29 Novembro 2011
A Síria é o nosso país desde os tempos antigos, há pelo menos 2.000 anos. Ele é, além disso, e certamente, o país que temos em comum com os muçulmanos há 14 séculos. Chegou a hora de nos libertarmos dos nossos temores e dos nossos preconceitos contra a participação dos muçulmanos na gestão do espaço político.
A reflexão é do jesuíta italiano Paolo Dall'Oglio, que vive há 30 anos na Síria, na comunidade monástica Deir Mar Musa, que está sofrendo um processo de expulsão por parte do país.
O artigo foi publicado na revista dos jesuítas italianos, Popoli, 24-11-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Caríssimos, paz, caridade, solidariedade e reconciliação do Redentor.
Pareceu-nos oportuno escrever-lhes a propósito do serviço da reconciliação que consideramos como um sagrado dever nosso e como parte essencial do nosso carisma. Consideramos não ter o direito, ao tratar da atual situação penosa, de adotar projetos não evangélicos e de nos distanciarmos, por qualquer motivo, das escolhas morais do nosso Messias, das posições da sua Mãe puríssima e das tradições dos apóstolos e dos discípulos na Igreja primitiva.
Somente nos protegerá do mal deste tempo a obediência a Jesus, nosso Mestre, o manso de Nazaré e o humilhado da cruz, o Cristo ressuscitado dentre os mortos.
Este ano, também recordamos o Bebê da manjedoura, nascido na humilde manjedoura por causa da pobreza da sua família, a sua mãe sem casa e o seu pai adotivo perplexo. Essa cena não nos agrada; assim como, por outro lado, não nos honra a cena da crucificação... Mas as provas e as perseguições que o Cristo nazareno e os seus suportara, iluminam para nós o caminho justo na contingência atual.
O nosso país encontra-se em uma condição de grave perigo, e alguns de nós estão inclinados com um lado, e outros tomaram partido por inclinações diferentes. Portanto, devemos nos perguntar: qual é o dever da comunidade que obedece o Evangelho? A sua função não consiste, talvez, tanto hoje quanto ontem, no serviço da harmonia e da reconciliação?
Muitos profetizam a iminente conclusão dos trágicos acontecimentos atuais com o sucesso e a vitória de uma parte ou de outra... Enquanto outros profetizam uma escalada da violência que levaria à divisão permanente do país, com centenas de milhares de vítimas humanas, com a perda da unidade e da independência, e com o enfraquecimento do papel do país e da sua honra por tempo indeterminado.
Aqui está o primeiro ponto que queremos afirmar: o que quer que aconteça no nosso país, qualquer caminho que tomem os eventos e independentemente das consequências que trouxerem consigo, nós, discípulos de Jesus, permaneceremos solidários com todos os sírios, sem olhar a sua filiação política, religiosa, étnica ou linguística. Cada um de nós se solidarizará com o seu vizinho de casa sem escolher entre vizinhos, senão para sustentar a equidade e defender os mais fracos. Portanto, preparemo-nos para dar refúgio, no momento da prova, ao nosso vizinho, quem quer que ele seja, sabendo que, no perigo, ninguém nos dará refúgio a não ser o nosso vizinho, aquele com quem partimos, desde a infância, o pão das alegrias e das dores.
Na contingência atual, não devemos distribuir acusações a estes ou aqueles, nem cabe a nós julgar as diversas qualidades de cidadãos em conflito. Devemos dizer a todos que o nosso desejo é o de servir à reconciliação e de demonstrar isso com as obras. Em todo o caso e definitivamente, não há alternativa para a reconciliação. Todos sabem que, querendo ou não, perdedores ou vencedores, chega o dia no qual deverão se pôr de acordo com o seu adversário ou emigrar.
Não sabemos que forma o nosso país vai finalmente assumir depois destes dias dolorosos para todos e, ao mesmo tempo, cheios de esperança e tristeza, entusiasmo e pessimismo, coragem e medo, sacrifício e crime. Estamos perplexos: o nosso país poderá conservar a sua unidade e de que forma? Os cidadãos irão gozar de mais liberdade ou a perderão? O nosso povo vai obter uma democracia pluralista participativa, consensual, capaz de respeitar a todos, independentemente dos diversos aspectos da sua identidade? Ou, ao contrário, irá obter um regime de opressão onde o cidadão sofre injustiça em nome de uma maioria petrificada?
Nesta crise, parece-nos que nosso papel é o do diálogo, da mediação, da construção de pontes e do serviço da reconciliação. A a nossa escolha pela não-violência nasce, talvez, do medo e da fraqueza, ou de uma virtude e de uma decisão? Talvez as duas coisas! Todavia, o medo nos subjugou durante muito tempo no passado e até hoje, e é isso que impulsiona alguns de nós a continuar tomando uma posição em favor da repressão das liberdades, da rejeição da mudança e do recurso ao passado e ao apego ao passado. Pode ser esse caminho da salvação e da verdade?
Por outro lado, anda, talvez, no caminho da esperança e da verdade aquele que escolhe perpetrar assassinatos com base na carteira de identidade, cometer sequestros ou assumir outros comportamentos criminosos? Esta pessoa atua, talvez, impulsionada pelo medo e pela fraqueza? Enfim, o zelo religioso ou ideológico justifica, talvez, o fato de diminuir a dignidade de outra pessoa humana excomungando-a e marginalizando-a?
Com tudo isso, permanece sólida a nossa convicção de que a reconciliação deve ocorrer entre os inimigos e não entre os amigos! E ela pode ocorrer mediante a realização de um acordo que leve seriamente em consideração o pedido e a reivindicação razoável de cada parte. É justamente aí que queremos tentar oferecer o nosso humilde serviço cristão, não como parte em causa, mas como mediadores.
O segundo ponto: o nosso único papel é o serviço à reconciliação. No entanto, isso comporta uma série de condições fundamentais que, se faltassem, a desnaturalizariam em submissão e rendição. A condição mais importante é a do reconhecimento do pluralismo e da liberdade de opinião. Depois vem a liberdade de expressar tal opinião e de divulgá-la, respeitando e estimando as opiniões alheias e protegendo a incolumidade e a dignidade de todo cidadão.
Devemos, portanto, levar em consideração que a Síria não é uma ilha isolada do mundo. Ela está conectada com outros povos em todas as direções... O isolamento asfixia, o isolamento mata. Então, por que a Síria não poderia oferecer as partes em competição e conflito na região do Oriente Médio um espaço de conciliação, em vez de lhes oferecer um campo para as suas batalhas às custas do nosso povo? Estamos conscientes do que o nosso povo teve que suportar por causa da sua fidelidade na busca dos objetivos legítimos da nação árabe... Mas essa nação merece que nos matemos uns aos outros e nos traiamos uns aos outros em seu nome?
Somos forçados, nestes dias, a ouvir discursos que nascem do extremismo e aos quais falta qualquer equilíbrio. Não é possível, ao contrário, encontrar nas Escrituras celestes – nem nos dois testamentos da Bíblia Sagrada e nem no Nobre Alcorão – e nos escritos dos sábios do passado e do presente nada que encoraje à divisão entre as pessoas, ao fechamento em si mesmos e à falta de escuta das opiniões daqueles a quem Deus nos criou como habitantes conosco desta única terra que não suporta desagregação... Neste mundo, existem realidades que são chamadas de negociação, acordo, constituição e reconhecimento das particularidades geográficas locais... Para as pessoas razoáveis, as soluções são muitas. Mas as pessoas ignorantes nunca estão satisfeitas. Elas estão correndo rumo à catástrofe, levando outras pessoas consigo e finalmente o país inteiro – nada as está detendo.
Naturalmente, há um complô, ou melhor, complôs, mas a nossa salvação não consiste em nos deixar levar pela lógica dos complôs. A nossa salvação, ao contrário, está em buscar a colaboração com os homens livres e de boa vontade, seja na região, quanto no mundo. Isso é impossível sem acolher em verdade e sinceridade os diversos meios de comunicação, tanto árabes, quanto estrangeiros. De fato, a verdade se mostra através do pluralismo e da independência da imprensa. Ousamos também propor que se peça a ajuda de instituições humanitárias independentes como a Cruz/Meia Lua Vermelha para que ajudem o povo sírio, o nosso povo, a conseguir a interrupção do conflito armado e a proteção dos civis inermes.
Caros cristãos, o terceiro ponto nasce da convicção e do ensino dos Patriarcas orientais e das indicações do Sínodo dos Bispos para o Oriente Médio (2010), onde nos dizem que o nosso estar em meio aos muçulmanos em harmonia e respeito é uma condição que Deus, amigo dos homens, quis para nós. Esse estar juntos caracteriza a nossa história e o nosso destino. Sem dúvida, este é o nosso país desde os tempos antigos, há pelo menos 2.000 anos. Ele é, além disso, e certamente, o país que temos em comum com os muçulmanos há 14 séculos. Chegou a hora de nos libertarmos dos nossos temores e dos nossos preconceitos contra a participação dos muçulmanos na gestão do espaço político. Sem dúvida, existem motivos de preocupação por causa do extremismo e da violência de alguns. Além disso, para outros, é difícil imaginar um sistema político que tome decisões no lugar da maioria dos cidadãos considerados imaturos e incapazes de buscar o bem do país. Ao contrário, busquemos a solução na negociação, não na marginalização.
Infelizmente, no passado, um grande número de irmãos e irmãs das nossas paróquias optaram por emigrar do país, e este fenômeno está hoje em ascensão. Os motivos são conhecidos e, em muitos casos, razoáveis. No entanto, o Bebê da manjedoura nos chama a fazer um novo esforço para servir a paz e a concórdia na Síria. É esse esforço renovado que pode introduzir nas nossas almas uma nova esperança e uma consolação inexprimível que cura os nossos corações feridos e nos torna mais comprometidos com a busca da reconciliação em todas as situação e apesar de todas as dificuldades.
Por ocasião do Natal dessa criança milagrosa, o Príncipe da Paz, os nossos corações desejam expressar a solidariedade e a comunhão na dor de todas as famílias que perderam um ente querido durante esses trágicos eventos. Também pedimos consolação para as famílias dos prisioneiros, dos desaparecidos, dos feridos e dos combatentes. Rezamos por todos aqueles que vivem com fome e frio, por aqueles que estão expostos ao perigo, à vingança... Pedimos luz para os responsáveis de todos os partidos e filiações em causa, para que possam escolher sinceramente o caminho da reconciliação. Não há justiça e equidade sem tolerância e perdão.
Que o Misericordioso nos proteja, nos conduza e nos cure, que queira abreviar essa nossa prova e cuide do nosso bem e do bem da Síria.
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Apelo de Natal 2011. Artigo de Paolo Dall'Oglio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU