01 Abril 2011
O teólogo José Comblin morreu na madrugada do último dia 27 de março, em Salvador, na Bahia, aos 88 anos. Nascido na Bélgica, trabalhava no Brasil – especialmente em Pernambuco, na Paraíba e na Bahia – desde 1958,
Um dos grandes nomes da teologia da libertação latino-americana, Comblin “possuía vasta cultura histórica” e uma “aguda capacidade de análise das situações”. Assim sintetiza o teólogo jesuíta João Batista Libanio, na entrevista que segue, concedida por e-mail à IHU On-Line, em que dá o seu depoimento sobre a importância e a relevância de Comblin no cenário teológico latino-americano.
Segundo Libanio, Comblin desempenhou um papel pioneiro na teologia, ao corrigir o que chama de “eclesiasticismo”. Ao olhar para a realidade social e eclesial, Comblin “ia fundo para perceber-lhe as contradições, os conflitos, as negatividades. Em seguida, apontava-os com dedo crítico”. Mas não parava aí: “anunciava caminho alternativo”, afirma Libanio. Nesse sentido, “a temática da liberdade cristã, fazendo eco ao livro de Lutero, constituiu importante núcleo de sua teologia”, sempre voltada à pessoa de Jesus, “homem livre em face do templo e do sábado”.
João Batista Libânio é padre jesuíta, escritor, filósofo e teólogo. É também mestre e doutor em Teologia, pela Pontifícia Universidade Gregoriana - PUG, de Roma. Atualmente, leciona na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE e é membro do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. É autor de diversos livros, dentre os quais Teologia da Revelação a partir da Modernidade (5ª ed., Ed. Loyola, 2005) e Qual o Futuro do Cristianismo (2ª ed., Ed. Paulus, 2008). Com Comblin e outros, é coautor de Vaticano II: 40 Anos Depois (Ed. Paulus, 2005). Seu livro mais recente é A Escola da Liberdade: Subsídios para Meditar (Ed. Loyola, 2011).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual foi a contribuição de José Comblin à teologia e ao pensamento teológico contemporâneo?
João Batista Libanio – Comblin reuniu várias qualidades fundamentais como teólogo que manifestam a força do seu pensamento e o peso da sua influência. Sem ser estritamente exegeta, tinha excelente formação bíblica. Produziu uma série de comentários bíblicos (Atos, epístolas de São Paulo), estudos profundos nesse campo e detalhada reflexão sobre a Palavra de Deus (A força da palavra, Ed. Vozes, 1986), não descuidando o leitor popular (Introdução geral ao comentário bíblico: leitura da Bblia na perspectiva dos pobres. Petrópolis: Vozes, 1985).
Possuía vasta cultura histórica. Isso lhe dava segurança sobre o passado para analisar com rigor e seriedade o momento atual. Os adversários e desafetos ficavam desarmados diante das críticas que ele fazia, porque elas carregavam enorme peso histórico. Tinha aguda capacidade de análise das situações. Foi pioneiro na crítica da Ideologia da Segurança Nacional que desmascarou os regimes militares da América Latina e abriu os olhos da Igreja que se tinha embarcado no apoio a eles (A ideologia da segurança nacional: o poder militar na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973).
Escreveu obras significativas que permanecem até hoje como referência. Os dois livros, publicados, em francês, sobre a teologia da revolução e da prática revolucionária marcaram momento na teologia contemporânea (Théologie de la révolution: théorie. Paris: Universitaires, 1974). E, a partir do olhar do nosso continente, foi um dos iniciadores da teologia da libertação e a projetou no cenário mundial. Na qualidade de professor de Lovaina, belga, europeu, a sua palavra em prol da teologia da libertação tinha maior força. Não se tratava de simples moda de países do Terceiro Mundo, mas recebia o impulso de figura do mundo teológico europeu.
Nas críticas à Instituição eclesial e a certas práticas cristãs e doutrinais, baseava-se muito na teologia do Espírito Santo. Sem dúvida, desempenhou papel pioneiro na teologia, ao corrigir certo eclesiasticismo, apelando para a pessoa do Espírito Santo. Divulgou o famoso dito de que três brancuras na Igreja católica relegaram para segundo plano a figura do Espírito Santo: a hóstia, a Virgem Maria e o solidéu branco (do Papa). Ele retomou a longa tradição da Igreja anterior a tal deslocamento para acentuar a importância do Espírito Santo durante toda a história e, de modo especial, nos dias atuais (O Espírito Santo e a libertação: o Deus que liberta seu povo. Petrópolis: Vozes, 1987).
A temática da liberdade cristã, fazendo eco ao livro de Lutero, constituiu importante núcleo de sua teologia. A ela, naturalmente, vinculava a pessoa de Jesus, sob o signo do homem livre em face do templo, do sábado, das formas religiosas e rituais de seu tempo. Tinha, por isso, preferência por São Paulo, sobre quem escreve livro simples, mas profundamente sugestivo, na perspectiva de homem que se sustentava com o trabalho das próprias mãos (Paulo: trabalho e missão. São Paulo: FTD, 1991).
De maneira sistemática, ele produziu um breve curso de teologia para leigos que prestou e ainda presta serviço aos estudantes, publicado pelas editoras Paulinas sobre Jesus Cristo, Espírito Santo, Igreja e Sabedoria cristã.
A cidade moderna com os desafios à fé e à pastoral constituiu-se-lhe preocupação constante. Em francês, publicou amplo e importante estudo sobre ela que apareceu em versão simplificada em português (Teologia da cidade. São Paulo: Paulinas, 1991), depois completado por outro pequeno e sugestivo livro (Viver na cidade: pistas para a pastoral urbana. São Paulo: Paulus, 1996).
Imaginar o futuro para a fé cristã, para a Igreja, para a pastoral ofereceu-lhe campo de pensar utopias e a partir delas voltar-se para o presente e mostrar a distância entre ambos. Nessa linha escreveu livros de peso (Cristãos rumo ao século XXI: nova caminhada da libertação. São Paulo: Paulus, 1996; Desafios aos cristãos do século XXI. São Paulo: Paulus, 2000).
A eclesiologia mereceu belo estudo volumoso sobre o Povo de Deus no espírito do Concílio Vaticano II (O povo de Deus. São Paulo: Paulus, 2002). Ele soube valorizar tal concílio e a pessoa do papa João XXIII e lamentar a perda de sua herança nas últimas décadas.
IHU On-Line – Pessoalmente, como o senhor analisa a teologia e a obra de Comblin? Que contribuições Comblin trouxe ao seu próprio pensamento teológico?
João Batista Libanio – Li muitos livros de Comblin. E de todos aprendi. Desde aqueles que tratavam da natureza da teologia, sua história até a última jóia, se não me engano, com que ele nos presenteou no ano passado: Jesus de Nazaré (São Paulo: Paulus, 2010). Aprecio muito as pessoas de capacidade crítica. Desde o início de minha vida acadêmica trabalhei com a temática da consciência crítica, e Comblin me foi fonte insaciável de reflexões. A capacidade de visão histórica sintética também me fascina. Prefiro o pensamento “generalista” na linguagem de Edgar Morin e [Boris] Cyrulnik aos estudos folhudos de textos eruditos. Comblin dissertava sobre amplos campos do pensar. Fez-nos ricas análises sobre a modernidade, sobre a situação da Igreja (O tempo da ação: ensaio sobre o espírito e a história. Petrópolis: Vozes, 1982). Temas pelos quais me interessei e, portanto, pude beber em sua fonte.
IHU On-Line – Quais são as grandes fontes matriciais do pensamento de Comblin? Que pensadores e obras fundamentaram a sua teologia?
João Batista Libanio – Já aludi aos conhecimentos bíblicos de Comblin. E os evangelhos, no que eles oferecem para chegar o mais próximo possível do Jesus histórico, marcaram-lhe os escritos. As pessoas de amplo conhecimento histórico e que freqüentam muitos autores não se impregnam de um só, mas criam sínteses pessoais. Comblin, para mim, figura entre esses teólogos que unem as análises – aí estão as influências dos autores da sociologia, do marxismo, da linha dialética, juntamente com sínteses amplas. Torna-se, então, difícil, sem estudo bem detalhado, que não fiz de seu pensamento, descobrir as pegadas de grandes filósofos e teólogos. Sem dúvida, não foi autor de restringir-se e citar monocordiamente um autor. Frequentou vastos campos do pensar moderno, sem ter descuidado os antigos.
IHU On-Line – Comblin sempre esteve perto dos leigos e leigas cristãos, como indicam alguns de seus livros como Curso básico para animadores de comunidades de base (Paulus, 1997), e Cristãos rumo ao século XXI e O povo de Deus, já citados pelo senhor. Que laicato desponta do pensamento de Comblin?
João Batista Libanio – Comblin, desde longa data, se mostrava crítico ao tipo de formação que se dava aos seminaristas. Para não permanecer na simples e cômoda posição crítica, ele encetou duas experiências alternativas. Uma orientou-se na criação de um seminário rural. Imaginou que neles se formaria tipo de padre diferente. Rural, próximo de onde vinha e onde continuaria a trabalhar. Quem sabe casado. Nessa esperança, viu a experiência vicejar, mas também fenecer por razões institucionais. Iniciou o que virá a chamar-se “teologia da enxada” com seminaristas que elaboravam os temas bíblico-teológicos a partir a realidade rural (Teologia da enxada. Uma experiência da Igreja no Nordeste, Petrópolis, Vozes, 1977).
Outra vertente alternativa consistiu em investir na formação de leigos. Não sintonizando com os novos movimentos de apostolado e espiritualidade atualmente vigentes, fundou outro tipo de movimento de missionários leigos no Nordeste. Pessoalmente, nunca tive contacto com tais movimentos. A partir do que se conhece de Comblin, a tônica missionária leiga é de presença ao povo, de onde esses leigos vieram, onde vivem, sendo missionários para o povo. A força da formação vem da realidade pobre, popular, de que o missionário não se distancia como acontece, segundo Comblin, nos seminários e na maioria das congregações religiosas.
IHU On-Line – Que figuras eclesiásticas foram centrais na vida de Comblin, como impulsionadoras ou críticas ao seu pensamento?
João Batista Libanio – O provérbio popular soa: “dize com quem andas que te direi quem és”. Comblin esteve ao lado de bispos libertadores de ponta, amantes da causa dos pobres, simples no modo de viver como Dom Helder [Câmara], Mons. [Manuel] Larrain (Chile), Mons. [Leonidas] Proaño (Equador), Dom Paulo Evaristo [Arns], Dom José Maria Pires e mais recentemente o controvertido bispo Dom [Luís Flávio] Cappio, com quem morava antes de morrer. Na convivência de Comblin com esses bispos citados se estabelecia verdadeira relação mútua. Eles fascinavam Comblin pela nova maneira de viver o episcopado, mas também sofriam forte influência do crítico teólogo. Esses encontros trouxeram fruto sazonado para a Igreja da América Latina.
IHU On-Line – Comblin transitou enormemente na interface entre a teologia e as demais ciências sociais, como podemos ver em suas diversas “teologias” (da enxada, da revolução, da secularização, da libertação, da cidade). Que “fio condutor” podemos perceber nesse diálogo desafiador assumido por Comblin?
João Batista Libanio – Usando a clássica distinção, embora simplificada, entre linha funcionalista e linha dialética no campo da análise da realidade, salta à vista que Comblin optou pela leitura dialética. De modo bem simples, ele, ao olhar para a realidade social e eclesial, ia fundo para perceber-lhe as contradições, os conflitos, as negatividades. Em seguida, apontava-os com dedo crítico. Não parava aí. Anunciava caminho alternativo.
Nisso realizou o programa que Gustavo Gutiérrez lançou no livro emblemático Teologia da Libertação: denúncia e anúncio. Na denúncia, Comblin não se mantinha em generalidades. Descia ao concreto e não raro a nomes. Isso, naturalmente, provocou nas pessoas aludidas dolorosos ressentimentos e reações, até proibições e sanções ao teólogo. Ultimamente, falava com enorme liberdade e clareza. No fundo, estava o horizonte da libertação, no sentido bem amplo, contra as expressões de poder, de autoritarismo, de exibicionismo, de exteriorização. Criticava arduamente o lado pós-moderno vigente de exterioridade, publicidade da Igreja.
IHU On-Line – A partir do pensamento de Comblin, que resposta o senhor daria ao título de um de seus últimos livros: Quais os desafios dos temas teológicos atuais? (Paulus, 2005)?
João Batista Libanio – A figura do Jesus histórico, pobre, andarilho, sem pretensões de poder, kenótico, pede teologia nessa direção de oferecer pautas para nova forma de Cristianismo histórico. Diferente da linha de [Roger] Lenaers (Outro Cristianismo é possível, São Paulo: Paulus, 2010), desafia a teologia latino-americana à continuação na linha da denúncia e anúncio. Cabe manter o viés crítico de certo carismatismo festivo, acrítico, ilusório, para descobrir a força profunda do carismático. Ele existe como face do Espírito diante da Instituição. Momento contínuo de chamar a Instituição à fidelidade do evangelho.
Recordando São Paulo, a teologia hoje carece da coragem que Paulo teve de opor-se a Pedro porque ele merecia censura por não estar procedendo de acordo com o evangelho (Gl 2,11s). Nesse ponto, Comblin manteve a coragem até o final de produzir teologia crítica tanto em relação aos ranços do passado teológico e institucional, quanto às novidades fluidas do presente. Para além da crítica interna institucional, há tarefas muito mais importantes no campo do ecumenismo, do diálogo inter-religioso, na construção de novo paradigma teológico da libertação que, além de tocar os aspectos estruturais da realidade político-econômica, avança para os campos da etnia, ecologia, feminismo, pacifismo.
IHU On-Line – O senhor chegou a conviver nos últimos tempos com Comblin? Que recordações e lembranças desse grande teólogo ficarão gravadas em sua memória?
João Batista Libanio – Nunca convivi com Comblin, no sentido estrito do termo. Participei com ele de assessorias, congressos e cursos. Um primeiro encontro mais longo foi no Peru. A CLAR [Conferência Latino-Americana de Religiosos] organizou o primeiro seminário de formação de religiosos/as numa linha crítica e libertadora. Lá estávamos vários teólogos/as dessa linha e convivemos algumas semanas orientando o seminário. Lembro-me bem dele com as posições matizadas e avançadas. Ele freqüentou muito a Soter [Sociedade de Teologia e Ciências da Religião] e aí tínhamos ocasião de ouvi-lo. Aqui na nossa Faculdade, em 2006, ele fez uma palestra em preparação de Aparecida, bem crítica, que assustou algumas pessoas. O título sugestivo permitia: Que modelo de igreja para o nosso continente?
Em todas elas, ele me deixou a impressão de homem crítico, não por instinto de negatividade, mas pelo desejo que manifestava de ver tanto a realidade social como a eclesial responderem ao anseio dos pobres. Essa proximidade de vida, de convivência, que teve, durante longos anos, com o mundo rural pobre do Nordeste o fez sensível para perceber as desafinações da teologia, das instituições eclesiais e sociais em relação aos seus interesses. E não se cansava de bater nessa tecla. Que descanse no seio do Pai que, como o Filho, optou pelos mesmos pobres.
(Por Moisés Sbardelotto e revisão da IHU On-Line)
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A liberdade cristã: um dos núcleos da teologia de José Comblin. Entrevista especial com João Batista Libanio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU