Por: André | 06 Dezembro 2011
O destacado acadêmico Samer Soleiman situa o futuro do Egito em uma perspectiva na qual a revolução que derrubou a ditadura de Hosni Mubarak não perdeu sua dinâmica. Disse que o eleitorado foi coerente ao apoiar as forças confessionais.
A revolução egípcia saiu das urnas envolta na cor verde, duplamente: a da Irmandade Muçulmana e a dos salafistas. A fase inicial das primeiras eleições livres realizadas no Egito, depois de mais de meio século de ditadura, terminou com a vitória do Partido da Liberdade e da Justiça (PLJ), o braço político da Irmandade Muçulmana, e da corrente mais radical, os salafistas do partido Al Nur. Em terceiro lugar aparece a aliança entre leigos liberais e a esquerda do Bloco Egípcio, sem que, até o momento, nenhum dos partidos políticos que surgiram com a revolução tenha conseguido o reconhecimento dos eleitores.
Como se pode interpretar este resultado que deixa com pouca influência parlamentar aqueles que desempenharam um papel central na revolução? Contudo, o jogo político se transformou. Embora, juntos, a Irmandade Muçulmana e os salafistas do Al Nur têm uma sólida maioria, a Irmandade já descartou qualquer aliança com os salafistas. O poderoso Movimento Seis de Abril – que foi decisivo nas greves de 2008 e na revolução de 2011 –, por sua vez, advertiu que "ninguém deve se preocupar com a vitória de uma ou de outra corrente. A democracia do nosso país não permitirá que ninguém o explore novamente".
O professor Samer Soleiman vê nestas porcentagens uma resposta coerente da parte do eleitorado. Coerente não quer dizer justa. Atualmente, as duas principais forças políticas do país são confessionais. Ensaísta de renome internacional, autor de vários livros, responsável pelo Comitê de Coordenação Política do Partido Social-democrata, professor de Ciências Políticas na Universidade Norte-americana do Cairo, Samer Soleiman analisa nesta entrevista o resultado das eleições, ao mesmo tempo que situa o futuro do Egito em uma perspectiva na qual a revolução que derrubou a ditadura de Hosni Mubarak não perdeu sua dinâmica.
A entrevista é de Eduardo Febbro e está publicada no jornal Página/12, 03-12-2011. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Que análise você faz desta fase ao mesmo tempo controvertida, violenta e cheia de esperanças da revolução egípcia tendo em conta que os resultados das eleições dão uma maioria à Irmandade Muçulmana e ao movimento radical dos salafistas?
São as primeiras eleições livres que se realizam no Egito nos últimos 60 anos. É um passo muito importante rumo à democracia. No entanto, é lícito reconhecer que depois do regime ditatorial que conhecemos, a corrente fundamentalista está em posição de força. Os resultados preliminares dão uma vitória folgada a esta corrente. Creio que é muito, mas também é possível apostar nos setores mais moderados desta corrente. Os demais partidos políticos têm que trabalhar muito mais na rua. De fato, estes resultados são um dado parcial. A política eleitoral é o reflexo de apenas uma parte da política egípcia. É preciso recordar que uma boa parte da classe política egípcia não está representada neste sistema eleitoral, que é muito partidarista.
Como explica o fato de que os partidos políticos e os movimentos que foram os grandes protagonistas da revolução não tenham obtido o reconhecimento nas urnas?
Creio que isso é normal. A política eleitoral é uma coisa e a mobilização revolucionária na rua, outra. Ainda falta muito tempo para que o sistema eleitoral seja o reflexo da rua. Não se deve esquecer também que a corrente islâmica tem uma experiência muito antiga no que se refere ao sistema e à política eleitoral; sabem o que é uma eleição e estavam, por conseguinte, muito organizados. Diante desta eficácia estava o movimento revolucionário, que apenas agora ingressa no cenário político. Pelos resultados, também não são tão ruins. Por exemplo, o Bloco Egípcio, que agrupa os movimentos de esquerda e os partidos liberais como o Tagamu e o Partido Social-democrata egípcio, obteve 20% dos votos. Isso não está nada mal para partidos que foram fundados há apenas alguns meses e em cujo seio há alguns líderes da revolução.
Não lhe chama a atenção que seja o partido salafista Al Nur que chega na segunda posição? Com este resultado tão expressivo não persiste um alto risco de enfrentamentos com os coptas, com alguns setores da Irmandade Muçulmana ou com os laicos?
Os salafistas são um movimento radical; em compensação, a Irmandade Muçulmana é um movimento com muita experiência no trabalho coletivo. Por conseguinte, é muito moderado e está igualmente muito mais politizado. Contudo, creio que os salafistas poderão tornar-se tão moderados quanto a Irmandade Muçulmana. Isto levará algum tempo, mas é preciso deixar que as forças laicas comecem a pensar no jogo político. Mas, claro, também não se pode tolerar o fato de que os salafistas não paguem pelos crimes que cometeram, eles fizeram coisas muito feias e isso deve dar lugar a processos judiciais. Creio que podemos considerar os salafistas como a extrema direita da política egípcia.
Você parece acreditar que o sistema político egípcio assim como se plasmou hoje é capaz de absorver, integrar e apaziguar o lado mais radical dos salafistas.
É preciso pressionar para que se adaptem às regras da política e da democracia. Não é aceitável que veiculem um discurso fanático e de ódio. Creio que com pressão e muita pedagogia podem se transformar.
O Exército conservou, não obstante, muito poder: seu estatuto o coloca acima do governo, pode vetar leis e até artigos da Constituição que não lhe convêm. Como se organizarão as relações entre o exército e o novo Parlamento?
Sem dúvida, haverá fortes tensões entre os dois setores. O Exército ficou com muito poder, de alguma maneira funciona com o estatuto de um Presidente. Mas dentro de algumas semanas teremos o novo Parlamento e esse Parlamento será o primeiro terreno de luta depois da revolução. Os parlamentares têm margem para negociar com o Conselho Supremo das Forças Armadas. Mas tudo dependerá das coalizões dentro do Parlamento e, sobretudo, do que fará a maioria, que hoje está nas mãos dos islamistas. Deve-se ver se querem ou não questionar os privilégios políticos e econômicos do Exército.
Os analistas locais e internacionais não estão de acordo: alguns argumentam que a revolução egípcia fracassou, que foi recuperada pelo Exército. Outros, ao contrário, alegam que saiu vitoriosa. Você acredita que esse fenômeno extraordinário que foi a revolução egípcia conserva todas as suas possibilidades de ir até o final e transformar o país?
A dinâmica segue vigente. O Exército fez tudo o que pôde para conter a revolução, mas agora entram muitos outros fatores. Há os islamistas, que constituem um desafio porque, justamente, querem deter a dinâmica revolucionária, diminuir a velocidade das mudanças. Creio que a questão central da revolução depende de em que medida a esquerda egípcia é capaz de mobilizar as pessoas em base às questões sociais. Esse é o principal assunto do país. Aqui há muita gente pobre. Para mim, o único meio de que a revolução prossiga está em que tem que tomar imediatamente uma dimensão social. A classe operária também terá um papel, uma vez que o controle que o regime anterior exercia sobre os sindicatos se tenha fragilizado. Creio que teremos sindicatos operários fortes. Neste contexto poderemos falar de outra fase da revolução.
Para você, então, não há nenhuma dúvida: um novo Egito surgiu com este processo revolucionário.
Sim, desde já, mas de qualquer maneira, levará algum tempo para que esse novo Egito se molde por completo, não é uma coisa já adquirida. Temos pela frente uma luta de vários anos. A dinâmica da renovação, do renascimento, não se perdeu. As eleições livres que celebramos e que continuarão nos próximos meses fazem parte do renascimento do Egito.
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''Moldar o novo Egito leva tempo'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU