20 Agosto 2009
“A proposta e a preocupação de atender a uma ética no horizonte global não pressupõem um consenso como, num primeiro momento, nós poderíamos imaginar”, declarou Joe Marçal em entrevista, por telefone, à IHU On-Line. Ele vem ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU hoje para debater o cristianismo durante o evento Religiões do Mundo. Segundo ele, o cristianismo “nasceu como movimento, como uma coisa extremamente viva, a partir de comunhões que não aconteciam na formalidade das religiões da época, mas de forma transversal, híbrida e muito criativa”. Nesta entrevista, Dr. Joe falou sobre o futuro da sua religião e as diferenças entre ela e o judaísmo e o islamismo, que também são monoteístas. “Hoje temos “muitos” Jesus, até demais, que atendem diferentes demandas muito humanas, vindas de uma multiplicação/reprodução ensandecida. Ele é aquele que salva, aquele que cura, aquele que fornece os elementos para algum tipo de militância. Não tem uma apresentação única e hegemônica”, disse Marçal ao responder a questão sobre quem é Jesus hoje.
Pastor na Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil e professor na área da Teologia e Ensino Religioso da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, Joe Marçal Gonçalves dos Santos é doutor em Teologia pelo Instituto Ecumênico de Pós-Graduação. É secretário executivo do Fórum Mundial de Teologia e Libertação
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Nesta sexta, o senhor estará presente no IHU para debater o papel do Cristianismo na sociedade de hoje e a construção de uma possível ética mundial que perpassa todas as religiões. Na sua visão, é possível chegar a um consenso entre elas?
Joe Marçal – Não, não acredito num consenso. Eu penso que a proposta e a preocupação de atender a uma ética no horizonte global não pressupõem um consenso como, num primeiro momento, nós poderíamos imaginar. Seria difícil pensar dessa maneira. Não deveríamos colocar como um ponto de partida a busca de um consenso, mas num primeiro momento modestamente buscar reconhecer onde há convergências e onde há divergências, em busca da construção desse espaço comum que é o mundo em que vivemos.
IHU On-Line – Diante da nossa conjuntura religiosa, qual o futuro do cristianismo no mundo?
Joe Marçal – Eu tenho uma expectativa muito grande em relação ao cristianismo, pensando ele como teólogo ou como alguém atento à cultura e às mediações que são tão múltiplas e diversas no mundo. Nós vivemos um momento que, para o cristianismo, é de passagem. Vamos pensar nosso mundo hoje como um momento de passagem e, possivelmente, buscando formas de vivê-la, de ritualizar-la, passar por esse momento e se entender nele. Não tenho a menor dúvida de que o cristianismo nasceu numa circunstância assim.
O cristianismo, antes de se tornar uma religião imperiosa e imperial, originou-se como movimento, como uma coisa extremamente viva, a partir de comunhões que não aconteciam na formalidade das religiões da época, mas de forma transversal, híbrida e muito criativa, juntando elementos do judaísmo, condições tais como haviam no momento político do Império Romano e respondeu a uma demanda ética, antropológica e espiritual. Pergunto-me se, ao exercitar hoje, nós voltarmos a essas fontes originárias do sentido profundo, isso vai nos ajudar a viver esse momento de forma criativa, crítica, corajosa para que possamos fornecer elementos de dentro dessa tradição que nos ajude a mapear o mundo em que vivemos.
Então, não penso no futuro do cristianismo nele por ele mesmo, mas naquilo que ele vai ser fecundo no seio da sociedade. O cristianismo tem por vocação atender às demandas de forma plural e diversa. Ao menos assim, nós vamos encontrar o testemunho de um novo testamento.
IHU On-Line – Quem é Jesus para o cristão de hoje?
Joe Marçal – Receio que seria um pouco retórico se eu logo falasse em mistério, porque talvez esse fosse um jeito de escapar à pergunta do que responder objetivamente. O signo que se tornou símbolo que se tornou Jesus ganhou narrativa, forma e significado para diferentes contextos. Isso continua acontecendo nos dias de hoje. Uma forma interessante de pensar essa pergunta é partindo de uma gênese da história da figuração de Jesus de Nazaré, assim teremos uma porta de entrada para perceber justamente a diversidade de representação que houve dentro das igrejas cristãs a respeito de Jesus. Algumas vezes ele é representado de forma monárquica, por exemplo, e, em outras, é representando como servo sofredor.
Hoje temos “muitos” Jesus, até demais, que atendem diferentes demandas muito humanas, vindas de uma multiplicação/reprodução ensandecida. Ele é aquele que salva, aquele que cura, aquele que fornece os elementos para algum tipo de militância. Não tem uma apresentação única e hegemônica. Há uma pluralidade de representação e aí temos que buscar a identificação com esse testemunho original. Não tanto uma preocupação dogmática, mas uma originalidade espiritual, que está associada de forma mística com aquele Jesus que foi preso político, morto numa cruz que de repente inspira uma comunidade a se apropriar de um símbolo de crueldade máxima para entender sua relação com um Deus que liberta e que salva num sentido muito humano.
IHU On-Line – Como o senhor vê as mensagens divinas para o Cristianismo? Elas são diferentes em que sentido em relação ao Judaísmo e Islamismo?
Joe Marçal – Eu tento e acho que dá para escapar de uma visão quase que evolucionista dentro da história das religiões, mesmo que reconhecendo que há um horizonte histórico comum entre judaísmo, cristianismo e islamismo. São religiões parentes em Abraão e dividem um legado comum, que é, sobretudo, a tradição profética que encontramos no primeiro mandamento. Olhando desse modo, podemos pensar num processo histórico e não deveríamos tender a um sentido evolucionista. Cada uma dessas religiões, de fato, e outras – que deveríamos fazer uma relação não histórica, mas muito mais comparativa – tem, dentro do seu histórico, do seu corpo orgânico, questões significativas que só ela tem aquela vocação. O cristianismo também tem isso. O que me encanta na mensagem do cristianismo, pensando na atualidade dele, é o elemento de liberdade que ele implica e, ao mesmo tempo, de responsabilidade. A ideia de que mais do que definir a fronteira entre o profano e o sagrado, há que situar-se nessa fronteira e criar relações e comunhão foi o fenômeno no qual o cristianismo nasceu. Uma espécie de comunhão de gente a margem que não se encontrava no mundo ao qual se vivia na época. Essa mensagem é muito poderosa e tem muito a dizer para nossos dias.
IHU On-Line – Que respostas e caminhos a Bíblia nos aponta para os grandes desafios do mundo hoje?
Joe Marçal – Aí tem um elemento muito relevante que convida a nós pensarmos a possibilidade de reconstruirmos a leitura da Bíblia, que é o legado da tradição profética do primeiro mandamento que se atualiza de forma muito significativa no novo testamento. Ele é a ideia de romper com uma forma de religião imperial, monárquica e que sustenta ideologicamente uma forma de sociedade injusta. Assim, potencializou essa religião como repertório de significado e de sentido para as pessoas viverem de forma criativa e transformadora a sua vida comum em sociedade e individual. Outro elemento que valeria destacar é a visão ecológica, digamos assim, dos profetas. Ecológica e, ao mesmo tempo, escatológica, quer dizer, uma visão de futuro, que traz elementos do passado, mas vive o seu presente em função de um futuro novo e, como diz a expressão dos profetas, com um novo céu e uma nova Terra, marcados por uma ambiência ecológica de paz, mas, ao mesmo tempo, com o critério da justiça. É uma paz construída na justiça que implica na diversidade de forma literal e metafórica. Esse potencial dos profetas é algo que perpassa o primeiro e o segundo mandamento, que traz uma mensagem esperançosa para o mundo em que vivemos, que é fragmentado e pouco criativo em relação a se pensar as coisas não só para o agora.
IHU On-Line – Quais as diferenças entre os cristãos do sul e do norte do mundo?
Joe Marçal – Há diferenças e o cristianismo nasceu para diferenças. Isso graças ao bom Deus. Sempre houve vertentes subversivas dentro do cristianismo a ponto de não torná-lo uma coisa homogênea e pronta. A questão geográfica no cristianismo deu pano para manga sempre. Então, hoje isso continua. Acho bonita a forma como o apóstolo Paulo vai olhar para essas diferenças e falar de dons espirituais, carismas que comunidades têm na sua diversidade. Aí ele se permite falar da igreja como corpo de Cristo. Igreja não no sentido institucional, hegemônico, mas no sentido de comunhão. A comunhão é um corpo, que não vive só de pé, só de mão ou só de cabeça, ela vai viver nessa diversidade. Então, é preciso que, quando falamos em cristianismo contemporâneo, temos que destacar essa diversidade interna. Sul e norte são condições do nosso mundo moderno, marcados por um processo civilizatório, histórico, de dominações, de individualismo que deram as condições de responder à fé cristã de maneira distinta. Se você viver nas condições do terceiro mundo e levar a sério o mandamento do amor que Jesus nos deixa, vai responder a isso, no seu contexto, de forma diferente, assim como a forma de se viver a liturgia, o rito fundante que dá as condições fazer parte do cristianismo com responsabilidade e com esse sonho de paz feita com justiça.
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"O Cristianismo tem por vocação atender as demandas de forma plural e diversa". Entrevista especial com Joe Marçal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU