24 Janeiro 2010
Atualmente o compartilhamento, legal e ilegal, de arquivos pela internet, tem gerado inúmeras polêmicas e discussões. A digitalização mundial realça cada vez mais questões sobre direitos autorais, pirataria e a decadência da indústria do entretenimento. Dentro do meio musical, artistas se dividem nas posições sobre a disponibilização de material na rede.
Fred Rodrigues Montenegro, o Fred Zero Quatro, é um dos defensores do download pago. Segundo ele, a cadeia produtiva musical se torna, a cada dia, mais inviável e a sociedade não mensura as grandes conseqüências do compartilhamento gratuito para atividade profissional de músico. “Acho que existe um pouco dessa coisa meio furtiva e divertida quando se vai baixar o novo disco do ‘fulano’. Porém isso é algo de curto prazo, é um prazer imediato. À medida que as cadeias vão ficando mais inviáveis, a reprodução e a própria proteção da atividade do compositor e do músico vão diminuindo”, revela em entrevista concedida à IHU On-Line.
Sendo um dos expoentes do movimento musical mangue beat, surgido no Brasil na década de 90, em Recife, Zero Quatro é autor do manifesto "Caranguejos com cérebro", que discutia a formação de uma cena musical tão rica e diversificada como os manguezais. O mangue beat concedeu à Recife o título de centro musical, mas, segundo o músico, as tecnologias que temos hoje certamente não aumentariam a eficiência do movimento. “Na internet não existe território. Muitas ondas novas que surgiram aqui têm muito mais ‘adeptos’ na Indonésia, do que em Recife. Na época do mangue havia um comprometimento cooperativo na cidade”, garante.
Fred Zero Quatro é compositor e vocalista do grupo Mundo Livre S/A. Graduado em comunicação social, com habilitação em jornalismo, atualmente é presidente do Conselho de Cultura na Secretaria de Cultura de Recife.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como tu vês a questão do compartilhamento de arquivos, principalmente os das tuas músicas, na internet?
Fred Zero Quatro – Acho que o artista deve ter noção do creative commons e ter autonomia sobre a forma como a música será utilizada. No meu caso fiz há pouco uma trilha para um espetáculo de dança em Recife. Fiz sete músicas, são quarenta e sete minutos de material inédito e acho natural compartilhar isso na internet para uso livre. Agora, tem determinado tipo de material meu que posso querer preservar os direitos. Não sou contra o compartilhamento e o download gratuito, sou contra o download de material protegido. É diferente você estar passeando numa mata, ou mesmo em um terreno baldio qualquer, que por acaso tenha uma fruteira. Uma coisa é você colher material que está disponível na natureza, outra coisa é você ir numa feira livre, pegar uma quantidade de tomate e sair sem pagar. Por outro lado acho que estamos vivendo um momento em que alguns artistas, e a grande maioria do público consumidor e dos internautas, ainda não tiveram tempo de mensurar as conseqüências desse tipo de consumo para a própria sociabilidade de uma atividade profissional, como a musical.
O que mais vemos agora é a cadeia produtiva se tornando, cada vez mais, inviável. Empresas, gravadoras, lojas e selos estão fechando, e fora da área da música, jornais e revistas estão fechando. É algo que envolve a atividade profissional de muita gente. Agora a web 2.0 completou dez anos, mas se em uma década nada pode substituir isso, acho difícil achar uma solução em curto prazo. Se não houver nada novo em termos de mecanismos que propiciem um novo tipo de cadeia de comercialização, acho que em breve ficará mais claro que isso tem efeitos danosos e negativos, até mesmo para o próprio consumidor. Eu sou da geração em que ainda não havia muita proteção em determinados ambientes, como livrarias e magazines, e que a coisa mais divertida do mundo era o pequeno delito, um ato de aceitação. Roubar um livro de uma livraria que se gosta e levar para casa por estar sem grana, ou até mesmo estando com grana. Existem figuras míticas neste campo do crime, como aquelas duplas famosas, e isto envolve uma coisa romântica e selvagem. Acho que existe um pouco dessa coisa meio furtiva e divertida quando se vai baixar o novo disco do “fulano”.
Porém isso é algo de curto prazo, é um prazer imediato. A medida que as cadeias vão ficando mais inviáveis, a reprodução e a própria proteção da atividade do compositor e do músico vão diminuindo. A médio prazo, o consumidor vai começar a sentir falta do novo álbum e da nova música, pois não haverá mais produção. A cadeia produtiva da música envolve casa de shows, empresários, revistas, críticos, estúdios, compositores, lojas de instrumentos e discos. Porém sempre achei muito simplório pensar que, em uma cadeia de muitos anos e que tem uma interdependência, um dos elos será eliminado, como o elo mais poderoso que é a gravadora, que mais injeta recurso e investe na cadeia, pode sair e não afetará o resto.
Estou em um cargo público agora, na Secretaria de Cultura de Recife e tenho freqüentado muitos debates e palestras oficiais, além de conversar com muita gente que não esperava que o negócio fosse ficar tão “bravo” assim. É cada vez maior o número de artistas e bandas que não têm como lançar discos ou montar uma turnê, e é ingênuo achar que a desestruturação de toda uma indústria não irá afetar o mercado de músicas. Estas bandas que estão se formando em um novo ambiente de consumo, com o compartilhamento desenfreado, tem mais dificuldade de manter um público fiel. Se você tem um iPod onde você baixa trinta mil músicas todo o mês, você estará ouvindo coisas ali que nem faz idéia do que são. Aquela noção do público fiel está cada vez mais ameaçada. Isto ameaça também o mercado de shows. Música agora é só uma porcaria qualquer que se está baixando aos milhares, porque se pagar para ver um show, por exemplo?
"É cada vez maior o número de artistas e bandas que não têm como lançar discos ou montar uma turnê, e é ingênuo achar que a desestruturação de toda uma indústria não irá afetar o mercado de músicas"
IHU On-Line – A partir dessas novas tecnologias, tu acreditas que a indústria do entretenimento está ameaçada? Por quê?
Fred Zero Quatro – Acredito que alguns setores da indústria com certeza irão passar por grandes transformações, e outros, como no caso da música, irão virar uma espécie de subdivisão de outras cadeias. Acho incrível que no Brasil, por exemplo, pouca gente refletiu se houve algum trabalho, inclusive a nível acadêmico, sobre um fenômeno que considero emblemático e que passou quase despercebido. Simplesmente o rei do entretenimento do Brasil, Roberto Carlos, passou a fazer shows em navios. Um cara que raramente podia ser visto ao vivo, uma vez por ano aparecia na TV, agora convive durante semanas com pessoas que podem pagar um cruzeiro. Lógico que isso não é uma coisa absolutamente nova. Elvis Presley no final de sua carreira estava em um cassino em Las Vegas. Mas em um cruzeiro de navio, até pouco tempo atrás, só tinham artistas de quinta categoria. Tenho amigos que já participaram de turnês em navios, como músicos acompanhantes de bandas, e é algo deprimente. Claro que o esquema do rei é outro, mas há pouco tempo falava-se que cantar em um navio era coisa de cantores de barzinho.
Neste caso vemos que o rei, que não é um músico qualquer, está sendo vendido num pacotão, e que a musica irá ficar, cada vez mais, como uma subdivisão de uma coisa maior. A pessoa está indo para um grande cassino ou cruzeiro porque um grande artista estará lá. A própria tragédia com o Michael Jackson. Tudo bem que é um caso a parte, pois envolve overdose de remédios, mas ele devia estar vivendo uma pressão muito intensa de profissionais para voltar a fazer turnê, coisa que ele não fazia há muito tempo. A música não está deixando de ser uma indústria, mas será só um braço dentro de uma indústria maior, seja da comunicação com essas novas mídias, seja do cinema e de outras coisas. Cada vez mais com esses novos equipamentos envolvendo a indústria editorial, jornais e revistas também irão passar por esse processo de reformulação. Tudo terá de ser recombinado e remixado, pois a recombinação será algo mais valorizado que a criação literária.
IHU On-Line – O Tecnobrega ganhou espaço por gravar seus CDs e distribuir para os camelôs. Tu consideras isso um incentivo a pirataria?
Fred Zero Quatro – Com certeza. As pessoas têm que tomar cuidado com esta questão da música on-line/+,, pois os músicos e os compositores estão ficando cada vez mais irrelevantes. Tudo é feito de forma amadora e caseira. Inclusive o papel do compositor e do instrumentista está mais irrelevante. No caso desta cultura, não só do tecnobrega, mas de vertentes como o fuleragem music, o povo vai lá e faz a versão que quiser de Michael Jackson, Madonna ou Chico Buarque. Antigamente não se tinha problema em fazer essa releitura nos shows, mas se fosse gravar precisava de uma autorização técnica do autor. Aí se deviam os direitos que garantiam a sustentabilidade da atividade do compositor. Agora não existe mais isso. O que o cara cantou foi gravado ao vivo mesmo, e jogado na rua. O direito do compositor se foi. Aí cito o caso de Gilberto Gil. Quando Gil começou a carreira profissional ele sentiu a motivação de algo estável, que ele já tinha como executivo. Mas, com uma situação compartida como essa, com a indústria cada vez mais decadente hoje, o cara não pode largar um emprego em uma multinacional para gravar um disco.
O que está ficando ameaçada é essa motivação do compositor de dedicar energia e tempo para criar algo novo. Eu falo isso com sinceridade. Tenho um filho de sete e um de três anos. Até uns cinco anos atrás, eu estimulava meu filho mais velho a gostar de algum instrumento. Hoje eu o estimulo a ouvir músicas boas, mas jamais vou estimulá-lo a atividade profissional de músico. Agora dizem que eu virei porta-voz da indústria, mas todos sabem que a indústria como vinha sendo praticada era perversa. Uma coisa é se defender uma indústria mais transparente e democrática, outra coisa é ficar, ingenuamente, defendendo o fim da indústria.
"Dizem que eu virei porta-voz da indústria (...) Uma coisa é se defender uma indústria mais transparente e democrática, outra coisa é ficar, ingenuamente, defendendo o fim da indústria"
IHU On-Line – Tu defendes o download pago. Se o artista vende suas músicas pela internet, essa noção de ganho muda?
Fred Zero Quatro – Um cantor que quer gravar algo de um compositor que gosta e que pagou direito autoral para a editora, quer proteger o material quando for lançado para não ter prejuízo. Isto é um direito dele, para ter um retorno do capital que investiu. Não é só o tempo, a criatividade e a dedicação, há um custo. Eu concordo totalmente que a prática de preços que a indústria vem exercendo é absurda. Pagava-se muito mais pelo jabá e pela forma de corromper o sistema de comunicação, do que pela própria produção. O preço é completamente irreal. Agora, um preço que garanta que o autor seja remunerado e que o capital retorne de alguma forma, é completamente racional, é questão de sustentabilidade para a atividade.
Tem uma coisa curiosa, que não sei se tem diretamente a ver com o download, mas com certeza tem algo a ver com o desmonte da indústria hegemônica. Eu, como compositor estou tendo uma receita muito maior hoje em dia. Talvez tenha a ver com o escritório arrecadador que defende os direitos do autor em parceria com associações, e o com o mercado que está agindo com muito mais rigor, inclusive na parte de shows. É aquela história, antigamente o mercado tentava ser mais ativo na cobrança de emissoras de TV e tal, mas nos shows em geral havia uma cobrança menor, pois o artista receberia com a venda de discos. Como a venda de discos hoje diminuiu, o Ecad está conseguindo fechar acordos com um grande número de organizadores de eventos, prefeituras, governos e fundações. Existe uma coisa estigmatizada envolvendo o Ecad, que é de interesse dos próprios meios de comunicação, como da Rede Globo e da MTV, que querem estigmatizar o Ecad para não pagá-lo, para queimá-lo. A experiência que tenho com o Ecad é que se trata de um pessoal ultra sério, que repassa dinheiro e que faz um trabalho competente.
Isto tudo também tem a ver com o desmonte da indústria. O rádio era tão atrelado as gravadoras, que artistas e compositores acabavam entrando no grande esquema e recebendo direito autoral. A medida que a hegemonia das grandes gravadoras foi entrando em decadência, pouquíssimas gravadoras continuaram a receber jabá, a programação das emissoras foi ficando mais livre. Muitas rádios que antes não tocavam Mundo Livre S/A e outros artistas mais alternativos, porque estavam muito vinculadas as prioridades das gravadoras, hoje estão tocando.
IHU On-Line – Sobre a questão do manguebeat, tu achas que se a internet tivesse presente na época do manifesto dos “caranguejos com cérebro”, o movimento teria sido diferente, mais eficiente?
Fred Zero Quatro – É difícil avaliar isso. Em primeiro lugar, nem a Nação Zumbi, nem a Mundo Livre S/A teriam tido condições de gravar os primeiros discos de forma caseira. A galera da Nação Zumbi, os percussionistas, não tinha grana para comprar instrumentos profissionais e montar um estúdio em casa. Hoje em dia 90% do material que está no My Space, por exemplo, são de pessoas que gravam música no laptop em casa. O perfil da galera do mangue não era esse, nem o perfil socioeconômico, nem de formato musical.
"Hoje em dia 90% do material que está no My Space, por exemplo, são de pessoas que gravam música no laptop em casa. O perfil da galera do mangue não era esse, nem o perfil socioeconômico, nem de formato musical"
Voltando à questão da indústria, por mais que houvesse a lógica concentradora da grande indústria, não podemos negar o papel primordial da Sony e dos clipes na MTV, em toda essa história que envolvia a cadeia produtiva da indústria com toda sua cauda longa, na época com os grandes contratos prioritários e os selos menores, como o Banguela, com o orçamento menor. Não podemos esquecer o papel de motivação para a cena do Recife, depois de décadas estagnada. Viu-se clipes da Nação Zumbi e da Mundo Livre S/A bombando na MTV e na novela. Isso provocou uma avalanche de novas bandas surgindo em Recife.
É difícil avaliar se a internet, o MySpace e o You Tube poderiam ter proporcionado reações em termos de contágio em toda a cidade. Uma coisa primordial, na efervescência da cena do mangue, foi o comprometimento de toda a comunidade cultural da cidade. Antes da assinatura com as gravadoras, os primeiros clipes foram feitos por produtoras que ficaram contagiadas com a história do caranguejo com cérebro, isso motivou o pessoal do audiovisual. Na internet não existe território. Muitas ondas novas que surgiram aqui têm muito mais “adeptos” na Indonésia, do que em Recife. Na época do mangue havia um comprometimento cooperativo na cidade.
IHU On-Line – Tu tens formação em jornalismo e uma carreira musical longa, mesmo antes da Mundo Livre S/A. Tu achas que a música tem que ter compromisso com uma causa, tem que conscientizar?
Fred Zero Quatro – Não. Seria tão presunçoso isso quando a atitude que tem a OMB, de que querer ordenar música. Não se pode fazer tango eletrônico instrumental, sem o compromisso única e exclusivamente com a criação e a estética. Mas isso é de cada um. Essa opinião no meu caso vem da minha formação e por fazer comunicação, sempre interessado no jornalismo e na experiência alternativa. Na própria faculdade tive certa militância na imprensa de laboratório, reivindiquei melhores condições de ensino e participei de greves. Com diria Tom Zé: “a questão é de defeito de fabricação”. Sempre achei os encartes de CDs um desperdício ou inconseqüência, por exemplo, por não se utilizar aquele espaço da melhor forma possível.
IHU On-Line – Passados 18 anos do manifesto, como está a cena musical hoje, em Recife?
Fred Zero Quatro – Estamos num processo de curadoria da grade do carnaval por parte da prefeitura, em respeito a quantidade de coisas novas que aparecem. Lógico que nem tudo tem a originalidade e a criatividade que almejamos, mas é aquela historia, a quantidade também gera qualidade. Há também renovação nos festivais, e em eventos de periferias. A própria prefeitura tem uma atividade muito saudável de estimular esse tipo de atividade, como fóruns de músicas, não só dentro do Conselho de Cultura Municipal, mas nas comunidades, onde há um diálogo. Há um crescimento progressivo na questão de cidadania, o que interfere no sentido cultural. Até há algum tempo era surreal imaginar que haveria um fórum de música, era uma categoria pouco engajada até então. Hoje existe a AMP e o fórum de música, ligado ao orçamento participativo.
Outra questão é a qualidade, há muita coisa bacana e espontânea surgindo. 2010 promete marcar uma retomada na cena daqui com uma reivindicação muito antiga de quem mexe com música em Recife, que é criação de uma radio pública. O radio sempre foi o gargalo musical no pólo musical em Recife, e agora temos a noticia de que, até abril, estaremos com a rádio Frei Caneca no ar.
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"Há algo meio furtivo e divertido no prazer imediato do download". Entrevista especial com Fred Zero Quatro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU