07 Abril 2012
"Oxalá, em Porto Alegre, todos os anos, em sexta-feira-santa, comprássemos sempre a herva medicinal marcela, somente dos índios. Não seria nada mau, ao lado do peixe obrigatório no dia da morte do Senhor Jesus, comprar marcela só dos povos indígenas a fim de ajudá-los na sobrevivência", propõe Antonio Cechin, irmão marista, miltante dos movimentos sociais, autor do livro Empoderamento Popular. Uma pedagogia de libertação. Porto Alegre: Estef, 2010.
Eis o artigo.
No semana comemorativa dos 240 anos da capital dos pampas que se encerrou domingo passado, nos jornais, rádios, TVs, grandes loas à cidade, tudo lindo, bonitinho, “etc. e tal!...” “Porto Alegre é demais!...” Só uma dupla de índios do estado do Acre, que haviam desembarcado na capital para, junto com os acampados do “ocupa POA”, em tendas na praça da matriz, vieram para estragar os festejos da “mui leal e valerosa”. O jornal Zero Hora relata o acontecido, único fato destoante, em três doses homeopáticas. Eis o fato:
"Profanação 1
Surpresa.
A palavra define o sentimento do pároco Carlos Haas (Nota da IHU On-Line: confira o comentário do pároco clicando aqui) ao avistar um barulhento grupo de cerca de 15 pessoas entrando na Catedral Metropolitana durante a missa oficiada pelo arcebispo dom Dadeus Grings.
De acordo com uma das participantes do Movimento Ocupa POA, que pediu para não ser identificada, o ato era uma homenagem aos indígenas que construíram o prédio.
Profanação 2
A partir daí, fiéis e manifestantes, entre os quais dois indígenas do Acre, entoaram seus cantos ao mesmo tempo, estabelecendo uma espécie de disputa sonora.
Procurado pelo Informe Especial, Haas contou o que viu: "Eles subiram no altar e um deles chegou a se sentar na cadeira do arcebispo".
Em nenhum momento, dom Dadeus interrompeu a liturgia. Meia hora depois, o grupo foi embora.
Profanação 3
CarIos Haas, que é o pároco da Catedral, afirma: "Se eles tivessem nos pedido, abriríamos espaço para a conversa e o diálogo".
A integrante do movimento garante que o grupo pediu licença e que a intenção era realizar o ato em
outro horário, mas que o prédio não estava aberto."
O repórter que colheu o fato, falou com o pároco e mais uma única pessoa e em situação de medo diante de um repórter, do “Ocupa POA”, movimento que completa 50 dias de acampamento. Só que não falou com os próprios índios recém chegados em missão especial, desde o Acre, empunhando uma bandeira de luta, enviados por um acampamento de indígenas do extremo norte do país e que, na hora em que estivemos falando com os acampados do “Ocupa”, ainda perambulavam pela cidade. Nem se interessou em perguntar a respeito da viagem dos indígenas e do objetivo, a nosso ver sensacional, pelo fato de não ser do conhecimento da maioria dos porto-alegrenses que também existem indígenas conscientizados e em missão de solidariedade nas lutas comuns dos movimentos populares, funcionando como autênticos pombos-correio da Paz. Tanto lá no extremo norte, quanto aqui na Praça da Matriz, unidos pela preservação de Belo Monte. Nesse intercâmbio de solidariedade nas lutas, daqui também “partiu uma galera de dois companheiros para somar com o grupo de Brasília” nas palavras textuais de Vinicius, um acampado com quem falei numa roda de 5 pessoas. Convém observar que o grupo do “Ocupa” – no momento de umas 30 pessoas – se reveza de dia e de noite defronte ao templo-mor da cristandade.
No dia da “profanação,” os índios haviam tentado, num primeiro momento, falar pelos microfones do CEPERS, aos professores que se encontravam em protesto contra a lei do salário do magistério, na iminência de ser aprovado pelos deputados. Eles, os professores, também na Praça da Matriz, porém em canto oposto, defronte ao palácio Piratini. Não tendo os índios conseguido o uso dos microfones, talvez por preconceito dos professores que não souberam somar com gente indígena também em luta tanto quanto o magistério, os silvícolas – habitantes das selvas, florestas, campos e matos – ao se alertarem que tinham diante dos olhos escancarada a porta da catedral, tendo ouvido lá de dentro vozes de pessoas em celebração religiosa, não pestanejaram um instante. Acreanos tupinambás à frente sintonizados com o culto, queriam rezar e cantar do jeito que lhes é próprio. Ocupa POA atrás, entraram todos em cortejo, no templo. A um certo momento o duo indígena também cantou, porém, em voz sumida, conforme nos testemunharam os co-participantes do Ocupa. Não notaram absolutamente nenhum sinal nos índios, que denunciasse vontade de concorrer com os que cantavam na Missa.
Parece a nós que a dupla indígena acreana não fizera nada de muito diferente do que fizeram os apelidados “selvagens” em 1500, por ocasião da tomada de posse do Brasil, segundo a narrativa do escrivão da armada portuguesa, Pero Vaz de Caminha, quando da “descoberta” da terra. Os silvícolas de então, sumamente admirados, procuravam imitar gestos, cantos, atitudes, em torno do altar da primeira missa no Brasil, presidida pelo religioso franciscano, Frei Henrique de Coimbra, misturados aos portugueses, porém com sumo respeito. Aqui, na catedral, disse-me uma moça do Ocupa, depois que os celebrantes se alçaram das cadeiras rumo ao altar, os dois, foram ocupar por um tempinho as mesmas cadeiras que os padres haviam deixado, com certeza para repetirem o gesto do clero celebrante, interpretado com certeza, o sentar e o levantar, como fazendo parte do ritual católico.
Depois de um trabalho de melhor e mais abundante coleta de informações, ficamos com a convicção de que o repórter do Zero Hora foi, no mínimo, preconceituoso em relação aos índios.
E se, por acaso os índios em sua “profanação”, tivessem ido em direção ao sacrário e o tivessem aberto? E se, descobertas as hóstias consagradas dentro do cibório, as tivessem consumido como alimento, do jeito mesmo como o fazem os fiéis católicos quando, na comunhão se alimentam do corpo do Senhor, para o repórter com absoluta certeza teria sido o máximo de profanação possível na capital dos pampas e sujeita a catedral a ser fechada até depois de uma cerimônia de purificação, como é de costume nessas ocasiões.
Ora. o divino repórter-profeta Jesus de Nazaré, há dois mil anos atrás – está relatado no Evangelho – “num dia de sábado, quando passava por uns campos de trigo, seus discípulos iam abrindo caminho e arrancando as espigas. Então os fariseus lhe perguntaram: “Vê: por que os teus discípulos estão fazendo o que não é permitido em dia de sábado?” O nazareno repórter perguntou aos fariseus: “Vocês nunca leram o que Davi e seus companheiros fizeram quando estavam passando necessidade e sentindo fome? Davi entrou na casa de Deus, no tempo em que Abiatar era sumo sacerdote, comeu dos pães oferecidos a Deus e os deu também para os seus companheiros. No entanto só os sacerdotes podem comer destes pães. E Jesus acrescentou “O sábado foi feito para servir ao homem e não o homem servir ao sábado. Portanto, o Filho do Homem é senhor até mesmo do sábado”. (Marcos, 2, 23 a 28)
Como corolário ao questionamento do Mestre Jesus, a pergunta que se impõe: Será que na realidade a catedral de Porto Alegre, em sua categoria de lugar de culto, está a serviço dos povos indígenas do RS, na situação de miserabilidade em que se encontram, em beira das estradas, por todos os cantos de nosso território?
Começando pelo projeto arquitetônico elaborado por Giovanni Batista Giovenale, temos que reconhecer que a construção de pedra chamada de catedral, é um escândalo para os índios. É um projeto colonialista por excelência. A pedra angular do edifício é do ano de 1921, em pleno século XX.
No livro “a catedral de Porto Alegre” de monsenhor Dr. João Maria Balém, do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul” vem descrito o projeto de construção nas próprias palavras do grande Monsenhor. Grande, aqui, no sentido de um personagem do alto-clero:
“A cripta causa admiração pela sua artística concepção e execução vigorosa em grandes blocos de granito, formados de um metro e trinta cm. de altura.
Chamam a atenção as 8 gigantescas cabeças de índios, incrustadas nos muros ciclópicos das paredes. Formam elas, quase que cariátides esculpidas em grandes pedaços de rocha, e parecem como que esmagadas pelo peso das colunas sobrepostas das ábsides, em cujo vértice deverão estar colocadas as estátuas dos santos apóstolos e santos evangelizadores. Nessa posição representam elas as antigas superstições dos indígenas, abatidas, e sobre elas o templo de nossa fé.
Na verdade a cripta com essas pedras descomunais representa a fase bárbara do Rio Grande, e ninguém poderá negar que aquelas cabeças antropomórficas no pedestal deste monumento não tenham um quê de profundo simbolismo regional a relembrar uma página viva da antiga história riograndense, onde se confundem os índios Minuanos, Tapes, Charruas, Patos, Coroados, Guaranis, Botocudos e Kaingangs, sendo estes últimos moradores no local onde depois surgiu esta bela cidade de Porto Alegre.”
Ué!... Quer dizer que para termos o espaço para construir a nossa catedral tivemos que abater todos esses povos indígenas enumerados em lista?
‘Cabeças de índios bárbaros, com suas superstições abatidas” também nos remetem às cabeças dos negros degolados em Porongos para honra e glória dos chefes vilões farroupilhas, escravocratas antes, durante e depois da guerra dos “farrapos”. Guerra esta que foi dos latifundiários em favor do poder local, contra os latifundiários em favor do poder federal. Puseram os farrapos (negros esfarrapados estes sim) nas frentes de batalha quando deviam ter estado eles, os grandes proprietários, lá no front, arriscando as próprias vidas.
Contemplando o frontispício da catedral na companhia de alguns acampados do “ocupa POA”, também comentamos o mosaico trazido da Itália pelo saudoso bispo Dom Antônio Cheuíche, especializado em arte, onde, do lado direito do trono em que está a Mãe de Deus, estão os três mártires missioneiros Roque, Afonso e João. Certamente, dentro das sepulturas, quando sentiram os dois índios, representantes de todos os povos indígenas semelhantes aos guarani que evangelizaram nas Missões dos Sete Povos, devem ter dado pulos de alegria dentro dos túmulos em que jazem. Aquelas cabeças lá nos fundamentos da cripta, servindo de pedestal para os três santos Missioneiros lá no alto, se reanimando como se reanimaram as montanhas de ossos de que fala o profeta na Bíblia, de pura satisfação.
Aliás hoje, quando a natureza é profanada pelos “civilizados” através dos desmatamentos e coisas similares, mais do que nunca, hoje, “a natureza é o nosso altar” na própria profecia de Jesus, quando lhe perguntaram:
“Mestre, há uma pendenga em nossa terra santa. Uns dizem que devemos rezar no templo da capital Jerusalém. Outro grupo diz que devemos rezar no templo que está no monte Garizim. Em qual dos dois temos que orar?” Jesus respondeu: Chegou a hora em que os verdadeiros filhos de Deus, não necessitarão ir a templos. Irão rezar em espírito e verdade!”
Para Jesus, o templo como edifício pouco importa. O que importa são as pessoas, porque estas é que são o verdadeiro templo de Deus. Índios na miserabilidade e tendo que esmolar em plena Rua da Praia como em Porto Alegre, são templos totalmente profanados.
Enquanto encerro este meu artiguete, em plena semana santa em que estamos, há poucas horas atrás, acabei comprando 60 macetinhos de marcela, para a procissão de sexta-feira santa, na Comunidade pobre da Ilha Grande dos Marinheiros, diretamente dos índios kaingang que, todos os anos chegam a Porto Alegre, desde Nonoai aonde moram e... para vender a marcela que produzem nos matos e campos em que moram.
Oxalá, em Porto Alegre, todos os anos, em sexta-feira-santa, comprássemos sempre a herva medicinal marcela, somente dos índios. Não seria nada mau, ao lado do peixe obrigatório no dia da morte do Senhor Jesus, comprar marcela só dos povos indígenas a fim de ajudá-los na sobrevivência.
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Profanaram os índios a catedral de Porto Alegre? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU