Por: Cesar Sanson | 28 Março 2012
Aconteceu, entre 16 e 18 de março, o Left Forum, encontro que juntou mais de 4 mil ativistas em Nova Iorque, organizado por dezenas de associações, revistas, grupos políticos, redes de pesquisa, coletivos ativistas dos Estados Unidos da América. Aqui alguns fragmentos desses dias em Nova Iorque.
O comentário é de José Soeiro e publicado no portal esquerda.net, 28-03-2012.
Nesse fórum convergiram os principais dinamizadores do movimento Occupy dos vários pontos dos EUA e do Canadá. Em debate, uma miríade de temas de política, cultura, intervenção. O balanço sobre o Occupy, os seus desafios estratégicos e os próximos passos atravessaram todo o encontro.
O microfone humano
O microfone humano é uma bela metáfora do movimento Occupy. Em qualquer sítio, improvisa-se amplificação: “do it yourself”. Qualquer intervenção, para ser ouvida, precisa da cooperação ativa de todos. Cada um vai repetindo o que ouviu para que os outros também ouçam, mesmo que discorde do que foi dito. Pode demorar mais tempo, é verdade. Mas às vezes é preciso ir devagar se temos pressa.
A polícia ocupa Zuccotti Park
A capa do jornal Metro tem o seguinte título: “Occupy Wall Street raises fist...NYPD puts it down”. No dia em que fez seis meses, voltou-se ao Zuccotti Park. Festejou-se, debateu-se, cantou-se. Mas as regras tinham mudado: na praça, que é propriedade privada, foi afixada uma placa de metal que diz que é expressamente proibido levar sacos de dormir, barracas, ou sentar-se no chão. A polícia não hesitou: quando os primeiros ocupantes começaram a abrir as mantas, começou a porrada, evacuou-se a praça e cercou-a de grades. 70 pessoas foram presas. Em resposta às críticas à brutalidade da sua atuação, a polícia emitiu um comunicado em que se justifica da seguinte forma “os manifestantes deixaram o parque numa confusão, com garrafas de licor por todo o lado” e “às 11:39 da noite uma pessoa chamada 'smackem1' escreveu no twitter: 'só faremos a diferença se matarmos um policia ou dois', o que configura uma ameaça de morte”.
“Pensam que nos evacuaram, mas obrigaram-nos a expandir”
É assim que uma ativista fazia o balanço dos meses que decorreram desde o momento, em Novembro, em que o movimento foi expulso da praça. Deixaram de ter a Liberty Square, mas disseminaram-se as assembleias e as iniciativas. “Occupy your neighbourhood, occupy your occupation no matter what your job is or what you do, occupy theory, occupy your mind, occupy your life”
A primeira vitória
Michael Moore falou no Left Forum e fez uma intervenção otimista, que acabou em manif até Zuccotti Park, o sítio onde o movimento começou: “não podemos deixar escapar este momento, é a nossa hora”. Disse que, pela primeira vez em 30 anos, Wall Street deixou de rir da esquerda e passou a temê-la. “Expusemos a fraude. Segundo as sondagens, mais de 70% dos americanos têm simpatia pela causa do Occupy e acham que devia haver mais impostos sobre os ricos”. Foi assim que Moore mediu a primeira grande vitória: não só apoio que tem, mas ter passado a determinar o que se pergunta e o que se discute.
Pão e Rosas
No domingo passaram seis meses desde o dia em que começou o movimento Occupy Wall Street, na rebatizada Liberty Square. Elaine Bernard, sindicalista, lembra uma outra data. Entre Janeiro e Março de 1912, há um século atrás, em Lawrence, Massachussets, mulheres operárias e imigrantes davam uma lição ao mundo. Dois longos meses de greve fizeram os patrões recuar. Queriam melhores salários, mas também o direito à humanidade e à beleza. “Os corações mirram de fome, assim como os corpos. Dêem-nos pão, mas dêem-nos também rosas”.
“Não se apaixonem por vocês próprios”
A experiência da vida na praça marcou muita gente. Os lugares do Occupy, como os acampamentos, foram durante semanas “mini-sociedades autogeridas”, “comunidades holísticas onde nos sentimos seres sociais completos”, onde aconteceram “novas formas de estar junto” e “encontros que nunca tínhamos imaginado, como ver um rabi e duas jovens debatendo sentados no chão”, como explicavam algumas das participantes por aqui. “Juntamo-nos como corpos em aliança, na rua e na praça, pondo em prática a expressão 'Nós, o povo'”, disse Judith Butler. Mas o desafio da transformação não pode ser apenas uma experiência centrípeta. As palavras de Zizek ressoavam em várias discussões: “Não se apaixonem por vocês próprios. Tivemos um tempo gostoso aqui, mas o que importa é o dia seguinte, quando tivermos de voltar às vidas normais. Ter-se-á provocado alguma transformação? O que queremos? Que tipo de organização social pode substituir o capitalismo? Que novo tipo de lideranças?”
O exemplo das enfermeiras
Rosann Demoro é porta voz do sindicato das enfermeiras, que ficou conhecido pela perseguição que fez a Schwarzenegger contra as leis que queria impor enquanto governador. Explicou no fórum: “onde ele ia, estava a imprensa. Se estava a imprensa, nós íamos. Fizemos mais de 100 manifestações dessas.” Ganharam a luta. O sindicato tem mais de 170 mil membros, tem uma estratégia ativa de recrutamento, deu apoio aos acampamentos do Occupy e está agora empenhado numa grande campanha para taxar as transações financeiras.
Numa reunião com as enfermeiras, uma senadora democrata disse-lhes, a propósito desta luta de agora, que elas “tinham de baixar as expectativas”. A resposta veio pronta: “Senhora Senadora, será que vai querer que lhe diga o mesmo quando estiver numa cama de operações?”.
Porta-vozes
À porta do fórum, uma assembleia feita com o tradicional microfone humano. Só para confirmar que está tudo no mesmo espírito, a moça que toma a palavra pergunta: “quem é que é o porta-voz aqui?”. Toda a gente levanta o braço.
A educação não é uma mercadoria?
O programa da manhã da CNN é sobre educação. Em debate está a questão “vale a pena estudar?”. No estúdio, apenas dois economistas. A pergunta vai sendo respondida comparando o que se tem de pagar pelo empréstimo para andar na faculdade e o que se vai receber ao longo da vida com cada emprego dentro daquela área. No final, há uma lista sobre os cursos que “valem a pena” e os que não.
Cosmopolitismo
Domingo, numa concentração em Nova Iorque, ao despedir-me de uma mulher dou-lhe dois beijos. “Ah, vocês dão dois beijos?”, pergunta-me. “É, em Portugal normalmente é assim. Aqui como é?”, respondo. “Aqui”, diz ela, “aqui depende sempre, toda pessoa é diferente, é uma negociação”.
O culto
No guia do American Express aconselham a Revolution Books para quem gosta de “literatura radical”. Achei que devia ir lá. O destaque da livraria era uma publicação de citações de Bob Avakian chamado “BAsics”. Avakian é líder do Partido Revolucionário Comunista (maoista) e explica, num jornal distribuído no Left Fórum, “por que sou importante?”, revelando como ele próprio condensa a experiência do movimento operário e lhe trouxe uma “nova síntese”, sendo naturalmente o líder das massas operárias.
O outro destaque é a “Constituição da Nova República Socialista na América do Norte”. A senhora da livraria explica-me que o Partido passou os últimos anos a escrevê-la com detalhe. Tem seis artigos que se distribuem por dezenas de páginas e está lá tudo: as regras do governo central, a comissão estatal que emitirá as licenças da mídia independentes, as votações que exigem maioria qualificada, a duração dos mandatos, o código penal, o orçamento para a produção cultural do Partido, etc. Até o preâmbulo já está escrito. Começa assim: “a Nova República Socialista da América do Norte só pôde ter nascido como resultado da heroica luta de milhões e milhões de pessoas que foram forçadas a viver sob um regime de opressão nos antigos Estados Unidos da América”.
No mesmo preâmbulo define-se ainda com clareza a “base teórica do novo Estado”: “a ciência do comunismo e o posterior desenvolvimento desta ciência através da nova síntese trazida por Bob Avakian”. Na nota introdutória, previnem-nos que, apesar da expressão adotada, o nome oficial do novo país poderá ser alterado quando o processo revolucionário acontecer.
Porta-vozes II
À noite, há um debate com a Amy Goodman, no conhecido programa alternativo de televisão “Democracy Now”. Faz-se o balanço de seis meses do Occupy e fala-se sobre o futuro: o movimento “occupy your home” contra os despejos, as mobilizações dos estudantes endividados, a campanha pela taxação dos capitais financeiros, a disseminação de iniciativas locais, o MayDay. Três convidados em estúdio: um jovem correspondente inglês, que esteve ativo no processo; a socióloga Francis Pivot, estudiosa dos movimentos sociais e referência na esquerda; um dirigente sindical. São três rostos do movimento, que tomam a palavra e falam “e muito bem” sobre os próximos passos. Alguém os escolheu.
Três desafios
Arun Gupta esteve ativo no Occupy Wall Street, foi o editor do Occupied Wall Street Journal e passou os últimos meses a visitar dezenas de occupys um pouco por todos os Estados Unidos. Resume assim os desafios organizativos do movimento: é preciso estruturas, que aguentem as coisas para além dos momentos; organizadores, que assegurem o funcionamento dos vários grupos de trabalho; e de intelectuais que, além de comentar, participem.
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Fragmentos de Nova Iorque nos seis meses do Occupy - Instituto Humanitas Unisinos - IHU