22 Julho 2011
Uma entrevista com a estudiosa Pun Ngai (foto): os movimentos migratórios internos das jovens chinesas e o crescimento das greves à sombra da Grande Muralha.
A entrevista é de Davide Bubbico e Devi Sacchetto, publicada no jornal Il Manifesto, 15-07-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O encontro com Pun Ngai é na Peking University, mas ela logo nos leva a um canteiro de obras no norte da cidade, onde encontramos um pequeno grupo de operários. Em um centro social em reestruturação, que é o ponto de encontro para trabalhadores, estudantes e intelectuais, realizamos a entrevista.
Eis a entrevista.
Que tipo de lugar você desenvolve com os trabalhadores da construção civil?
Na China, temos uma longa experiência de intervenção dos intelectuais no mundo de trabalho e na sociedade, experiência que foi bloqueada pela Revolução Cultural. Quando vim para Pequim, a maior parte dos trabalhadores migrantes trabalhava nesse setor. Comecei a conversar sobre isso com alguns intelectuais e estudantes, e depois formamos um grupo de estudo e fomos juntos a encontrar os trabalhadores nos canteiros de obras. Desenvolvemos uma série de atividades culturais para eles, filmes, concertos e depois começamos a discutir os seus direitos, a questão dos contratos de trabalho, a segurança no trabalho. Neste ano, haverá uma conferência organizada pela Universidade de Tsinghua e de Pequim, e levaremos cinco trabalhadores da construção civil que irão falar da sua experiência. A atividade é, portanto, de diálogo entre professores, trabalhadores e estudantes voluntários. Além disso, realizamos também um relatório sobre as condições de trabalho dos trabalhadores da construção civil.
O seu livro, Made in China, teve em 2005 um bom sucesso na Europa. Qual é a situação atual das mulheres migrantes no interior das fábricas?
No livro Made in China, que investigava a realidade chinesa da metade dos anos 1990, a idade média das mulheres era de cerca de 22 anos, e as mais jovens tinham 17, 18 anos, mas agora as mais jovens que estão empregadas na Foxconn têm 15, 16 anos, e muitas delas são estudantes. Isso significa que, embora frequentem a escola profissional, realizam os seus turnos normais de trabalho, como todos os outros. É-lhes pedido que façam hora extra e trabalhem no turno da noite. Estamos acostumados a dizer que a China não tem trabalho infantil, porque tem uma grande reserva de força de trabalho. Mas agora, no entanto, entramos na era da escassez da força de trabalho, isto é, uma era em que as empresas concorrem para assegurar força de trabalho. Esse é o motivo pelo qual elas se aproximaram do mundo da formação para ter acesso a uma força de trabalho qualificada. Ao mesmo tempo, as escolas mandam as moças e os rapazes a trabalhar nas fábricas, e isso não acontecia antes. Outro aspecto importante é que as trabalhadoras participaram das greves quando elas ocorreram nas cidades industriais, enquanto o sistema familiar patriarcal está em crise desde quando muitas mulheres pedem o divórcio não só nas áreas urbanas, mas também nas áreas rurais.
Uma das questões que caracterizam a China é a relocalização da produção das áreas costeiras e de Guangdong para a parte ocidental da China. Há mudanças nas condições e nas relações de trabalho?
Mesmo que os empresários digam: "Queremos abrir as nossas fábricas nas áreas de origem dos migrantes, para que eles possam voltar para casa e viver nas suas comunidades e nas suas famílias", deve-se ressaltar, porém, que o sistema de fábrica na China continua sendo um sistema de fábrica-dormitório. Ou seja, as empresas organizam o tempo e o espaço de trabalho quanto de vida. É um sistema de controle totalitário da produção e da reprodução. A área onde foram construídas as instalações da Foxconn na China ocidental é um enorme parque industrial. Foram destruídos mais de 100 vilarejos para construir essa área. Os agricultores perderam a terra e as casas, mas a Foxconn não os contrata, porque quer operárias e operários jovens, nunca acima dos 30, 35 anos, enquanto os agricultores são de meia-idade . Quando as empresas relocalizam na parte ocidental, contratam jovens que tem que fazer 5 ou às vezes 10 horas de ônibus para chegar ao posto de trabalho e trabalham 10, 11 horas por dia, durante seis dias por semana. Eles não têm tempo para voltar para casa. As empresas não relocalizam em proximidade das comunidades: elas destroem as comunidades originárias para reconstruir outras mais favoráveis. Por isso, não há diferença, exceto pelo fato de que os salários são de um terço em comparação aos de Guangdong.
Em um de seus artigos, você sublinha que, na China, estamos diante de um processo de proletarização incompleta. Você acredita que esse processo está se modificando?
O trabalho agrícola foi transformado em trabalho assalariado sem terra e sem casa. Se olharmos para os próximos cinco anos, de um lado há uma certa semiproletarização, mas, de outro, haverá medidas ainda mais rápidas de cercamento das terras, e, portanto, teremos um novo impulso à plena proletarização. A desigualdade social entre os habitantes dos vilarejos na zona rural ainda é limitada, porque a terra está dividida em uma base familiar. Assim, todas as famílias mandam as moças e os rapazes a trabalhar nas cidades. Os salários são bastante semelhantes, embora alguns tentam subir na escala social, abrindo pequenas lojas, ganhando algum dinheiro, e voltam para suas áreas de origem e compram uma casa. Mas as empresas agora não estão visando apenas ao setor industrial ou de construção. Elas também olham com interesse para a agricultura. As empresas estrangeiras estão comprando muitos terrenos no norte da China, perto de Pequim, para a produção de alimentos. Elas adquirem grandes extensões de terras agrícolas fazendo pressão sobre os habitantes dos vilarejos, e estes devem ir embora.
Quais são as principais características dessa nova geração de migrantes?
A nova geração de migrantes não quer trabalhar nas fábricas, mas, ao mesmo tempo, não quer voltar para casa. Os Jogos Olímpicos e a Expo Xangai foram um sonho urbano que produziram em muitos o desejo de viver na cidade. Assim, os jovens trabalhadores migrantes sonham em habitar na cidade, mas, quando fazem as contas com os seus salários, entendem que não têm a possibilidade de habitar lá, mas, ao mesmo tempo, não querem voltar para casa para trabalhar como agricultores. Eles não conhecem nada sobre o trabalho agrícola, e depois, no campo, os ganhos são muito escassos. A diferença entre as condições de vida na cidade e no interior é cada vez maior. As gerações jovens querem maior liberdade individual, mas como podem obter essa liberdade? Se não têm futuro e são tão jovens, é muito fácil para eles entrar em greve. São mais conflituosos do que a geração anterior: se a fábrica não me agrada, eu entro em greve e não me interessa muito se eu perco o trabalho, porque posso encontrar outro. Muitas das greves ainda são caracterizadas por questões econômicas, porque o poder aquisitivo dos salários é baixo, e as jovens e os jovens não conseguem viver à altura das suas expectativas. Todo o conflito político gira em torno da questão salarial.
Você acha que as greves na Honda e na Foxconn do ano passado representam um divisor de águas para a classe operária chinesa?
As greves na China começaram em 2003-2004 e agora também há muitas greves, mas são pouco conhecidas. Ninguém se interessa por elas, a menos que, como aconteceu na Foxconn, as pessoas comecem a se suicidar. Nesse caso, abriu-se um espaço no qual começamos a discutir a questão das greves. A da Honda ocorreu em maio de 2010, quando na Foxconn já haviam se suicidade 10 trabalhadores, e, portanto, essa havia se tornado uma questão importante. Eu não acho que a greve da Foxconn seja um divisor de águas: as greves nos últimos cinco anos criaram, no entanto, um impacto na mídia, enviaram a mensagem aos trabalhadores de que o povo se preocupa com essas greves, e que a sociedade se solidariza com os grevistas. Esse é um encorajamento para os trabalhadores que querem fazer greve, mesmo que a legislação sobre o direito à greve seja ambígua. É uma área cinzenta. Não lhe dizem que você não pode entrar em greve, mas não há uma lei que lhe diga que você tem o direito de fazê-lo. Se toda a sociedade, a mídia, os intelectuais, os estudantes se solidarizam com os trabalhadores em greve, então, a longo prazo, esse é um fenômeno positivo.
Qual é a situação da classe operária chinesa hoje?
Apesar do crescimento da economia chinesa, as condições de trabalho da classe operária não melhoraram muito. Se olharmos para os níveis salariais, na metade dos anos 1990, a primeira geração de trabalhadores migrantes ganhava 500 yuan (60 dólares). Hoje, a segunda geração de trabalhadores migrantes ganha 1.500 yuan (230 dólares), três vezes mais do que 15 anos atrás. Mas se você comparar o padrão de vida e o poder aquisitivo, não houve nenhuma melhoria real. Depois do ano 2000, houve enormes mudanças em termos de natureza e de escala do capital. Agora, a dimensão das fábricas, o número dos empregados, supera muitas vezes as 100 mil pessoas. E isso se tornará uma tendência nos próximos cinco, dez anos. Tomemos a Foxconn. As empresas que têm que competir com essa multinacional devem aprender com esse modelo e ampliar a sua dimensão e investir na parte ocidental da China, para dispôr de força de trabalho e de terras de baixo custo. A capital se tornará uma espécie de capital monopolista, onde as pequenas empresas serão "expulsas". Depois, é preciso considerar que a China está dividida em duas partes: um mercado interno e, depois, o mercado global. As empresas menores e com um número limitado de empregados servem o mercado interno, enquanto as que abastecem o mercado global devem se tornar cada vez maiores, a fim de sobreviver na era da competição.
Há conflito entre trabalhadores migrantes e a força de trabalho local?
Havia mais conflitos na década de 1990, porque a população urbana, quando era demitida, tinha dificuldade para encontrar uma ocupação e se lamentava que os trabalhadores migrantes levavam embora os seus postos de trabalho. Contudo, depois do ano 2000, as gerações jovens vivem uma condição semelhante. Agora, a força de trabalho é escassa. Não é difícil encontrar um trabalho, enquanto o problema é, ao contrário, que a sua condição operária se tornou mais homogênea. Assim, as condições da classe operária urbana e dos trabalhadores migrantes convergem, e, no longo prazo, é possível que possam se unir e lutar juntos.
A China está passando por uma produção manufatureira para uma de alta tecnologia?
Se olharmos para a Foxconn, ela tem uma produção tecnologicamente avançada – Apple, iPhone, iPad, o mais alto nível de tecnologia. No entanto, uma boa parte da força de trabalho ainda é semiqualificada, e isso cria mais conflitos, porque, quando as jovens e os jovens são recrutados para trabalhar na Foxconn, eles têm o sonho de trabalhar em uma fábrica moderna e high-tech, mas o que eles fazem é trabalho repetitivo. Assim, a cada dia, o sonho, as expectativas e a realidade são cada vez mais diferenciadas, e isso cria uma maior consciência.
O que podemos esperar nos próximos anos?
Se não houver uma mudança na política estatal, eu prevejo mais greves. Por causa da crise social, todos os conflitos entre capital e trabalho se tornam cada vez mais profundos. E não se vê ninguém que seja capaz de intervir nesse processo. O Estado aprovou algumas leis buscando regular, mas as empresas simplesmente não as colocam em prática. Assim, a crise irá se aprofundar, e isso resultará em mais greves.
Um olhar sobre a classe operária
Da nova geração de intelectuais, Pun Ngai é uma das sociólogas chinesas que está mais comprometida em acompanhar a evolução das transformações do trabalho na China depois da liberalização iniciada em 1978 e que sofreram uma forte aceleração a partir dos anos 1990.
Ao longo dos últimos 15 anos, Pun Ngai desenvolveu uma série de análises sobre o campo das condições ao mesmo tempo restritivas e globalizantes dos trabalhadores e das trabalhadoras migrantes que, da zona rural, se dirigem para as fábricas do sul e do oeste da China.
Professora associada da Hong Kong University of Science and Technology e vice-diretora do Social Service Research Center de Pequim, Pun Ngai, depois dos estudos na China, concluiu o curso de PhD na Soas, em Londres (1998), inserindo no filão dos estudos sociais chineses as temáticas elaboradas pela historiografia inglesa fundada por Edward P. Thompson em 1960.
A tese de doutorado foi publicada sob o título Made in China. Women Factory Workers in a Global Workplace em 2005 pela Duke University Press e foi traduzida para o alemão e o polonês. Ela publicou inúmeros artigos e ensaios em algumas importantes revistas internacionais, como Work, Employment and Society, The Third World Quarterly, Modern China e Global Labor Journal.
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Made in China: uma questão de classe - Instituto Humanitas Unisinos - IHU