Por: Jonas | 17 Abril 2012
No artigo abaixo, criticando “pseudoteorias em neurociência”, o autor adverte que “não existem ‘sedes’, não existe um ‘órgão cerebral’ para a moral, para as matemáticas ou para as emoções”. Esclarecido isto, desenvolve a perspectiva da ‘neurocultura’ para examinar questões que vão desde quais são os melhores horários para ensinar adolescentes, até qual é o melhor momento para aprender idiomas, e, inclusive, por que o cérebro é “uma péssima máquina”.
O artigo é de Antonio M. Battro, publicado no jornal Página/12, 12-04-2012. A tradução é do Cepat.
No século XIX, a fascinação pelos estudos anatômicos e fisiológicos do cérebro humano levou à busca desordenada das mais variadas e disparatadas “localizações” cerebrais, culminando nessa pseudociência chamada ‘frenologia’ e, ainda pior, na imperícia médica denominada “psicocirurgia”, que gerou o auge das lobotomias como tratamento de algumas patologias mentais, com resultados desastrosos. Na atualidade, não são poucos os críticos que veem na proliferação dos estudos sobre neuroimagens uma volta solapada a essa frenologia. De fato, muitos deles, implicitamente, recorrem a um marco teórico que se acreditava superado: ao declamar que se descobriu a ‘sede’ de tal ou qual função, o ‘centro’ de uma determinada habilidade ou coisas semelhantes. Distorce-se a realidade e criam-se falsas expectativas num público não advertido.
Uma neurocultura bem entendida e uma neuroeducação saudável devem rejeitar a imagem – frequente nos filmes de série B – do cérebro isolado e pensante flutuando num recipiente de vidro, do laboratório de um cientista maluco. A experimentação neurocientífica não avança por esses caminhos e não pressupõe uma visão ‘frenológica’ do ser humano. Deve ficar claro que não existe um ‘órgão cerebral’ para a moral ou a ética, outro para as matemáticas ou a música, e mais um para o afeto ou as emoções. Pelo contrário, as pesquisas atuais desmentem a existência de uma correspondência estável entre uma estrutura localizada e uma função cognitiva determinada. Ao contrário, trata-se de redes neuronais muito complexas, onde as conexões intracerebrais estabelecem circuitos distribuídos por todo o córtex, o cerebelo, os gânglios basais, etc. Por outro lado, a plasticidade neuronal cria continuamente novos caminhos e conexões, e o córtex cerebral ‘recicla’ circuitos neuronais para processar objetos culturais como a escrita, o desenho ou a música.
O adolescente coruja
A escola tem uma agenda anual rígida, com dias de aulas, feriados e férias. O tema que ocupa o neuroeducador é saber como conciliar este cronograma com a cronobiologia de cada aluno e docente. É disto que trata a ‘cronoeducação’, que se propõe pesquisar os ritmos próprios do sono e da vigília para efeitos de melhorar a qualidade da aprendizagem e do ensino. Recentemente, levou-se a cabo uma revisão atualizada dos ritmos biológicos e a educação, num seminário no Centro Ettore Majorana para a Cultura Científica de Erice.
Por outro lado, devido às grandes mudanças tecnológicas e econômicas, tende-se para uma sociedade que está acordada 24 horas. Esta é uma mudança mundial de enorme transcendência, que se sobrepõe a uma adaptação orgânica de milhões de anos ao ciclo diário de luz e escuridão do planeta. Nosso cérebro sofre as consequências da perda sistêmica de horas de sono na população, especialmente urbana. Calcula-se uma perda de ao menos duas horas, nos últimos 100 anos, uma perda enorme, uma vez que um adulto livre, para um sono sem interferências, dorme umas oito horas e vinte cinco minutos. Os horários escolares nem sempre atendem a estas necessidades de sono, o que provocam situações que vão à contramão de uma aprendizagem saudável.
Outro ponto é a tendência gradual, na adolescência, de um horário para dormir mais tardio. Nas férias ou nos finais de semana, nessa idade, é comum dormir às três da manhã e levantar-se depois do meio-dia. O relógio interno se adapta rapidamente a este novo ciclo, porém, nem tanto ao contrário disso. Quando o adolescente volta às aulas e necessita levantar-se cedo, já não consegue com facilidade. Chega à escola cansado e sonolento, com pouco desejo de encarar um estudo exigente. Esta atitude já chegou a ser tão comum, que se admite como um fato cultural, quando na realidade é o produto de um retardo da fase circadiana, de origem neurobiológica, que pode ser modificada. Uma recomendação pedagógica seria não encarar os estudos mais difíceis nas primeiras horas de aula, mas, deixá-los para o meio-dia; e, por outro lado, não fazer com que o horário escolar, dos adolescentes, comece muito cedo. No que se refere aos seus hábitos de sono e vigília, o adolescente típico tende a tornar-se mais uma ‘coruja’ do que uma ‘calhandra’. Devemos aprender, além disso, a respeitar quais são os momentos do dia preferidos pelos alunos para um ótimo desempenho. No mundo do esporte, isto é simples; basta perguntar a um tenista, por exemplo, a que horas preferiria jogar uma partida. Nas ciências e nas artes, o tema é mais complexo, porém existem dados de que o desempenho cognitivo é melhor nos horários que os próprios interessados consideram excelentes.
Os estudos cronobiológicos provaram que o sono tem um papel essencial na consolidação da memória. Em definitivo, trata-se de gerar na cultura escolar uma maior consciência da importância e da qualidade do sono, da relevância dos cronotipos dos alunos (‘corujas/calandras’) e da necessidade de respeitar os momentos ideais para melhorar a capacidade de aprendizagem. O mesmo se pode dizer a partir da perspectiva de quem ensina: é um tema ainda pouco explorado, sobre o desempenho docente.
Essa péssima máquina
O cérebro não é um computador no sentido habitual do termo. Nada existe nele que permita diferenciar entre um hardware e um software. Em 1943, Warren McCulloch e Walter Pitts estabeleceram as bases teóricas para considerar os circuitos de neurônios como circuitos lógicos, capazes de calcular, a partir da ativação ou inibição de seus componentes formais, sem entrar nas minúcias dos processos neuroquímicos das sinapses e, assim, iniciaram uma nova disciplina computacional, que hoje alcançou um enorme desenvolvimento. Não obstante, tampouco estas ‘redes neuronais’ imitam a atividade dos neurônios reais.
Por outro lado, ninguém duvida que o cérebro seja o sistema mais complexo do universo, com seus bilhões de neurônios e sinapses. Porém, ao mesmo tempo, tudo parece confirmar-nos que o cérebro é uma péssima máquina para calcular, lenta e imprecisa até para os cálculos mais simples. Tentemos simplesmente multiplicar, mentalmente, os dez primeiros números: 1x2x3x4x5x7x8x9. Veremos quanto nos custa fazer isso, comparado a uma pequena calculadora. No entanto, a espécie humana tem demonstrado que seu cérebro pode criar máquinas que o superem em poder e velocidade de cálculo, algo que revela sua prodigiosa capacidade cognitiva.
A dificuldade que experimentamos no ensino fundamental, para adquirir conhecimentos sólidos de matemática, leva-nos a pensar que nosso cérebro chegou a criar esta ciência exata esquivando todos os tipos de obstáculos próprios de sua organização. Estamos apenas no começo desta apaixonante busca que os psicólogos da inteligência começaram, no século XIX, e que agora alça novo voo, graças aos nossos conhecimentos do cérebro humano.
As matemáticas são uma das joias mais sublimes da cultura humana e, como tal, tem sido, em todos os tempos, um dos eixos da educação. O conhecimento matemático cresce de tal forma que, inclusive, especialistas têm dificuldades em acompanhar os avanços cotidianos de suas disciplinas. Tem-se dito que alguns teoremas recentes só podem ser avaliados por um reduzido grupo de expertos. Frente a este crescimento inexorável dos conhecimentos, qual é o papel de um professor de matemática na escola do século XXI? O tema está no centro do debate, nas mais diversas culturas do mundo atual.
‘Falar música’
Existe toda uma ciência dos prodígios matemáticos, que começou de forma sistemática, em 1894, com os estudos clássicos de Alfred Binet. Muitos destes prodígios foram de pessoas de modestos recursos cognitivos, inclusive, alguns foram denominados cruelmente como ‘idiotas sábios’, porque a única coisa que sabiam fazer bem era calcular e jamais chegariam a tornarem-se bons matemáticos. Ao contrário, poucos são os matemáticos de valor que foram grandes calculistas. Uma exceção notável foi a do exímio Ramanujan, o jovem índio que deslumbrou os matemáticos ingleses, de seu tempo, por seu gênio matemático e pela sua capacidade como calculista. Ele não dispunha, lamentavelmente, de recursos de imagem cerebral para realizar algumas observações, que poderiam haver ilustrado os mecanismos neuronais, em ação, num matemático criativo e calculista excepcional, ao mesmo tempo.
Porém, na atualidade consegue-se identificar alguns dos processos cerebrais que caracterizam os calculistas prodigiosos. Estudos recentes revelaram que o cérebro de uma calculista talentoso se diferencia de outros, que não são, porque para um mesmo cálculo ele utiliza circuitos corticais alternativos, predominando neles as áreas frontais da linguagem, mais que aquelas parietais, ligadas ao processamento numérico. É como se ‘falassem’ números. Algo semelhante acontece com os músicos profissionais criativos, em que a cortical da linguagem linguística assume um papel relevante, à diferença dos amadores que ativam mais a cortical auditiva. Os verdadeiros músicos ‘falam música’, mesmo que sejam surdos como Beethoven.
O bebê bilíngue
Uma capacidade mental de enorme importância social e cultural é poder falar, ler e escrever em ao menos duas línguas. Entre as maravilhas da natureza humana encontra-se poder transmitir a palavra falada ou escrita de um idioma para outro, sem perder o sentido e, às vezes, inclusive, sem perder sua poesia. Como dizia Goethe, “quem só conhece sua língua, pouco conhece sua própria língua”. Ninguém ignora que grande parte da cultura literária se baseia em traduções. Hoje, o comércio, a indústria e os congressos internacionais tornam imprescindível o conhecimento de diversas línguas; por causa disso, uma das profissões mais requeridas na atualidade é a de tradutor. Uma sociedade cada vez mais globalizada exigirá maiores habilidades linguísticas. Os impactos dos crescentes movimentos migratórios e de integração das novas culturas, em sociedades cada vez mais plurais, se tornaram um enorme desafio para a educação. Manter ou não a língua familiar, em uma cultura estranha, é uma questão central, e para muitos imigrantes se trata de uma decisão que transcende as necessidades práticas do cotidiano e adentra no valor espiritual, e até religioso da língua. Por isso, o ensino das línguas tem um crescente papel, como nunca se viu, na história da educação. E, aqui, a neuroeducação tem muito que contribuir.
Após anos de debate, muitos países decidiram implantar o ensino de uma segunda língua (L2) como disciplina obrigatória nas escolas. As razões são múltiplas, e nem sempre favorecem uma implementação de acordo com os conhecimentos científicos mais fundamentados. Muitas decisões errôneas neste debate, vital para as famílias bilíngues, se baseiam numa concepção equivocada sobre o fato de crianças adquirirem a primeira língua (L1), de maneira que tem gerado novos ‘neuromitos’, sem base científica alguma. Daí, a importância que recebem os estudos neurocognitivos recentes, para esclarecer os equívocos e ajudar a propor políticas educativas e métodos didáticos apropriados. Por exemplo, muitos creem que as línguas interferem entre si, ou seja, que L2 atrapalha a aquisição de L1, por conseguinte, é melhor começar a aprender L2 quando a L1 já está consolidada. Por isso, em geral, o ensino de uma segunda língua é tardia e se dá somente a partir da escola secundária, quando, na verdade, os primeiros anos de escolaridade são os mais adequados para adquirir, sem inconvenientes, não só duas, mas, várias línguas simultaneamente. As escolas que, na verdade, pretendam dar uma educação bilíngue, devem começar a fazê-la desde o jardim da infância.
Outro erro é pensar que o bilinguismo pode incidir de forma negativa no desenvolvimento cognitivo do aluno, enquanto que os estudos demonstram que, pelo contrário, nas crianças bilíngues o desempenho escolar melhora. Também existe a crença errônea de que uma segunda língua, aprendida precocemente, pode gerar transtornos do tipo disléxico. Os estudos não avaliam esta ideia, mas provam que a fluidez na leitura aumenta, de maneira significativa, num indivíduo bilíngue.
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Da “psicocirurgia” à “neurocultura”. Artigo do médico, pedagogo e psicólogo, Antonio M. Battro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU