30 Novembro 2008
Restaurar, organizar e disponibilizar materiais raros que fazem parte da história dos jesuítas é a intenção do Memorial Jesuíta Unisinos. A IHU On-Line conversou pessoalmente com o responsável pelo trabalho, professor Luiz Fernando Rodrigues, que nos contou sobre as atividades em torno da construção do Memorial. “Cada vez mais, nós, jesuítas, vamos diminuindo e, com isso, as obras vão modificando o seu perfil. Precisávamos, portanto, saber o que fazer com todo o patrimônio existente”, relatou ele, que disse, ainda, que trazer e reunir o material na universidade foi uma operação que demandou tempo e muito cuidado, uma vez que tratam-se de obras raras; algumas, por exemplo, datam do início do século XV. “Nós trabalhamos muito focados para que nosso trabalho tenha repercussão na sociedade”, comentou.
Luiz Fernando Rodrigues é graduado em Estudos Sociais, História e Filosofia, pela Unisinos. Também graduou-se em Filosofia, pela Faculdade de Filosofia Cristo Rei, e em Teologia, pela Pontificia Universitas Gregoriana, onde realizou também o mestrado em Teologia Fundamental e doutorado em História Eclesiástica. Atualmente, é professor no Programa de Pós-Graduação em História da Unisinos e conselheiro do Instituto Anchietano de Pesquisas.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como surgiu o Memorial Jesuíta?
Luiz Fernando Rodrigues – O Memorial é uma idéia da Associação Antônio Vieira (ASAV), que há muito tempo tinha uma preocupação em relação ao que fazer com o patrimônio da Companhia de Jesus. Cada vez mais, nós, jesuítas, vamos diminuindo e, com isso, as obras vão modificando o seu perfil. Precisávamos, portanto, saber o que fazer com todo o patrimônio existente e se pensou que os materiais teriam um ótimo aproveitamento aqui na Unisinos. Então, começamos a trazê-los para cá. A operação foi bastante campal, no sentido de que, de fato, trabalhamos uns seis meses selecionando obras, colocando, literalmente, a mão na massa. Na biblioteca, ainda podem ser encontradas as grandes caixas de livros que ficaram fechadas por quase um ano e meio porque ela ainda não tinha uma estrutura suficiente para acolhê-los. Com isso, limpamos os livros e, finalmente, os colocamos em estantes. Percebemos que o trabalho foi faraônico porque a tarefa não se reduzia apenas a colocar os livros na estante, pois eles precisavam ser plastificados e deveriam passar por algum tipo de intervenção. Com isso, nasceu a idéia de promover um financiamento de caixa contínua.
Normalmente, se faz um projeto e recebe-se dinheiro para realizá-lo. No entanto, nós queremos um fluxo contínuo no qual o projeto pode ser manter ao longo dos tempos. Então, se pensou em criar um grupo interdisciplinar e, assim, organizamos uma série de estratégias. No início, pensávamos em fazer uma associação de amigos, mas achamos que esse já é um nome desgastado. Então, pouco a pouco, fomos criando realmente um memorial da companhia. Isso se dá confiado à biblioteca. Assim, a idéia nasceu, montamos um pacote de serviços e fomos às empresas. O memorial é um projeto de ganha-ganha, pois oferece às empresas produtos e serviços e em troca o equivalente a esses produtos, que serão aplicados diretamente na conservação e disponibilização das obras.
IHU On-Line – Que produtos e serviços são esses?
Luiz Fernando Rodrigues – Quando vamos para uma empresa, já temos uma idéia do perfil dela. Mas, quando falamos com o responsável maior, percebemos que existem necessidades bastante diferentes. Por exemplo, oferecemos bolsas de estudos, cursos in company etc. No entanto, algumas empresas acreditam que isso o funcionário precisa prover por si mesmo. Porém, é de seu interesse que o funcionário fale mandarim, porque essas empresas estão voltadas para a China. Desse modo, oferecemos esse curso. Percebe-se que nossas ofertas são muito maleáveis, mudando conforme as necessidades imediatas de quem estamos abordando. Além disso, a empresa aparece como uma investidora em cultura. O Memorial envolve uma série de atividades que irão interferir nos alunos, nos profissionais menores (técnicos) e outros. Por isso, o Memorial está relacionado também a uma questão social ao dar oportunidades.
IHU On-Line – Que outros projetos estão contemplados pelo Memorial Jesuíta?
Luiz Fernando Rodrigues – O Memorial nasce a partir do desejo de a Companhia de Jesus preservar a memória dos jesuítas. Então, o material está ligado àquilo que os jesuítas tinham. O grande centro desse material é a Coleção Cristo Rei, com obras das antigas faculdades jesuítas, onde basicamente há obras da filosofia e teologia. Nessa coleção, é possível encontrar um pouco de todos os setores do conhecimento da época. São 58 mil itens que tratam da formação jesuíta. Os jesuítas chegaram aqui em 1859 e só encontraram muito mosquito. Por isso, eles pediam aos colegas da Alemanha que enviassem livros de medicina, de como se constrói uma ponte, sobre a alfabetização de crianças, de como fazer um parto, por exemplo. De repente, tínhamos, junto com esses livros eruditos, livros práticos. Temos um acervo muito grande sobre a cultura jesuíta do século XIX, então podemos considerar que temos um patrimônio fantástico.
Esse patrimônio trouxe uma língua que pouco a pouco foi desaparecendo. Temos aqui, portanto, as cartilhas de alfabetização do alemão gótico clássico modificado por aqueles que estavam aqui. Isso, para os alemães de hoje, é muito curioso, porque é uma língua quase dialetal e uma fonte de pesquisa para eles. Então, viramos fonte de pesquisa. O presidente da empresa Steel nos visitou e, ao apresentar o projeto, eu disse: “Boa parte do nosso material é em alemão gótico”. Imediatamente, ele saltou da cadeira e disse: “A minha avó me obrigava a ler a bíblia em alemão gótico”. Ele ficou apaixonado e marcou uma nova visita.
Dentro desse material do Cristo Rei, havia ainda outros materiais. Um dos padres da comunidade era nobre e um dia pediu para sua família que enviasse alguns livros mais clássicos. São 2636 volumes do século XV ao século XVIII de obras raras ou muito raras. Temos, por exemplo, a primeira edição da enciclopédia em francês e algumas obras em latim de 1496. Esses livros são do início da colonização do Brasil e de alta pesquisa. Claro que precisam também de alta especialização, como o conhecimento de latim, mas encontramos neles uma riqueza de informações preciosa. Temos também algumas obras que são referências mundiais: a primeira edição da obra de Goethe, a obra de Antônio Vieira, além de arquivos pessoais, como o do Padre Balduíno Rambo. Esses materiais contêm os resultados de pesquisas importantes. Há ainda os documentos de uma indústria que nasceu e fechou durante a ditadura militar, ou seja, temos documentos com uma característica muito particular que servem como pesquisa sociológica, histórica, econômica etc.
IHU On-Line – E qual o estado desses materiais?
Luiz Fernando Rodrigues – Há materiais em estado deplorável, com profundas marcas do tempo e precisam ser recuperados. Fazemos uma espécie de junta médica e examinamos o livro, chamamos técnicos que possam cuidar das obras e as restauramos. Um dos grandes problemas são os livros de 1800, porque o papel daquela época era muito ácido, tende a amarelar, depois fica preto e, então, quebra completamente. Precisamos prever que isso irá acontecer e cuidar para retardar esse problema. É um grande trabalho que temos pela frente, mas o memorial visa a isso, à preservação e à disponibilização desse material. É tanto trabalho e com tanta qualidade que já algumas pessoas nos dizem que precisamos criar uma escola de restauração. Ainda não prevemos isso, mas é um projeto interessante e que temos condições de organizar. Esse material está disponível em dois andares da biblioteca. No sexto andar, estão os livros da Coleção Cristo Rei e da Coleção Loyola. No terceiro andar, há a coleção de obras raras do século XVIII, onde há um cuidado diferente, pois o acesso é restrito. Lá, não se pode tocar no material sem luva, há uma temperatura diferente e uma luminosidade especial.
IHU On-Line – O senhor diz, no início da entrevista, que o número de jesuítas está diminuindo. Diante dessa riqueza cultural, porque, em sua opinião, esse número vem sendo reduzido?
Luiz Fernando Rodrigues – As causas são várias. A Igreja e a sociedade mudaram, por exemplo. Antigamente, as famílias eram patriarcais e tinham muitos filhos. Hoje, há, no máximo, três filhos por família que passou de um perfil mais rural para um perfil mais urbano. A Igreja mudou. Antes, o padre fazia tudo numa paróquia, mas hoje é o leigo quem tem mais atividade dentro da igreja. Existe um perfil diferente. A ação do leigo na Igreja é mais integrada; ele participa mais. Além disso, o sacerdócio é uma escolha muito particular, e nele se trabalha onde há necessidade. Por causa disso, o tipo de vocação mudou e já se fala em um novo tipo de vocação religiosa, onde o leigo assume a liderança. Com isso, a vocação religiosa exige muita dedicação. Por exemplo, o jesuíta atual tem um alto nível de especialização científica. Ele dialoga com o mundo moderno, com os valores e contra-valores da sociedade. Essa especialização requer um grande tempo de estudo; nossa formação é longuíssima. Esse diálogo e essa especialização fazem com que o jesuíta vá trabalhar em áreas muito específicas, como a bioética. Nós trabalhamos muito focados para que nosso trabalho tenha repercussão na sociedade.
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Memorial Jesuíta: memória da cultura da Companhia de Jesus. Entrevista especial com Luiz Fernando Rodrigues - Instituto Humanitas Unisinos - IHU