18 Dezembro 2011
Um ano e um dado: 1995, 158. Tudo começou ali. Ou, pelo menos, começamos a entender tudo a partir dali. O ano de 1995 foi o ano das eleições políticas turcas; 158 foram os assentos conquistados pela partido da prosperidade, o Refah Partisi.
A reportagem é de Marco Ventura, publicada no jornal Corriere della Sera, 11-12-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Os líderes do Refah prometiam liberdade e direitos em nome do Islã. Eles eram fiéis a Kemal Ataturk, mas consideram a sua laicidade como uma camisa de força. A energia do Islã deveria ser liberada para que servisse de ponte entre o passado e o futuro, entre o antigo poder imperial e uma nova modernidade. O despertar dos muçulmanos no mundo era a grande oportunidade: rompendo o isolamento, respirando em uníssono com os irmãos na fé, a Turquia poderia crescer dentro e fora das fronteiras. Os eleitores turcos entenderam. Oferecendo-lhes 158 assentos dos 450 totais, fizeram do Refah o partido majoritário na Assembleia Nacional e lhe permitiram formar, em junho de 1996, um governo de coalizão.
A contraofensiva não tardou. No dia 16 de Janeiro de 1998, a Corte Constitucional de Ankara dissolveu o partido Refah por ser um "centro de atividades contrárias ao princípio da laicidade". O poder judiciário, apoiado pelo exército, anulava a vontade popular e interrompia o experimento do novo Islã político turco.
O Islã e o voto, portanto. Hoje, na Tunísia, Marrocos, Egito, em pouco o Iêmen. Ontem, as eleições turcas de 1995 narraram as ambições das novas sociedades muçulmanas. Certificaram a viabilidade do islamismo: obstaculizado pelas velhas elites, impelido pela democracia. Quanto mais a compatibilidade do Islã com a democracia era contestada, mais o Islã se revelava por meio dela. Nos países muçulmanos, muçulmanos, os islamistas pediam eleições livres contra os ditadores, os militares e as polícias; e invocavam o voto popular contra as ex-potências coloniais, que, sobre os regimes autoritários, fundamentavam a sua política de exploração.
Para os governos ocidentais, a ordem dos militares e dos corrupto era o mal menor. Garantia mulheres e minorias, pelo menos um pouco. Segurava os jihadistas. Depois da retirada dos soviéticos do Afeganistão em 1989, a guerra santa havia se espalhado pelo mundo: da Caxemira ao Iêmen, da Armênia à Palestina, da Bósnia à Argélia. Justamente na Argélia, um golpe de Estado havia interrompido em 1992 o processo eleitoral do qual os islamistas estavam saindo vencedores. Um dos líderes da Frente Islâmica de Salvação, Ali Belhadj, havia proclamado em 1989 que "não há democracia no Islã". O país mergulhou em uma sangrenta guerra civil. Os boletins da Frente eram impressos em Londres, na famigerada mesquita de Finsbury Park.
Ainda em Londres, o escritório de Bin Laden organizava o terror global. Enquanto, na Turquia, o Refah Partisi vivia a sua breve temporada no governo, em agosto de 1996, a fatwa de Bin Laden louvou a guerra santa contra o ocupante norte-americano. Ressoava em todos os lugares na terra do Islã o grito de liberdade. Liberdade do Ocidente cruzado e degenerado; liberdade de governantes traidores do povo e do Islã.
Violência e libertação
Eram efêmeras as fronteiras entre os profetas da violência e os profetas da libertação. Para as novas gerações, nos subúrbios do Cairo ou de Birmingham, de Mumbai ou de Argel, o islamismo era o único recurso. Havia aqueles que militavam e acabavam nos cárceres de Mubarak. Havia os muçulmanos ingleses e marroquinos de 20 anos que se encontravam nos campos de treinamento paquistaneses ou afegãos. Tinham em comum apenas um Islã libertador. E isso era tudo. Um ideal de luta poderoso que motivava existências vazias, dava vazão às frustrações, prometia glória ao desajustado do bairro. Um ideal capaz de se elevar acima do Islã culto, premiado em Frankfurt e em Paris; de mudar os hábitos das maiorias silenciosas.
As jovens renegavam a emancipação das mães e usavam o véu. Em toda a parte, o Islã moderado se curvava à energia do Islã político. O escritor Martin Amis emitiu o veredito: "Os moderados perderam a guerra civil dentro do Islã. É enganosa a sua superexposição nos jornais e na mídia. Em outros lugares, estão passivos, sua voz não é ouvida".
O Ocidente não via as raízes sociais do Islã político, não via seus motivos concretos, sua necessidade histórica. Do alto de uma arrogante distinção entre religião e política, não entendíamos o Islã. Empanturrados de uma fé secularizada, havíamos nos esquecido de que Deus pode armar até mesmo um assassino suicida. Atordoados pela falsa consciência pós-colonial, não acreditávamos na ambição das sociedades islâmicas a serem diferentes de nós, livres de nós. Estávamos deslumbrados com aqueles poucos que pareciam mover os fios. Por que os serviços ingleses pagavam os pregadores do ódio de Londonistão? Por que Gaddafi foi o primeiro a denunciar Bin Laden à Interpol?
Na realidade, o processo em movimento era muito maior do que a distinção entre islamismo político e islamismo terrorista; maior do que as diplomacias e as inteligências. As sociedades islâmicas não renunciavam aos laços tradicionais, de família, de grupo. O machismo, o familismo, o ódio pelo diferente e pelo judeu, o analfabetismo continuavam largamente aceitos. O modelo continuava sendo a homogeneidade cultural e religiosa. Pouco espaço para os direitos individuais, para uma verdadeira pluralidade de opções morais, ideológicas, religiosas.
Ao contrário, essas sociedades se rebelavam contra a corrupção dos governos, a prepotência da polícia. Não podendo imaginar aquela mudança moral e social que Deus proibiria, concentravam emoções e esforços em uma luta de poder.
Bastava um voto para fazer explodir o coquetel de conservação e reforma, de tradição e revolução. Eis a verdade dos 158 assentos do Refah turco em 1995. Verdade distante do dilema totalmente ocidental de Fareed Zakaria: o Islã saberia construir democracias liberais, ou só democracias não liberais? Os otimistas respondiam que o exercício democrático imporia a sua própria lógica às sociedades islâmicas, ocidentalizando-as. Assim sussurrava para George W. Bush o muito jovem Noah Feldman, futuro coautor da Constituição do Iraque pós-Saddam. Por nada, respondiam as cassandras: será o Islã quem vai curvar os procedimentos democráticos à própria lógica não liberal. As eleições na Argélia e na Turquia estavam ali para demonstrar isso.
Democracia islâmica
No entanto, no início do novo milênio, o establishment judiciário-militar turco ainda não tinha posto um fim à história narrada por aqueles dois números, 1995 e 158: o Refah havia se dirigido à Corte de Estrasburgo pedindo-lhe que condenasse o Estado turco. Que a Europa liberal-democrática sancionasse a Turquia antidemocrática, pelo menos no tribunal, por ter dissolvido um legítimo partido político.
A democracia islâmica punha a Europa diante de si mesma, contra si mesma. O que decidiriam os juízes europeus: defender a laicidade turca, considerar fundamentada a cláusula preconceituosa anti-islamista de Ankara e, portanto, repudiar as eleições? Ou ficar do lado das eleições, apesar de tudo? No fim do verão [europeu] de 2001, apenas dez dias antes do atentado às Torres Gêmeas, a Corte Europeia decidiu contra o partido Refah, pelo direito do establishment turco de repudiar os eleitores. Os jornais ocidentais saudaram a vitória da laicidade, a derrota de um Islã que ameaçava a democracia porque sabia usá-la magnificamente.
Dez anos depois, essa sentença é peça de antiquário, e esses líderes muçulmanos são saudados pela revista Time como reformadores moderados. Eles guiam uma poderosa democracia muçulmana, capaz, mesmo na sua especificidade, de se levantar como modelo. No meio disso, anos aparentemente vazios, em que o Islã pareceu contar eleitoralmente apenas onde era minoria. Na Europa multicultural; na África do Sul do pós-apartheid; sobretudo na Índia, onde o eleitorado muçulmano permitiu que o partido do congresso barrasse o nacionalismo hindu.
A primavera árabe não estourou do nada. Novas sementes cresciam debaixo da terra, depois do florescimento dos anos 1990. Alimentavam-se com a infinita variedade do Islã e das suas lutas internas, das fraquezas crônicas da sociedade civil, da sharia reinventado em Leicester, Rotterdam e Pádua. O último raio de sol que fez germinar a semente foi a fome, a opressão. Derrubam-se os tiranos porque causam fome e oprimem, não porque a democracia é bonita; porque Alá legitima não quem tem direito, mas sim quem toma o poder. E se vota majoritariamente nos barbudos, porque estiveram nas prisões dos tiranos, porque são organizados e socialmente eficazes.
Quanto mais a globalização persegue as sociedades islâmicas, mais elas se encerram nas suas tradições, e o povo da web e das praças permanece envolvido em uma luta de poder com a qual o mais forte se beneficiará. O voto coloca assim em cena um turbilhão pós-moderno de twitter e fobia sexual, de feministas e salafitas, de coptas e irmãos muçulmanos.
Aqui está o que saiu da roda do 1995 e do 158. Certamente não um impossível Islã liberal-democrático. Ao contrário, um Islã vital, mas perdido, que descarrega nas urnas as suas contradições.
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Maomé no Parlamento: o Islã e a democracia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU