produtivo popular, apelidado de microcrédito, nas quantidades, taxas e prazos desejados é a antítese do cenário tupiniquim.
Nem sempre alta dos juros cobrados leva a aumento do retorno esperado pelos bancos e, portanto, a mais oferta de crédito. Informação assimétrica entre emprestadores e tomadores faz com que juros mais altos atraiam para filas dos bancos piores tomadores e/ou de piores projetos. Este é o principal obstáculo a ser superado. As pontes são grupos solidários, colaterais alternativos, empréstimos crescentes e agentes de crédito.
Adicionando mistério ao microcrédito nacional. O crédito produtivo popular orientado se difundiu mais nas cidades e campo do Nordeste com os programas regionais e federais Crediamigo e Agroamigo. Mas a fim de considerar virtude o financiamento de nova riqueza produtiva na velha pobreza nordestina é preciso que o crédito produtivo permita que as boas oportunidades de negócios floresçam, e que as más não.
A qualidade do Crediamigo foi comprovada nos prêmios concedidos pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e pelo Mix Market, maior agência de rating da América Latina, como o melhor programa do continente. Tive recentemente a oportunidade de ouvir da princesa Máxima da Holanda, embaixadora de microfinanças da ONU, referências elogiosas a ele, isso quando o microcrédito cai em descrédito global em função da crise indiana no setor. A qualidade do Crediamigo era enxergada pelos olhos externos mas não chegava às retinas nacionais. Isso começa a mudar. Desde 2011 o modelo do Crediamigo prospera em escala nacional nos grandes bancos federais por meio do programa Crescer.
Escrevi em 2008 o livro, citado abaixo, sobre a expansão do Crediamigo nas cidades do Nordeste. O programa atinge em 2012 1,2 milhão de clientes, triplicando em quatro anos. Cobre mais de 2/3 do mercado nacional público e privado de crédito produtivo orientado. Mesmo depois das crises externas observamos taxas de atraso inferiores a 2%, demonstrando qualidade do ponto de vista dos emprestadores. Havia ganhos dos tomadores e as boas notícias continuam, crescimento real de 13% ao ano no lucro dos clientes, apenas 2% dos clientes não pobres entraram na pobreza e 60% das pessoas pobres saíram da pobreza.
O desafio maior do Crediamigo não é transformar para melhor a vida dos pobres mas chegar aos mais pobres dos pobres. A presença relativa do programa entre os clientes inicialmente pobres era metade daquela observada entre os microempresários urbanos nordestinos. O programa possui especial capacidade de chegar à numerosa classe D nordestina e ajudar a transformá-la em classe C.
A criação do programa Comunidade, linha tipo Village Banking com grupos de empréstimos maiores de 25 em vez dos grupos tradicionais de 5 tomadores e a exploração de sinergias com os beneficiários do Bolsa Família apontam ao norte da pobreza. Mas a principal ação nessa direção foi estender a metodologia de crédito orientado ao Agroamigo atuante na área rural. Microempresário rural é bolsão de pobreza nacional. Em particular, depois que o programa incorporou a metodologia de agentes de crédito e sofreu forte expansão, chegando a 90% do microcrédito rural.
Amostra recente que acompanha 42 mil clientes do Agroamigo ao longo do tempo é reveladora dos impactos nas condições de vida produtiva, e possivelmente familiar, da sua clientela. Avaliamos o impacto do Agroamigo sobre o desempenho dos negócios rurais. Primeiro e mais importante, o lucro teve um ganho nominal de 15,4% no segundo ano em relação ao primeiro, refletindo ganhos acima ao da inflação. Esses resultados estão em linha com os recém publicados pelo grupo liderado por Ricardo Abramovay da USP em livro sobre o Agroamigo.
A análise interativa de variáveis de desenho do programa é fundamental para entender os determinantes dessa evolução, em particular aqueles que podem inspirar upgrades dos programas. O ganho de lucro ao longo do tempo proporcionado pela participação em organização social não é estatisticamente diferente de zero.
Atividades produtivas especializadas apresentam queda relativa de 3,4% vis à vis àquelas diversificadas. Isto sugere a importância de financiamento de atividades não agrícolas no meio rural para diversificar riscos e potencializar a performance do programa e dos pequenos produtores.
O sol, símbolo da solidariedade que dá nome a diversas iniciativas latinas de microcrédito, tem sido implacável no sertão nordestino. Programas sociais tem irrigado as condições de vida locais no auge da seca em curso. Fome, migração e saques não estão sendo colhidos.
Interfaces entre programas compensatórios, como Bolsa Família, e produtivos como o Agroamigo, devem ser potencializadas. Lembrando a máxima: família não se escolhe. Na família e na pobreza, ajudar não é opção. Já amigo e crédito pressupõem troca e devem sempre ser escolhidos.
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Microcrédito e superação da pobreza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU