16 Fevereiro 2012
Em uma carta ao cardeal Nicora, chefe da Autoridade de Informação Financeira da Santa Sé, lança o alerta: "Com a nossa última lei, damos um passo atrás e vamos continuar sendo um paraíso fiscal".
A reportagem é de Marco Lillo, publicada no jornal Il Fatto Quotidiano, 15-02-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nada de transparência, nada de colaboração, nada de vontade de fornecer todas as informações a quem indaga. O Vaticano não tem nenhuma intenção de implementar os compromissos assumidos na Europa para aderir aos padrões do Comitê de Avaliação de Medidas contra a Lavagem de Dinheiro (Moneyval) e não tem nenhuma intenção de permitir que as autoridades antilavagem de dinheiro vaticanas e italianas olhem o que aconteceu nas contas do IOR [o chamado Banco do Vaticano] antes de abril de 2011.
Quem escreveu isso, preto no branco, não foi um jornalista do Il Fatto Quotidiano ou um desconhecido autor de memorandos confidenciais de dúbia autoria, mas sim duas autoridades máximas na matéria dentro dos muros leoninos: o cardeal Attilio Nicora (ex-presidente da APSA, a Administração do Patrimônio da Sé Apostólica, e agora presidente da Autoridade de Informação Financeira do Vaticano, a AIF, na foto) e o professor Giuseppe Dalla Torre, presidente do Tribunal da Cidade do Vaticano.
Os dois documentos confidenciais relatam qual é – para além dos comunicados da Sala de Imprensa dados como alimento aos jornalistas italiano – a verdadeira política da Santa Sé no fronte antilavagem de dinheiro. Uma política que, no que se refere aos fatos ocorridos até recentemente, se assemelha à dos muitos paraísos fiscais do mundo.
O primeiro documento é assinado pelo presidente do Tribunal Vaticano, Giuseppe Dalla Torre del Tempio di Sanguinetto, professor de direito e reitor da LUMSA (Libera Università Maria SS. Assunta), além de membro do conselho diretivo da AIF. Trata-se de um parecer legal solicitado pela Secretaria de Estado à mais alta autoridade consultiva em matéria jurídica no Vaticano.
Na prática, o cardeal Tarcisio Bertone pediu que Dalla Torre determinasse qual era a interpretação correta a ser dada à nova normativa antilavagem de dinheiro introduzida pelo Papa Bento XVI em dezembro de 2010 e que entrou em vigor em abril passado.
Como o Il Fatto relatou, no Vaticano, haviam se distinguido duas linhas diferentes: a primeira, defendida pelo diretor-geral da AIF, o advogado Francesco De Pasquale, visava a levar o Banco do Vaticano, o IOR, a colaborar com as autoridades antilavagem de dinheiro interna (AIF) e fornecer todas as informações solicitadas pela justiça italiana, mesmo sobre os fatos anteriores a abril de 2011.
A segunda linha, defendida pelo advogado Michele Briamonte, do escritório Grande Stevens, de Turim, argumentava que a AIF não tinha esses poderes de inspeção sobre movimentos bancários anteriores a abril de 2011. Obviamente, a luta de poder entre AIF e IOR, a disputa entre De Pasquale e Briamonte, tinha um reflexo imediato nas relações entre Estados. Só se a linha "colaborativa" da AIF vencesse é que as autoridades judiciais e bancárias italianas poderiam meter o nariz (por meio do cavalo de Troia da AIF) nos segredos do IOR. Caso contrário, as investigações italianas em andamento encalhariam.
O Il Fatto publicou, no dia 31 de janeiro passado, um documento confidencial ("Memo IOR-AIF"), do qual se entendia que, nos fatos, estava vencendo a linha "não colaborativa", e que o presidente do IOR e da AIF tinham tentado envolver o secretário de Estado, Tarcisio Bertone, e o secretário do papa, George Gänswein, para convencer o governo vaticano a colaborar com as autoridades judiciais italianas.
No memorando, lia-se: "A AIF (…) enviou ao IOR alguns pedidos de informações relativas a fundos abertos junto ao Instituto, aos quais este último correspondeu, permitindo, dentre outras coisas, o desbloqueio dos recursos confiscados pela Procuradoria de Roma (…). Ultimamente, porém, a Direção do Instituto decidiu examinar os pedidos da Aif – relativos a operações suspeitas ou pelas quais estão em andamento processos judiciais – fornecendo informações apenas sobre as operações efetuadas a partir do dia 1º de abril de 2011 em diante".
Quando esse documento revelado pelo Il Fatto foi republicado oito dias depois pelo canal La7 na TV, a Santa Sé finalmente havia emitido um comunicado para desmentir que o Vaticano não pretendia fornecer informações bancárias sobre os fatos anteriores a abril de 2011. "Não se revela a resistência do IOR para colaborar em caso de investigações ou processos penais sobre fatos anteriores a 1º de abril de 2011".
O parecer de Dalla Torre demonstra o contrário e explica por que os magistrados da Procuradoria de Roma não estão recebendo as informações nem por via de rogatória, como relatado na TV pelo procurador Luca Tescaroli, nem por meio da AIF, no caso dos procuradores Nello Rossi e Stefano Fava, que investigam o presidente do IOR, Ettore Gotti Tedeschi, e o diretor-geral, Cipriani, por violação das normas em matéria de antilavagem de dinheiro. A opinião de Dalla Torre demonstra que se trata de uma escolha consciente.
Perguntado por Bertone se o IOR deve responder à AIF também pelas operações ocorridas antes de abril de 2011, a resposta do presidente do tribunal é um redondo "não": a lei "não permite à AIF o acesso às operações e aos relatórios existentes antes da entrada em vigor da lei".
Exatamente o oposto do que é afirmado no comunicado da Sala de Imprensa da Santa Sé do dia 9 de fevereiro. O parecer de Dalla Torre remonta ao dia 15 de outubro de 2011 e descreve a linha que, depois, será implementada no decreto do presidente do Governatorato Vaticano do dia 25 de janeiro passado. O decreto do arcebispo Bertello priva a AIF dos poderes de inspeção, postos novamente sob sucessivas regulamentações a serem emitidas. Com o resultado de que as investigações bancárias e judiciais do Estado italiano na matéria vão parar.
O significado dessa escolha é explicado pelo segundo documento, assinado pelo presidente da AIF, o cardeal Attilio Nicora. É uma carta do presidente da AIF do dia 12 de janeiro de 2012, enviada no dia seguinte pelo advogado De Pasquale, da AIF, por e-mail, ao presidente do IOR, Ettore Gotti Tedeschi, e anteriormente enviada ao secretário de Estado, Tarcisio Bertone. Esse documento é a demonstração de que o Estado vaticano, depois da aprovação da lei de dezembro de 2011, que certamente representou um primeiro e importante passo rumo à abertura da transparência bancária, preferiu dar marcha à ré.
É uma pena que, como Nicora assinala em negrito, "não deve ser negligenciado o aspecto referente aos perfis de oportunidade com relação ao exterior e ao risco reputacional que podem ir de encontro à Santa Sé". A AIF, a autoridade antilavagem de dinheiro dirigida pelo advogado Francesco De Pasquale e presidida pelo cardeal Attilio Nicora, é hoje pouco mais do que uma ilusão de ótica, privada de poderes. Uma autoridade sem poder que perdeu a sua guerra contra a linha de fechamento defendida pelo secretário de Estado, Bertone, porque evidentemente havia se mostrado muito colaborativa com as autoridades italianas.
Esse evidente passo atrás no caminho do Vaticano para sair da "lista cinza" dos países pouco confiáveis do ponto de vista fiscal e financeiro, é assinalado justamente pelo cardeal Attilio Nicora, quando lhe é submetido o primeiro esboço do decreto (posteriormente publicado no dia 25 de janeiro) no dia 9 de janeiro. Um esboço que, ao Il Fatto, parece ter sido modificado apenas levemente e que, ao contrário, não foi tocado e se tornou um decreto para a parte que mais importava: a drástica redução dos poderes da AIF de inspeção das contas do IOR.
A batalha ainda não encerrou definitivamente. O decreto deve ser convertido dentro de 90 dias. O governo italiano e a União Europeia têm tempo até o fim de abril para pressionar o Estado do Vaticano para que volte atrás.
Porém, não parece que o primeiro-ministro, Mario Monti nem os partidos (incluindo os de esquerda) se interessam particularmente por essa questão.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Normas antilavagem de dinheiro: Vaticano retrocede na transparência - Instituto Humanitas Unisinos - IHU