20 Abril 2008
Cerca de um ano e meio depois da tragédia que marcou o Rio dos Sinos com a mortandade de toneladas de peixes, um caso semelhante acontece no Rio Gravataí, que abastece os municípios de Canoas, Alvorada, Viamão, Glorinha e Santo Antônio da Patrulha, além de desembocar no Lago Guaíba e levar sua poluição para Porto Alegre também. A poluição do rio já era algo visível, e a tragédia, aguardada. “O governo do estado não quer cumprir com o seu papel, ou seja, ele não cumpre o que manda a lei 9943, que é a lei nacional dos recursos hídricos, principalmente no que tange ao plano da APA do Banhado Grande, o Plano de Manejo da Área de Proteção Ambiental, e ao Plano de Uso das Águas da Bacia do Rio Gravataí. (...) O governo do estado assiste a isso, empurra para os municípios e esses tentam fazer o que podem. No entanto, o governo não dá regramento, através desses dois planos de que falei anteriormente, para que o desenvolvimento possa se dar de forma que possa respeitar os limites que a natureza impõe”, disse o geólogo Carlos Marchiori em entrevista à IHU On-Line, realizada por telefone.
Carlos Marchiori é geólogo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e mestre em Sensoriamento Remoto, pelo Centro Estadual de Pesquisa e Sensoriamento Remoto e Meteorologia do Rio Grande do Sul. Atualmente, atua na entidade ambientalista SAAVE - Sociedade Amigos da Água Limpa e do Verde.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que causou esse problema no Rio Gravataí?
Carlos Marchiori – Essa é uma pergunta difícil porque uma série de fatores pode ter causado este problema no Rio Gravataí. Pode ser, inclusive, uma combinação de fatores, como a falta de oxigênio, o excesso de poluição e, principalmente, a falta de gerenciamento dos recursos naturais por parte dos governos municipal e estadual, principalmente.
IHU On-Line – Qual a condição atual do Rio Gravataí?
Carlos Marchiori – Em relação ao Rio Gravataí, sendo bem franco, quando eu vi as primeiras imagens dos peixes penando, morrendo, eu até fiquei surpreso pela quantidade. Eu atribuo essa quantidade de peixes na foz do Rio Gravataí ao período de migração para reprodução. Eles entraram naquele rio com a expectativa de desovar nas nascentes e, infelizmente, acharam um ambiente nada adequado ao que eles estavam acostumados, vindo, por isso, a morrer. O Rio Gravataí é um rio que está sendo, desde a década de 1960, insistentemente levado à morte. O governo do Estado, as populações e as indústrias vêm matando o rio desde esse período. Parece que estão conseguindo.
A bacia do Rio Gravataí é uma bacia diferente das outras. As nascentes do Gravataí estão todas na área do Banhado Grande, na área do Banhado Chico Lomã e banhado dos Pachecos, que é onde existe uma área de proteção ambiental criada pelo governo do estado justamente para garantir que a água das nascentes chegassem na foz em boas condições. Entretanto, o governo do estado não quer cumprir com o seu papel, ou seja, ele não cumpre o que manda a lei 9943, que é a lei nacional dos recursos hídricos, principalmente no que tange ao plano da APA do Banhado Grande, o Plano de Manejo da Área de Proteção Ambiental e ao Plano de Uso das Águas da Bacia do Rio Gravataí. Ele não recebe água de outras bacias. O rio está tão poluído que é muito caro hoje tratá-lo para portabilidade. O governo do estado assiste a isso, empurra o problema para os municípios e esses tentam fazer o que podem. No entanto, o governo não dá regramento, através desses dois planos de que falei anteriormente, para que o desenvolvimento possa se dar de forma que possa respeitar os limites que a natureza impõe.
IHU On-Line – Quem depende, hoje, do Rio Gravataí?
Carlos Marchiori – Hoje, uma população de, no mínimo, um milhão e meio de habitantes tiram água do rio Gravataí para seu consumo diário. Como ele é um rio situado na região metropolitana da capital do estado, então, boa parte da população de Canoas depende dele, além da população de Cachoeirinha, Alvorada, Viamão, Glorinha e Santo Antônio da Patrulha. Mas, se a pensarmos que as águas “descem” e todos nós, de certa forma, moramos rio abaixo, uma vez que o movimento das águas do planeta responde a um ciclo ecológico, então, trabalhando num universo bem próximo, toda a população de Porto Alegre também depende do Rio Gravataí. Isso porque tudo o que acontece nas águas desse rio desemboca na bacia do Lago Guaíba, do qual toda a população da capital depende.
IHU On-Line – Em sua opinião, o que foi feito (ou não foi feito) para que o problema que ocorreu no Rio dos Sinos se repita no Rio Gravataí?
Carlos Marchiori – Quando aconteceu o mesmo problema no Rio dos Sinos, o governo do estado, conhecendo a vulnerabilidade da bacia do Rio dos Sinos e do Rio Gravataí, fez um decreto de situação de emergência. Ele se deu em razão da qualidade da água do Rio dos Sinos e do Rio Gravataí. Isso foi em 2006. Nós já sabíamos que o problema iria se repetir no Rio Gravataí. Só achávamos que não estava morrendo tanto peixe naquela época pela qualidade da água do Gravataí, que é bem inferior à do Rio dos Sinos, e, portanto, não deveria ter ali tantos peixes. O Rio Gravataí é um rio de planície: não tem grande desnível de altitude desde a sua nascente até sua foz, então as águas correm lentas. Trata-se de uma outra realidade.
IHU On-Line – Qual é o risco de contaminação da água pela decomposição dos peixes?
Carlos Marchiori – Podemos acreditar que até a falta de oxigênio é um tipo de poluição. A forte chuva que ocorreu dias antes pode ter lavado as lavouras de arroz que existem nas nascentes do Rio Gravataí e trazido os pesticidas e agrotóxicos, ou seja, mais poluição do que já há. Mas eu creio que a pior poluição que estamos enfrentando hoje aqui na região é a poluição política, humana, causada por políticos que querem somente cuidar das suas campanhas e deixam de cuidar do seu lugar, de fazer o zelo que a constituição manda, ou seja, a tutela do meio ambiente ecologicamente equilibrada, a fim de fazerem somente a guarda dos interesses econômicos. Assistimos a isso no Rio Grande do Sul com o secretário estadual do meio ambiente (Carlos Otaviano Brenner de Moraes), agindo única e exclusivamente em prol da silvicultura, uma atividade econômica que promete uma mega injeção de dinheiro no estad. Em outras palavras, o secretário está sujeito à pressão de três empresas – Aracruz, Votorantim e Stora Enzo – e está comprando o gaúcho pela barriga ao oferecer enriquecimento fácil. Isso é uma falácia. Nós estamos vivendo uma falsa expectativa de desenvolvimento econômico à custa da degradação e da poluição ambiental do interior do estado. Isso pode ser notado pela paisagem de onde a silvicultura tomou conta, pois ela já mudou. A aprovação desse pseudo-zoneamento, que nada zoneia e que tudo permite, gera uma expectativa das piores possíveis. Temos, nós próximos 30 anos, uma previsão de muito sofrimento ambiental.
IHU On-Line – Qual é o papel da Fepam no caso do Rio Gravataí?
Carlos Marchiori – A Fepam é órgão fiscalizador. Ela deve atuar, precisa ir até o rio e fazer coletas, investigar. Trata-se de uma instituição não só de investigação, mas de controle: precisa apurar as causas. Para isso, tem laboratório. Mas o governo do estado, sabendo que a Fepam possui essa função, tem simplesmente dado todas as condições para que a fundação e outros órgãos sejam desmontados. O governo do estado está desmontando a estrutura de controle e gestão ambiental que o movimento ambientalista do Rio Grande do Sul levou anos para montá-lo. O Sema e o Consema são exemplos disso. A Fepam tem esse papel, mas, ao mesmo tempo, o governo do estado está “cortando o pé da cadeira” de quem está lá dentro querendo fazer um bom trabalho. O governo coloca seus cargos de confiança na presidência da instituição. Esta faz tudo em prol do desenvolvimentismo sem critérios, ignorando pareceres de técnicos que lá dentro trabalham contra determinados tipos de atividade e fazendo pareceres políticos, liberando atividades como a silvicultura, ou seja, a cultura das árvores exóticas no estado. E, quando ocorre um caso como esse, os cargos de confiança e chefes políticos que estão lá simplesmente não sabem o que fazer. Aqueles outros com competência para fazer se sentem totalmente amarrados, e a população “paga o pato”. É triste, mas é a verdade.
IHU On-Line – Há anos, quem segue de Canoas para Porto Alegre, e vice-versa, sabe do problema da poluição do Rio Gravataí. Por que até agora nada foi feito para salvá-lo?
Carlos Marchiori – Como eu te falei antes, há uma série de fatores que podem ter causado a mortandade dos peixes. Entre eles, existe a responsabilidade de cada um. Cada indivíduo que mora nessa região tem sua parcela de responsabilidade, na medida em que ele gera resíduos e esgoto. Agora, quando somamos o impacto da economia de cada família, temos um rio poluído, inevitavelmente. Então, compete à sociedade reunir, fazer um conjunto de forças para solucionar esse problema. Isso passa por uma questão de educação ambiental e de saneamento ambiental público. Vou dar um exemplo prático: nós temos a cultura de construir nossas casas com os fundos para o rio, para justamente aproveitá-lo para tocar todo o nosso lixo dentro dele. Mas isso deveria, desde o início, ser feito ao contrário. Deveríamos construir nossas casas de frente para o rio e tratar o nosso esgoto e nosso lixo. É um problema individual e coletivo. Também é um problema de falsa dicotomia que existe entre economia e ecologia. Não podemos fazer tal divisão. Quando fazemos isso para incentivar a economia, o meio ambiente é tratado como um “atravancador” do desenvolvimento, o que é como dar as costas para o rio!
IHU On-Line – Ainda há tempo de salvar o Rio Gravataí?
Carlos Marchiori – Sim, com certeza tem. Temos bons exemplos pelo mundo afora de rios que estavam em condições muito piores e que conseguiram ser recuperados. O rio é algo dinâmico, e as águas têm um tempo de residência. Então, se hoje parasse de ser lançado todo o efluente que é lançado no Gravataí e no Rio dos Sinos, e ele fosse devidamente tratado, sendo otimista, em menos de dois anos teríamos um rio totalmente recuperado em termos de qualidade. No caso do Rio Gravataí, é muito difícil recuperamos a vazão e a forma como o movimento dele se dava em função de que ele foi drenado na década de 1960 e 1970, pois tentaram realizar um projeto irrealizável, que seria criar um canal de navegação de Porto Alegre até Torres. Então, essa recuperação é possível, sim, do ponto de vista da qualidade.
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Mais um rio em agonia no Rio Grande do Sul. Entrevista especial com Carlos Marchiori - Instituto Humanitas Unisinos - IHU