26 Março 2011
Quando eu estava na faculdade, um professor da disciplina de Roma Antiga leu uma carta de um jovem nobre aos seus pais, na qual ele descrevia incrivelmente os contatos que ele estava fazendo na alta sociedade e suas ambições para a carreira senatorial. A questão é que a carta estava datada de 476 d.C., o mesmo ano que os historiadores consideram agora como a data que marca a queda de Roma, quando o último imperador do Ocidente foi deposto por um chefe germânico.
A lição foi de que, às vezes, os momentos de virada histórica não são percebidos pelas pessoas que realmente os experimentam – leva tempo para que o seu significado real surja.
A análise é de John L. Allen Jr., publicada no sítio National Catholic Reporter, 24-03-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em termos católicos, algo semelhante pode ter acontecido na semana passada. Caso você tenha perdido, aqui vai a história em poucas palavras: em um desdobramento impressionante e inesperado, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos reverteu sua própria decisão de 2009 e aprovou o direito da Itália a expôr crucifixos em suas salas de aula públicas. O significado mais profundo é que as expressões públicas de crença religiosa foram consideradas como não conflitantes com as normas europeias de direitos humanos e de liberdade de consciência.
Embora possa não ter estourado na mídia dos Estados Unidos, a história não deixa de ter significado muito além das fronteiras da Europa, e aqui está o porquê.
Diante do que a tradição cristã fala com relação "ao mundo", sempre existiram duas escolas básicas de pensamento. Uma delas é o que poderíamos chamar de política da "porta aberta", que enfatiza o diálogo com o mundo, presumindo sua boa vontade e um encontro a meio caminho, porque é isso que a evangelização significa. A outra é um instinto de "fortaleza", que vê o mundo fundamentalmente como hostil e, portanto, procura uma Igreja mais voltada para dentro, capaz de permanecer fiel a si mesma.
Até agora, os primeiros anos do século XXI foram uma época de crescimento da mentalidade da fortaleza no catolicismo, especialmente a nível de liderança. Confrontos Igreja-Estado sobre o aborto e a homossexualidade, juntamente com a percepção de que a Igreja se tornou um bode expiatório para um problema social muito mais amplo com os abusos sexuais, têm alimentado uma psicologia cada vez mais defensiva.
Muitos líderes da Igreja tornaram-se mais propensos a interpretar o desacordo como desafio, mais cautelosos com relação à contaminação por valores seculares e menos inclinados a se explicar às pessoas que eles acreditam que realmente não querem entender.
Independentemente de quão compreensíveis essas reações possam ser, elas obviamente tornam o diálogo mais difícil. Nesse contexto, o ponto-chave da decisão da última sexta-feira vai claramente no sentido oposto: "No fim das contas, talvez a distensão seja possível".
O resultado poderia recalibrar as atitudes católicas com relação ao secularismo em um nível instintivo, proporcionando um poderoso impulso para a abordagem da "porta aberta". Como pontos de bônus, também gerou um momento ecumênico e inter-religioso novo... nada mau para um dia de trabalho.
Com sede em Estrasburgo, o Tribunal dos Direitos Humanos lida com casos decorrentes da Convenção Europeia de Direitos Humanos de 1953. Uma mãe italiana chamada Soile Tuulikki Lautsi (que tem dupla cidadania, finlandesa e italiana) havia apresentado uma queixa alegando que a exposição de um crucifixo nas escolas onde as crianças são obrigadas a frequentar viola os seus direitos. Em novembro de 2009, o tribunal concordou. Ele não tem o poder de ordenar a retirada dos crucifixos, mas impôs uma multa de 5.000 euros à Itália, para o que chamou de "danos morais".
Dentro do Vaticano, é quase impossível exagerar o impacto psicológico dessa decisão. Entre muitas altas autoridades, ela foi tomada como uma prova positiva de que a suposta neutralidade secular à religião na Europa de hoje muitas vezes máscara uma franca hostilidade. Se a Itália não pode sequer colocar um crucifixo em suas escolas, pelo amor de Deus, qual será o próximo passo?
O governo italiano recorreu e acabou sendo apoiado por outros 20 Estados dos 47 que formam o Conselho da Europa. (O Vaticano não fez parte do recurso, embora não tenha escondido o seu apoio.)
A coalizão indicou Joseph Weiler, um advogado nova-iorquino que é considerado como um dos principais especialistas do mundo em direito constitucional europeu, para assumir o caso. Weiler selecionou o que acabou sendo uma estratégia vencedora: retirar o crucifixo, insistiu, não é mais neutro do que colocá-lo. Ambas as atitudes expressam uma visão de mundo, e a posição europeia iluminada é a de tolerar qualquer escolha.
O recurso foi considerado uma aposta arriscada, dado que vários dos juízes que compõem a Grande Câmara do Tribunal de Direitos Humanos também faziam parte da decisão inicial. No entanto, por uma votação esmagadora de 15 a 2, o tribunal reverteu a decisão de 2009 na última sexta-feira. O Vaticano saudou o resultado como "histórico", afirmando que reconhece, "em um nível altamente autoritário e jurídico internacional, que a cultura dos direitos humanos não deveria se opôr aos fundamentos religiosos da civilização europeia".
Uma linha de fundo: a decisão representa uma vitória para a visão de que, quando confrontada com o que parece ser incompreensão e hostilidade, a melhor resposta é apresentar argumentos ao invés de lançar anátemas. Especialmente em um momento em que Bento XVI apelou a uma "Nova Evangelização" no Ocidente – o que pressupõe uma espécie de psicologia "porta aberta" –, isso não é algo pequeno.
Ecumenicamente, o beneficiário mais direto é a relação entre o catolicismo e a ortodoxia.
Analisando a lista de nações que se uniram à Itália no recurso, ela inclui Rússia, Grécia, Ucrânia, Sérvia, Áustria, Polônia, Hungria, Croácia e Eslováquia – basicamente as principais nações ortodoxas da Europa, mais as peças componentes do antigo Império Habsburgo. Uma forma de olhar o resultado, portanto, é como uma vitória para uma aliança católico-ortodoxa, deixando para trás a maioria das sociedades secularizadas do continente.
Entre outras coisas, o resultado fornece uma nova munição para os líderes ortodoxos moderados para justificar o diálogo com a Igreja Católica, contra os "linhas-duras" que veem o ecumenismo com Roma como uma abominação.
Finalmente, há também uma dimensão inter-religiosa. Por exemplo, a decisão fez alguns muçulmanos turcos se sentirem melhor com relação às suas perspectivas na UE – de que a Europa, talvez, também se abrirá às suas expressões de identidade islâmica.
Além desse ponto amplo, a decisão tem implicações especiais para as relações católico-judaicas, por razões, na maior parte, biográficas. Weiler, o advogado que conduziu o recurso com sucesso, é um judeu ortodoxo.
A imagem de Weiler de pé, na Grande Câmara do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos com a sua kipá, defendendo apaixonadamente o direito da Itália a manter o crucifixo na parede, deve estar entre os pontos mais marcantes do imaginário inter-religioso de memória recente. (Aliás, o vídeo da sua argumentação oral está disponível no YouTube e vale a pena dar uma olhada.)
O celebrado papel de Weiler no caso do crucifixo, combinado com outros desdobramentos positivos recentes – tais como as declarações do Papa Bento XVI de que os judeus não são os culpados pela morte de Cristo, e que os cristãos não devem tentar convertê-los – fornecem bases de esperança de que as relações católico-judaicas podem estar entrando em uma recuperação prolongada.
Em resumo, uma cidadela do secularismo europeu está entre os últimos lugares dos quais a maioria dos católicos esperaria um favor, mas isso é precisamente o que a Igreja conseguiu na sexta-feira passada. A dimensão desse favor vai depender, dentre outras coisas, da medida em que os católicos vão levar a sério as suas lições.
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Caso do crucifixo é uma vitória para o catolicismo "aberto" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU