04 Novembro 2009
“Se não houver uma mudança de fundo na concepção eclesiológica até aqui vigente, acho pouco provável que aconteça alguma mudança nessa direção”. É essa a visão do professor e pastor Zwinglio Mota Dias. Por e-mail, ele concedeu a entrevista que segue à IHU On-Line onde falou sobre a discussão em torno da entrada dos anglicanos na Igreja Católica. “Acho que a atitude unilateral das autoridades vaticanas, para atrair para suas hostes os anglicanos conservadores e descontentes com a situação interna de sua igreja, não trará implicações maiores para a Comunhão Anglicana como um todo”, apontou.
Zwinglio Mota Dias é professor no PPG em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora. Pastor da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e editor da Revista eletrônica “Tempo & Presença”. Junto com Faustino Teixeira, escreveu o livro Ecumenismo e Diálogo Inter-Religioso – a arte do possível (São Paulo: Ed. Santuário, 2008).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que passos prévios levaram à decisão da entrada dos anglicanos na Igreja Católica?
Zwinglio Mota Dias – Há muito tempo que o diálogo entre as duas confissões cristãs vem se desenvolvendo. A adesão da Igreja Romana ao Movimento Ecumênico a partir do Concílio Vaticano II incrementou, de forma oficial, sua abertura às demais confissões cristãs, o que incluiu a sua participação em diferentes comissões de trabalho do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), e, inclusive, levou à criação de um ”Grupo Misto de Trabalho” formado por representantes nomeados pelo Vaticano, por parte da Igreja Romana e outro formado por representantes nomeados pelo Conselho Mundial de Igrejas. As coisas começaram a se modificar durante o pontificado de João Paulo II, com sua iniciativa de criar espaços de diálogo particulares com cada família confessional, do tipo: Igreja Romana e Federação Luterana Mundial, Igreja Romana e Igreja Anglicana, Igreja Romana e Conferencia Mundial Metodista, Igreja Romana e Aliança Mundial de Igrejas Reformadas, Igreja Romana e os diversos Patriarcados Ortodoxos etc. Esta atitude, aparentemente louvável e interessante, acabou por debilitar o compromisso da Igreja Romana com o Movimento Ecumênico representado pelo CMI, deixando entrever, em várias situações, que o ecumenismo deve antes de tudo, passar primeiro por Roma, e não por Genebra (sede do CMI).
Não estou a par dos detalhes históricos das relações entre Roma e Cantuária. Mas estas se desenvolveram historicamente, especialmente por iniciativas de lideranças da Igreja Anglicana, que sempre se colocou, em virtude de sua própria autocompreensão, como uma possível mediação entre Roma e as Igrejas da Reforma. Num passado não muito distante, foram emitidos sinais altamente positivos de uma comunhão mais intensa entre as duas confissões que, infelizmente, nunca prosperaram, em função, em minha opinião, das posturas absolutistas da cúpula vaticana.
IHU On-Line – Podemos falar de um processo de diálogo ou de uma resposta a uma solicitação de um grupo da Igreja Anglicana?
Zwinglio Mota Dias – A Igreja Anglicana, até onde estou informado, é uma igreja plural, que admite a convivência democrática e respeitosa de diferentes orientações teológicas no interior de seu rebanho. A Comunhão Anglicana, com cerca de 77 milhões de fiéis em todo o mundo, é formada por Igrejas Nacionais independentes que se juntam, democraticamente, numa espécie de federação. Cada uma, respeitando a tradição teológica e eclesiológica que as caracteriza como membros da família confessional anglicana, tem suas próprias características, ênfases e decisões que as marcam como igrejas singulares. O arcebispo de Cantuária é considerado como um sinal da unidade da Igreja, o qual respeita e acolhe as diferentes expressões do anglicanismo no mundo.
Nos últimos anos, a Igreja se viu abalada por dissensões internas por causa da ordenação, por parte de algumas igrejas nacionais, de mulheres para a função episcopal e pela acolhida de homossexuais como pastores e pastoras, tendo mesmo uma diocese norte-americana chegado a consagrar um bispo homossexual, o que gerou protesto de grupos internos a igrejas em diferentes partes do mundo. Desconheço se algum desses grupos mais conservadores endereçou alguma solicitação ao Vaticano. Mas, mesmo que isto tivesse acontecido, não justificaria, de forma alguma, a atitude da cúpula vaticana de imiscuir-se em assuntos internos de outra confissão, com o intuito claro e proclamado de atrair os descontentes daquela confissão para suas fileiras. No meu entender, isto pode ser caracterizado como uma forma clara de proselitismo desonesto e acintoso. Dadas as declarações do Núncio apostólico no Brasil, ignorando a presença da Igreja Anglicana entre nós, diria até que foi um gesto proselitista afoito e mal preparado.
IHU On-Line – O que esta iniciativa implica para o diálogo ecumênico?
Zwinglio Mota Dias – Diálogo ecumênico, para mim, não se reduz às relações de outras igrejas com a Igreja Romana. Aliás, o movimento ecumênico começou há mais de 150 anos entre as Igrejas Protestantes, depois ganhou o concurso das Igrejas Ortodoxas e só depois do Concílio Vaticano II pode acolher, em seu espaço de diálogo e cooperação, a Igreja Romana. Portanto, é muitíssimo mais amplo. Tem a ver com as relações entre as diferentes famílias confessionais (protestantes, ortodoxos, anglicanos, pentecostais, católicos-romanos) que congregam os cristãos em todo o mundo. Reduzi-lo a conversações com as autoridades vaticanas (que é o que fazem os protestantes antiecumênicos entre nós!) é não se dar conta da pluralidade de formas da Igreja de Cristo nas diferentes culturas e desconhecer a riqueza devocional e o testemunho público do Evangelho que o Espírito suscita nas mais diferentes estruturas societárias pelo mundo a fora. Por meio do Conselho Mundial de Igrejas, mesmo com seus problemas e dificuldades, as grandes confissões protestantes e ortodoxas têm desempenhado um papel muito importante, atacando questões cruciais que afetam a sobrevivência da humanidade nos dias atuais (embora jamais noticiadas pela mídia). O CMI tem assento nas Nações Unidas e desenvolvido um papel profético nas várias áreas de interesse público (política, economia, ciência, saúde, cultura etc.) que dista muito das tacanhas e autorreferenciadas atitudes do Vaticano, especialmente no atual pontificado.
A iniciativa do Papa Bento XVI significou um desserviço à causa do Ecumenismo. Um ”Não” ao diálogo ecumênico honesto e sincero (reconhecido e afiançado pelo Concílio Vaticano II) entre cristãos que se acolhem como iguais, apesar de suas diferenças históricas, e um profundo desrespeito à Comunhão Anglicana mundial. Digo um desserviço à causa ecumênica porque significa a coroação de uma série de esforços para socavar os avanços de cooperação e diálogo alcançados nas décadas de 1970 a 1990, por meio de uma afirmação progressiva da centralidade de Roma nos esforços de cooperação intereclesiástica, cuja expressão maior foi o documento “Dominus Jesu”.
IHU On-Line – Diante desta situação, a Igreja Católica reforça sua oposição à ordenação de mulheres e de pessoas gays?
Zwinglio Mota Dias – No presente pontificado, ao que tudo indica, a ordenação de mulheres e de pessoas de orientação homossexual está absolutamente fora de cogitação. As autoridades vaticanas atuais trabalham com um modelo de Igreja pré-moderno e pré-Reforma, fazem ouvidos moucos ao clamor surdo que sobe das bases da Igreja em todo o mundo, especialmente das mulheres e dos milhares de padres casados que gostariam de continuar a exercer seu munus pastoral. A iniciativa em direção aos setores minoritários mais conservadores da Igreja Anglicana não vai modificar esta postura. Para isto mesmo foi criado um regime especial para os possíveis adesistas que continuarão “anglicanos” dentro do espaço romano... Concordo com o Prof. Hans Küng de que se trata de uma aliança à direita (agora com os anglicanos, mais adiante, quem sabe com quem!) sob o báculo do príncipe de Roma...
IHU On-Line – Com isso, podem-se abrir mais possibilidades de ordenar padres casados na tradição ocidental?
Zwinglio Mota Dias – Diante do que temos observado até aqui, não creio. Se não houver uma mudança de fundo na concepção eclesiológica até aqui vigente, acho pouco provável que aconteça alguma mudança nessa direção, embora torça para que isto aconteça...
IHU On-Line – Quais as consequências para a Igreja Anglicana em termos de presença pública, social dessa acolhida do grupo dissidente na Igreja Católica?
Zwinglio Mota Dias – Acho que a atitude unilateral das autoridades vaticanas, para atrair para suas hostes os anglicanos conservadores e descontentes com a situação interna de sua igreja, não trará implicações maiores para a Comunhão Anglicana como um todo. Como não foi uma decisão concertada entre as duas confissões, mas uma ação isolada do Vaticano, acho que as consequências negativas pendem mais para o lado da Igreja de Roma do que para o Anglicanismo. Por outro lado, trata-se de um setor minoritário em descompasso com as exigências éticas do mundo contemporâneo e que só servem de pedras de tropeço para o avanço do testemunho do Evangelho nos termos em que as condições do mundo hoje estão a exigir.
IHU On-Line – Há um índice curioso de “migração” de sacerdotes católicos para a Igreja Anglicana. Como o senhor vê essa questão?
Zwinglio Mota Dias – Em função da rigidez da Igreja Romana quanto ao ministério ordenado e, especialmente, com a imposição do celibato, acho normal essa transferência de ministros que querem ser fiéis a sua vocação pastoral, mas não podem realizá-la no espaço de sua Igreja de origem. A afinidade com a Igreja Anglicana é maior do que com as Igrejas protestantes pelo fato do Anglicanismo ter mantido, ainda que com modificações significativas, a estrutura eclesial e litúrgica pré-Reforma, embora tenha adotado os princípios teológicos fundamentais da Reforma.
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"Um desserviço à causa ecumênica". Entrevista especial com Zwinglio Mota Dias - Instituto Humanitas Unisinos - IHU