02 Mai 2012
"O núcleo mais vivo e fundamental da minha teologia se move sempre entre dois polos: 'repensar' os conceitos da teologia, a partir do reconhecimento da autonomia das criaturas, e 'recuperar' a experiência original, tornando patente a sua relação constitutiva com Deus. A 'reformulação' é uma consequência".
Publicamos aqui a entrevista do teólogo espanhol Andrés Torres Queiruga (foto), que será publicada na próxima edição da revista Il Regno – Attualità, nº. 8/2012. A entrevista é de Francesco Strazzari.
Para o teólogo, "notificado" pela Comissão para a Doutrina da Fé da Conferência Episcopal Espanhola, a fraternidade cristã é muito mais profunda e poderosa do que as discrepâncias teológicas internas.
Queiruga enviou à IHU On-Line a versão original da entrevista, em espanhol. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Os subtítulos são da edição italiana da revista Il Regno.
Eis a entrevista.
Professor Queiruga, que impressão o senhor teve ao receber, na Sexta-Feira Santa, a Notificação sobre algumas de suas obras por parte da Comissão para a Doutrina da Fé da Conferência Episcopal Espanhola?
Triste, porque eu tinha uma pequena esperança de que, no último momento, como eu propunha, se abriria um prazo para um verdadeiro diálogo teológico. Triste também por causa de um procedimento que, a meu ver, foi feito não só sem suficiente seriedade teológica, mas também sem essa sensibilidade humana e fraternidade eclesial que deve caracterizar as relações dentro da Igreja.
Como se chegou à Notificação, que está levantando amplas reações? O texto diz que houve um amplo diálogo com o senhor. O senhor confirma isso?
Isso é, para mim, o mais triste do caso. Segundo me informaram no fim, o procedimento começou em 1998, e até 2012 (13 anos!) não se buscou nenhum tipo de diálogo comigo. No fim, mediante um telefonema do meu arcebispo, foi-me informado de que já estava prestes a ser publicada a notificação e, graças à sua insistência, falou-se pela primeira vez de um possível diálogo, perguntando-me se eu estava disposto. Respondi que não só estava disposto, mas também que o desejava com interesse. Um telefonema do presidente da Comissão para a Doutrina da Fé levou ao acordo de um encontro, que seria realizado na véspera da reunião da Comissão Permanente do Episcopado, em que ia ser proposta a aprovação do documento. Também me foi dito que a decisão de publicá-lo já estava tomada e que só caberia fazer matizações ou esclarecimentos de detalhes. Eu aceitei, apesar de tudo.
Mas, no dia seguinte, dando-me conta de que, em última análise, isso poderia ficar – como aconteceu – em um trâmite para legitimar, de algum modo, o procedimento, eu escrevi uma longa carta ao presidente. Nela, eu lhe dizia que devíamos aproveitar a oportunidade para aproveitar em toda a sua seriedade uma ocasião em que estava em jogo a honra de um teólogo dedicado toda a sua vida à teologia e o prestígio de sua obra. Eu começava lembrando que não se tratava de examinar coincidências ou discrepâncias na teologia, pois isso pertence ao legítimo pluralismo teológico, mas sim de ver se, em minha teologia, havia algo que lesionava diretamente a fé da Igreja ou que, com argumentos sérios e confrontados, implicasse essa lesão. E eu insistia sobretudo em duas condições para um diálogo justo: que os participantes estudassem a sério o tratamento dos problemas na minha obra e que todos buscássemos a verdade e somente a verdade. Eu pedia até que, no começo, manifestássemos – eu primeiro – de modo expresso, diante de Deus, que queríamos cumprir essas condições, e que, se não fosse possível por falta de tempo, que se adiasse a reunião.
Essas condições não foram cumpridas, e a reunião ocorreu no dia assinalado, com a participação do presidente, um bispo da comissão, um teólogo convidado e o secretário. Durou cerca de duas horas, e o tom foi cordial: fizeram-se alguns esclarecimentos e constataram-se algumas diferenças entre as minhas explicações teológicas e algumas manifestações do magistério ordinário. O teólogo reconheceu expressamente que, na sua opinião, tudo estava dentro do legítimo pluralismo da teologia atual. Minha surpresa foi receber, poucos dias depois, uma carta do presidente dizendo que, durante a reunião – ele sempre a chama de "diálogo" – "descobrimos que algumas de suas propostas teológicas são incompatíveis com a fé da Igreja Católica, tal como ela tem sido legitimamente formulada pelo seu magistério autêntico". Essa afirmação me feriu, embora não tanto como a que havia sido feita no princípio pela “Notificação”, quando afirma que se chegou ao seu resultado depois que "a Comissão Episcopal para a Doutrina da Fé manteve um diálogo extenso e detalhado com o autor."
Um dos pontos sob severa crítica é sobretudo o ponto de partida da sua vasta produção teológica: o novo paradigma para reformular o dogma, que lhe é muito contestado. O que o senhor entende pelo verbo reformular?
A utilização que o documento faz de "novo paradigma" é muito curiosa, como se fosse uma invenção minha e não algo muito utilizado. Mas é verdade que o meu pensamento está muito determinado pela convicção de que a mudança operada pela Modernidade – à qual Jaspers atribuía um posto semelhante aos acontecimentos da passagem do Neolítico ou com o "tempo axial" – é tão radical que, como dissera Paul Tillich, "abalou os fundamentos". Não se trata de se acomodar sem mais à Modernidade, mas sim de reconhecer o que nela constitui um avanço irreversível. Concretamente, o centro na descoberta da "autonomia" da criação. Algo que o Vaticano II não só reconhece, mas também proclama com estranha solenidade, afirmando que levá-la em conta é uma exigência "absolutamente legítima", tanto com relação às "coisas criadas", quanto com a "própria sociedade". O único que ele pede é que isso não leve a desvinculá-la de sua dependência e referência ao Criador (cf. Gaudium et spes, n. 36).
Pessoalmente, estou convencido de que, se não conseguirmos esse equilíbrio, a fé se tornará incompreensível para a cultura atual, e que, para os homens e as mulheres de hoje, Deus acabará aparecendo ou como inimigo de sua liberdade e de sua realização, segundo dizia o primeiro ateísmo, ou como algo indiferente e invisível, como acontece agora com tantas pessoas. Essa preocupação decide o núcleo mais vivo e fundamental da minha teologia, que, por isso, se move sempre entre dois polos: "repensar" os conceitos da teologia, a partir do reconhecimento da autonomia das criaturas, e "recuperar" a experiência original, tornando patente a sua relação constitutiva com Deus. A "reformulação" é uma consequência. De fato, os editores do Festschrift [livro-homenagem], por causa da minha aposentadoria, captaram bem essa preocupação, intitulando: Repensar a Teologia. Recuperar o cristianismo.
Na tentativa de conseguir isso, a ideia da criação-por-amor se tornou cada vez mais viva e essencial, quase como um axioma radical para a compreensão atual de fé. Ela permite respeitar a autonomia, não só afastando-se do deísmo clássico do Deus arquiteto ou relojoeiro que, tendo criado o mundo, se retira ao seu céu, mas também do "deísmo intervencionista", tão incrustado no imaginário piedoso e até mesmo teológico. Refiro-me à imagem de um Deus que está no céu, mas que intervém de vez em quando, ou de modo espetacular, com milagres, ou de modo mais ou menos oculto, quando acode em nossa ajuda porque o pedimos, ou o movemos à compaixão com nossas súplicas e sacrifícios. Falo do "imaginário" e por isso sou consciente de que estou incorrendo em uma certa caricatura. Mas acredito que é preciso chamar a atenção sobre isso, porque, a meu ver, aqui reside uma das tarefas mais urgentes para uma teologia e uma piedade atualizadas.
A criação-por-amor nos orienta para o Deus que, criando-nos e sustentando-nos, está habitando e promovendo com amor incansável – "Meu Pai trabalha sempre" (Jo 5, 17) – o nosso ser. Ele é o Deus de Jesus, que não precisa entrar no mundo para suas intervenções, porque já está sempre dentro e ativo, movendo o mundo através de suas leis e solicitando sem cessar a nossa liberdade para – em uma expressão que eu gosto – deixar-nos ser e realizar por Ele, acolhendo o seu chamado e prolongando a sua criação: "Estou à porta e bato" (Ap 3, 20).
O senhor teria "distorcido" os elementos da fé da Igreja. O texto elenca nada menos do que sete e não de pouca importância. Comecemos pelo primeiro: a relação entre o mundo e o Criador. O que a Comissão encontra de "distorcido" nela?
Aí está o erro que eu considero fatal. Devo dizer que a hermenêutica empregada no documento não é satisfatória, para não qualificá-la de gravemente deficiente. Ela não só leva em conta unicamente uma pequena parte da obra, mas também a interpreta a partir de uma perspectiva alheia a ela: a partir de um imaginário mais bem extrínseco e "intervencionista". A minha teologia fala do Deus que está nos criando por amor. Mas a Notificação interpreta, às vezes, como se eu o apresentasse como distante e passivo. Outras, como não suficientemente diferente do mundo. Acerca do segundo ponto, devo dizer que essa é a primeira vez que eu vejo que alguém me interpreta assim e confesso que acho incompreensível. Posso afirma sem medo de me equivocar que me encontro entre os teólogos que mais tempo e mais esforço reflexivo dedicaram a esclarecer a relação Criador-criatura (o meu livro Recuperar a criação é apenas uma amostra, embora muito querida para mim), como a fundamentar epistemológica e ontologicamente a necessidade de afirmar o “caráter estritamente pessoal de Deus”. Deus como Abbá é um leitmotiv de toda a minha teologia e, em um ambiente que, principalmente na atual influência do pensamento no-dual (advaita), sem negar todo o seu valor, eu insisto que perder ou diminuir o caráter pessoal de Deus representaria uma perda irreparável não só para o cristianismo, mas também para as religiões orientais e para a própria humanidade.
Na sua distinção entre natureza e graça, e entre criação e salvação, também haveria distorções. O senhor pode esclarecer os pontos do seu pensamento que, segundo a Notificação, não coincidem com a fé da Igreja?
Se levarmos em conta a experiência radical que todos buscamos esclarecer, isso me parece simplesmente falso. Se levarmos em conta o seu repensamento, é claro que eu proponho uma compreensão nova, que, centrada na criação-por-amor, vê toda a criação como um ato amoroso de Deus, que nos ampara e promove desde o nascimento até a morte, desde o começo da história até o seu fim. Os conceitos de "criação" e "salvação" são distintos. Mas, a partir da discussão teológica provocada pela obra de H. de Lubac, para uma teologia atualizada, deveria ficar claro que eles refletem a mesma realidade.
Nesse sentido, mais importante do que esse aspecto da discussão, me parece ser a necessidade de aproveitá-la para repensar o “esquema da história da salvação”. Na imaginação coletiva, incrustou-se uma sucessão que hoje induz efeitos terríveis, às vezes irreparáveis para a fé de muitas pessoas: criação em um paraíso → pecado dos primeiros pais → terrível castigo divino não só para eles, mas também para os bilhões dos seus sucessores inocentes → perdão mediante o sacrifício reparador da cruz → tempo da Igreja → desembocadura escatológica com prêmio ou castigo.
Eu sei que, de novo, estou simplificando, mas é difícil negar a existência e eficácia terrível desse esquema, que faz ver o mal como um castigo divino e um mundo que, se Deus quisesse, poderia ser e continuar sendo um paraíso. Isso se vincula com o duro “problema do mal” ao qual dediquei meu último livro, intitulado justamente Repensar o mal, porque acredito que esse problema, se continuar mal resolvido – um Deus que, em definitivo, poderia, mas não quer, evitar o mal do mundo – pode envenenar a nossa imagem do verdadeiro Deus anunciado por Jesus.
Quanto ao esquema aludido, já desde Santo Irineu a tradição dispõe de uma visão mais de acordo com o autêntico dinamismo da revelação bíblica: Criação por amor de uma criatura inevitavelmente imperfeita → crescimento na história, que é constitutivamente história de pecado humano e de incansável graça divina (é isso que quer ensinar a doutrina do "pecado original" e a imediata promessa de salvação) → culminação em Cristo da história da revelação, da graça e da salvação → vida da Igreja → esperança escatológica.
E chegamos a um ponto que o senhor abordou com grande competência: o conceito de revelação, que o senhor não entende como algo "ditado", mas sim como um "dar-se conta" do que já está na pessoa. Por que, segundo o senhor, a Comissão contesta essa sua interpretação?
Grande competição de minha parte ou pequena, não sei. Mas o que sei é que dediquei muita paixão e muito esforço a um tema que me parece crucial para possibilitar a atualização da teologia. Foi, talvez, a minha primeira tentativa a sério de conjugar a autonomia, nesse caso da subjetividade humana, com a sua constitutiva referência a Deus. Por isso, distingo dois momentos fundamentais (que, talvez por minha culpa, nem todos os intérpretes perceberam bem).
O primeiro é a experiência original, a primeira descoberta pelo "profeta" (digamos assim, para nos referirmos a todas as pessoas que, de um modo ou de outro, fizeram avançar a revelação na história). Partindo do Deus, criando-nos por amor, está sempre tentando se dar a conhecer (não fazem o mesmo todos os pais com seus filhos e filhas?), duas coisas me parecem claras: 1) que Deus está sempre e com todo o seu amor tentando se manifestar a nós, para que todo homem e toda mulher, toda cultura e toda religião descubram a sua presença e compreendam o que Ele é e quer ser para nós; e 2) que os limites, obscuridades, erros ou más interpretações não dependem de que Deus se oculte ou não queira se revelar, mas são consequência inevitável da limitação humana, seja porque não podemos, seja porque não queremos (a "dura cerviz" de que a Bíblia fala às vezes). Por sorte, de vez em quando, alguma pessoa, por circunstâncias externas ou qualidades internas, "se dá conta" do que Deus, em seu amor irrestrito, está tentando manifestar a todos, e se produz a "revelação": "O Senhor estava aqui, e eu não sabia ", exclamou Jacó, "despertando do sono" (cf. Gn 28, 16; observe-se o simbolismo).
Quando a Bíblia é lida nessa perspectiva, é uma maravilha ver como vão se produzindo as grandes descobertas. E observe-se que isso não "reduz" a revelação a um mero processo encerrado na imanência humana (como a Notificação me atribui), muito pelo contrário. Não se descobre um Deus que está quieto, ou que é surpreendido quando tentava se esconder. "Damo-nos conta" do chamado insistente de Alguém que não tem outro interesse que nos manifestar o seu amor e nos animar a acolher a sua salvação. Descobrimos isso porque, e somente porque, Deus está se manifestando a nós e nos dando a capacidade de compreendê-lo na medida em que a nossa limitação o permite ou a nossa resistência não o impede. Por isso, a revelação autêntica é, sempre e com toda a verdade, vivida e percebida como graça e resposta a uma iniciativa divina: como "palavra de Deus".
A partir daí, abre-se o segundo momento: o da acolhida livre e responsável da revelação uma vez ocorrida e anunciada. Agora, ela é mais facilmente compreensível, porque, na realidade, responde a uma estrutura universal da nossa compreensão. Sempre, principalmente nas questões difíceis – e as relacionadas com a Transcendência o são de forma máxima –, a descoberta primeiro é difícil e acontece em uma pessoa ou em uma circunstância muito determinada. Mas quando acontece uma descoberta e ela é comunicada aos demais, então todos podem, de alguma maneira, percebê-la por si mesmos. Todos os físicos viam maçãs caindo, e só Newton foi o primeiro a "se dar conta" de que aí se anunciava a gravitação universal. Mas quando o publicou, todos puderam vê-lo, e vê-lo por si mesmos: aceitaram a gravitação graças ao fato de Newton tê-la dito, mas já não simplesmente porque ele lhe disse, mas também porque eles agora a viam por si mesmos. Não é isso que os samaritanos disseram à Samaritana: "Já não acreditamos por causa das tuas palavras. Agora, nós mesmos ouvimos"? (Jo 4,42).
Pois bem, acudindo a Sócrates, que afirmava que, assim como a sua mãe com as parturientes – maia, parteira, praticante da maieutiké techne –, ele também não introduzia as ideias em seus ouvintes, mas os ajudava a lhes dar à luz, acredito que compreender o anúncio revelador como uma maiêutica é a melhor maneira de explicar o seu carácter potencialmente universal e a possibilidade de acolhê-la sem romper a justa autonomia humana, evitando convertê-la em simples fideísmo ou asylum ignorantiae (Pannenberg).
Deus está sustentando, habitando e agraciando a todos com o mesmo amor que ao profeta: este não descobre algo que Deus só quer manifestar a ele, mas sim a todos assim como a ele. Oseias, graças à sua experiência de não ser capaz de deixar de amar e perdoar a sua mulher que volta à prostituição (seguramente sagrada, de hieródula), "se dá conta" de que isso é o que acontece com Deus com relação a nós, e que, por isso, ele está tentando se manifestar a nós desde sempre através do melhor do nosso ser. Custou muito à humanidade - e continua custando – compreender que Deus não é uma presença que controla, julga e condena. Mas, quando Oseias e mais tarde Jesus, na parábola insuperável do Filho Pródigo, souberam escutar o que Deus real e verdadeiramente estava tentando nos dizer em sua presença viva e amorosa, também nós podemos "vê-lo", compreender que é assim, que isso é o que ele também está nos manifestando através do nosso ser mais íntimo e da nossa humanidade mais autêntica, que não poderia ser de outra forma, se Ele é amor e a sua misericórdia é infinitamente superior à nossa ("Porque eu sou Deus e não homem", Os 11, 9).
Para não cair em um idealismo fácil, convém acrescentar que o processo pode ser muito difícil e até mesmo fracassar: podemos não vê-lo, podemos resistir ou duvidar entre interpretações alternativas. Isso aconteceu também naquela época e acontecerá sempre: o importante é que a oferta não coloca o ouvinte perante um salto cego ou a uma imposição autoritária (lembremo-nos da crítica de Bonhöffer a Barth: "Coma, pássaro, ou morra"), mas sim diante de uma proposta "verificável" (dentro, é claro, do modo específico de verificação que lhe corresponde).
Mas é preciso, porém, concretizar algo muito importante: trata-se de maiêutica histórica. Porque não se trata de um retorno ao mesmo, da recordação (anamnese) das ideias eternas. Chega de pensar que, na revelação, Deus está ativamente presente criando-nos por amor, promovendo o nosso ser e ajudando-nos a realizá-lo até a sua possível plenitude, para compreender que se trata do chamado para a frente, do anúncio do novo, de um autêntico "novo nascimento". Tudo isso está dito com mais clareza e muito mais extensão no meu livro Repensar a revelação. Por isso, considero totalmente infundado o temor da “Notificação” de que essa visão pode levar à negação de que Deus "estabelece uma relação viva com o homem na história, na qual cabe uma Revelação de Deus com novas palavras e obras que culmina na Encarnação" (n. 4).
A Comissão também considera que a perspectiva do chamado "pluralismo assimétrico" para compreender a relação do cristianismo com as outras religiões não está conforme à doutrina expressa, por exemplo, na declaração da Congregação para a Doutrina da Fé Dominus Iesus (2000).
Quanto à teologia subjacente, devo reconhecer que a coincidência não é exata. Mas, tomada na perspectiva a partir da qual eu a proponho – Deus que cria por amor e o novo conceito de revelação –, acho que a minha teologia expressa integramente a mesma fé que a instrução papal quer defender. É preciso levar em conta, além disso, que a categoria do "pluralismo assimétrico" forma rede com outras duas – inreligionação e teocentrismo jesuânico –, em cuja relação se esclarece e se completa o seu significado. Se Deus ama com idêntico e infinito amor a cada mulher e a cada homem sem "acepção de pessoas", e se a todos quer revelar seu amor de Abbá, pai-mãe, me parece que devemos admitir que toda captação viva e concreta da sua presença é revelação real, na justa medida em que é acertada.
Por isso, a revelação é um processo histórico, que deve ir se purificando e se aprofundando. De fato, observá-lo na própria Bíblia, desde as primeiras tradições e os primeiros escritos do Antigo Testamento a até a sua culminação em Jesus Cristo, constitui um dos estudos mais apaixonantes. Em seu contexto e em sua medida, em cada religião se realiza um processo semelhante. Por isso, há verdade em todas elas, como expressamente reconheceu o Concílio, e, portanto, também revelação, embora o Concílio não tenha chegado a usar essa palavra para ela. Nesse preciso sentido, todas as religiões são verdadeiras: essa é a verdade do pluralismo. Mas, dito isto, um mínimo de realismo histórico mostra que nem todas são nem podem ser igualmente verdadeiras. Daí a proposta do pluralismo assimétrico. Eu respeito a convicção dos fiéis de outras religiões, mas acredito que o que foi revelado em todo o destino de Jesus de Nazaré é, dentro da história, definitivo e até insuperável.
É claro que essa enorme afirmação não pode ser uma presunção apriorística, mas sim uma constatação modesta e a posteriori, isto é, a qual se chega – ou se pode chegar – comparando dentro do possível a visão que as diversas religiões oferecem de Deus e, à sua luz, do destino humano. Pessoalmente, assim como a tradição cristã a partir do próprio Novo Testamento pensou, acredito ter motivos suficientes para poder fazer essa afirmação. Esse é o sentido do qualificativo "assimétrico". Na minha opinião e sempre que se parta de uma lógica da gratuidade, em que o que se descobre em uma religião pertence a todas por igual e sem privilégios de nenhum tipo, essa visão possibilita que se conjugue, de um lado, a confissão de Jesus como o Cristo – e a isso alude o "teocentrismo jesuânico" – e, de outro, o respeito e a colaboração fraternal com as demais religiões.
Acrescento, além disso, que, no encontro, não se trata substituir, mas sim de compartilhar, oferecendo o que se tem para que, se for aceito, possa ser incorporado como enriquecimento ou purificação da própria religião. Esse é o significado da "inreligionação", que quer completar o de inculturação, para evitar o perigo de respeitar a cultura, mas substituir a religião. Bem entendido que, dado que, em sua realização histórica, a plenitude revelada em Cristo está sempre em construção, o cristianismo também se enriquece com o diálogo. De fato, é isso que está acontecendo na realidade. Há um ecumenismo em ação, mais real e mais rico do que o teórico dos congressos (apreciação com a qual, certamente, o cardeal Martini se mostrava de acordo na única ocasião em que tive a sorte de conversar com ele na nossa cidade de Compostela).
Não sei se foi pura coincidência. O senhor recebeu a Notificação na Sexta-Feira Santa. A ressurreição, é, há muitos anos, um dos centros da sua pesquisa teológica, realizada, dentre outros, aprofundando estudos de grandes exegetas. Essas suas posições também são discutidas pela Comissão.
Penso que a data foi escolhida, com certa pressa estratégica, para aproveitar a dispersão das pessoas na Semana Santa. Mas é certo que o tema da ressurreição preocupa a Comissão. Na realidade, nesse ponto, tão central, é onde aparece mais claramente o equívoco que está no fundo da sua reação: a confusão entre a fé e teologia, entre o que é a confissão comum e o que são as distintas teorias teológicas. A Notificação (n. 18) reconhece expressamente que eu confesso e mantenho "que Jesus não ficou aniquilado pela morte, mas ele mesmo, em pessoa, continuava vivo e presente, embora em um novo modo de existência" (Repensar a ressurreição, 153).
É óbvio que isso deveria bastar para eliminar toda suspeita em matéria de fé, e, no livro Repensar a ressurreição, eu distingo claramente as duas partes: a primeira, referida à confissão, e a segunda, que trata de propor uma interpretação teológica, com a advertência expressa de que tudo o que se diz nessa parte é uma opinião teológica, discutível como todas, e que, por isso mesmo, de modo algum pretende questionar a fé confessada na primeira. Mas a Notificação, a partir do pressuposto continuado de identificar a fé com a sua teologia implícita, vê ameaça ou negação da fé comum quando aparece uma discrepância com a sua teologia. E lembre-se de que, no começo, ela deixa ver qual é essa teologia ao dar por suposta a sua concepção: "A ressurreição de Jesus Cristo como milagre suscetível de provas empíricas" (n. 3). E a norma com a qual medem a teologia presente na minha obra é o Catecismo da Igreja Católica, continuando a mistura confusa do jogo linguístico catequético com o estritamente teológico.
A preocupação se centra nos problemas das aparições, do sepulcro vazio e da ressurreição na morte. Não é possível aqui estender-me em detalhes.
Quanto às aparições, assinalo unicamente que a minha insistência é no caráter transcendente do Ressuscitado, já exaltado à Glória, caráter que o situa acima – e não abaixo! – das leis do espaço-tempo!. A consequência que, então, me parece correta e coerente é que alguém que pode estar em qualquer lugar do planeta onde dois ou três se reúnem em seu nome, que se faz presente em uma eucaristia celebrada no coração da África e em um trabalho pela justiça em Manhattan, não pode ser acessível aos nossos sentidos, que só respondem a estímulos físicos.
E mais: acredito que postular aparições empíricas – falo apenas delas – para assegurar a objetividade e a realidade da ressurreição, longe de assegurar a sua verificabilidade específica, a torna impossível, pois incorre implicitamente na "falácia empirista" de exigir provas físicas para uma realidade transcendente. Vê-se isso claramente quando se fala da existência de Deus (a cuja Glória o Ressuscitado já pertence): lembre-se do famoso Júpiter trovejante cuja aparição empiricamente registrável Hanson acreditava ser necessária para nele crer. Em outros lugar, eu o digo assim: "Exigir provas físicas [...] seria epistemologicamente tão incorreto quanto exigi-las para a existência de Deus; ontologicamente, contradiria a sua presença universal no espaço e na história; e teologicamente seria grotesco chegar, assim, à consequência inevitável de que os primeiros que anunciaram a fé não acreditaram, pois, mediante o ver, dispensou-se-lhes a fé" (Walter Kasper).
A questão do túmulo vazio que impressiona mais o público geral, hoje é, no entanto, considerada por muitos teólogos – penso na maioria dos que a tratam detalhadamente – como claramente sem conexão intrínseca com a fé na ressurreição. O próprio Pannenberg, talvez o seu mais douto e enérgico defensor, me disse em uma conversa pessoal que não fazia com que a sua fé dependesse dela. Parece-me que a leitura das citações que a própria Notificação levanta, mostra que a minha opinião – e não certeza dogmática – é mais coerente com o mistério e evita dificuldades de solução muito difícil de outra forma, sobretudo a estranha situação de três dias em que existe um cadáver, enquanto Cristo está vivo e que, na manhã do terceiro dia, esse cadáver desaparece, é transformado em algo não físico, é aniquilado (?)...
Ao contrário, segundo a sugestão joanina – que o próprio W. Kasper considera como "a teologia pascal mais grandiosa que se possa imaginar" – da "exaltação" (hýpsosis) na cruz, do "morrer rumo ao interior de Deus" – aludida por Rahner e Küng –, tudo ganha coerência: ressurreição como exaltação e glorificação, revelação e fundamentação definitiva para a fé de que o "Deus dos vivos" nos acolhe a todos em nossa morte e que esteve acolhendo desde sempre a todos os seus filhos e filhas. Tem sentido pensar que Deus esteve esperando centenas de milhares de anos para começar a ressuscitar somente a Jesus no ano 30, e irá esperar depois até o fim do mundo para ressuscitar a todos? Acredito que, ao menos como proposta teológica, que não pretende se impor a ninguém, tudo isso merece ser considerado, dialogado e discutido.
Quanto a questões menos centrais, como a do "tempo intermediário" e do significado do juízo final, prefiro remeter aos textos já citados pela própria “Notificação” em sua última seção, "Problemas de escatologia" (nn. 22ss).
s últimos dois pontos que lhe são contestados referem-se, de fato, à escatologia. O senhor negaria que se deva distinguir entre um estado de alma separada e uma ressurreição final, enquanto os documentos da Igreja afirmam a subsistência, depois da morte, de um elemento espiritual dotado de consciência e de vontade. Em suma, o senhor não aceitaria a fórmula clássica da ressurreição da carne.
Acho que na resposta anterior aparece claramente o que eu penso. Parece-me que, por outros caminhos, a ressurreição na morte retoma a visão bíblica da realidade unitária da pessoa. Eu não gosto de falar de um "elemento espiritual dotado de consciência e de vontade", mas sim da pessoa viva, como, de fato, nós o confessamos sobre Cristo. Ressuscita a pessoa, ela mesma, só que glorificada na comunhão com Deus. Essa é a maravilha que a "ressurreição da carne" quer expressar. Expressão que, sobretudo e acima de tudo, quer afirmar a identidade pessoal: não outro ser, alheio às suas relações de carinho íntimo e de fraternidade universal, mas sim ela mesma, a que foi se construindo em sua história única e irrepetível.
Em segundo lugar, o seu estar já livre das travas do espaço-tempo. Falar de "carne" é significativo para indicar essa identidade e advertir que os ressuscitados não são seres angélicos, mas sim verdadeiramente humanos que chegaram a ser o que são porque se realizaram em uma história concreta, corporal ("carne" como Leib, não simplesmente como Körper, como ensina a fenomenologia). De todos os modos, convém não esquecer a advertência de São Paulo: "A carne e o sangue não podem herdar o Reino dos céus" (1Cor 15, 50). Nesse sentido, gosto mais de falar de "ressurreição dos mortos".
E quero acrescentar uma coisa: como eu escrevo no último capítulo do livro, para mim, essa visão supôs uma nova e gozosa compreensão da “comunhão dos santos”, muito unida à redescoberta – "recuperação" – do precioso e consolador significado da celebração eucarística da morte: maravilha da comunhão com Cristo e com os nossos falecidos, e alimento da esperança na ressurreição, da última e definitiva esperança.
E, finalmente, o senhor não distinguiria entre o momento da morte pessoal e o da Parusia, que o senhor entenderia como plenitude da história do mundo.
Só de um certo modo. Eu valorizo muito o realismo e a densidade da história. Justamente a partir da comunhão dos santos, aparece uma incompletude da bem-aventurança, uma preocupação real pelos que ainda caminham na necessidade e no trabalho do tempo, uma espera da glória definitiva na comunhão final, quando "Deus será tudo em todos" (cf. 1Cor 15, 28). Acredito que, nos bem-aventurados do céu, há uma real e humaníssima esperança.
A Notificação quer "salvaguardar aspectos essenciais da doutrina da Igreja, para evitar a confusão no povo de Deus" (n. 28). Tenho às mãos um belo texto redigido por um grupo que o senhor acompanha há anos, que diz ter recebido do senhor o "amadurecimento" da fé, tornando-a "pensável, credível, desejável e vivível". O que dizer?
Eu acredito que o texto do grupo expressa muito bem o que, ao menos, é a minha intenção, a minha preocupação e a ocupação à qual me dedico há mais de 40 anos. Também me confirmam isso as muitas centenas de pessoas cujas palavras de ânimo e de agradecimento me chegaram nestes dias como um rio de carinho. Essa é também uma manifestação da comunhão dos santos.
Depois de ter repensado tanto, o senhor continuará repensando? Enquanto a catolicidade é convidada a viver o Ano da Fé como um momento de intensa espiritualidade, essas intervenções causam perplexidade em muitas pessoas.
Eu já não saberia viver se não continuando na preciosa tarefa de repensar a fé, para ajudar, começando por mim mesmo, na recuperação da confiança e na abertura ao Deus humanissimus, que, na expressão que eu gosto de publicar, "só sabe, só pode e só quer amar". E, nesse sentido, embora, como eu havia dito aos responsáveis, eu tenha acreditado conscientemente que deveria manifestar publicamente a defesa perante uma crítica que não me parece justa nem acertada, também quero encerrar com palavras de agradecimento. No aspecto pessoal, o tom da Notificação procurou ser respeitoso e, sobretudo, no início, descreve bem a minha intenção: "Apresentar uma imagem de Deus que, em vez de provocar medo, permita reconhecê-lo como 'todo amor', e uma imagem do cristianismo que lhe permita não ser excluído do diálogo cultural e religioso" (n. 2). Em definitivo, a fraternidade cristã é muito mais profunda e poderosa do que as nossas discrepâncias podem fazer pensar.
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''Eu pedi o diálogo''. Entrevista com Andrés Torres Queiruga - Instituto Humanitas Unisinos - IHU