27 Janeiro 2008
É evidente, nos últimos anos, a crise que assola uma das áreas mais importantes da sociedade: a Educação. Mas o que aconteceu ao longo da história para que o ensino sofresse tantas alterações negativas, sofrendo, em muitos casos, um descaso imenso? Em resposta a esse questionamento, o Prof. Dr. Alfredo Veiga-Neto explica que a “crise que se sente na educação é a manifestação de uma crise maior, mais ampla: a grande crise de esgotamento de valores, das formas de pensar e estar no mundo que foram constituídas na modernidade”.
Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, o pesquisador reitera, seguindo os ensinamentos de Hannah Arendt, que “é justamente nos momentos de crise que podemos intervir mais efetivamente no sentido de mudar o rumo das coisas, de tentar mudar o mundo”. Entretanto, lamenta: “são poucas as transformações que estão ocorrendo, de fato, no discurso pedagógico sobre essas questões”.
Sobre as mudanças sugeridas no campo da Educação e a implementação do Ensino a Distância, ele se demonstra favorável e, argumenta: “entendendo-a como um conjunto de práticas pedagógicas que colocam em funcionamento novos dispositivos de subjetivação e de organização da vida social ou ressignificam, amplificam e potencializam antigos dispositivos, mobilizando-os no sentido da produção de novas subjetividades e novas maneiras de estar no mundo”.
Alfredo Veiga-Neto é mestre em Genética e doutor em Educação. Atualmente, é docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra) e professor convidado do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). De sua produção bibliográfica, destacamos as seguintes obras, por ele organizadas: Crítica pos-estructuralista y educación (Barcelona: Laertes, 1997), Imagens de Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzsceanas (Rio de Janeiro: DP&A, 2002), Foucault & a educação (Belo Horizonte: Autêntica, 2005) e Figuras de Foucault (Belo Horizonte: Autêntica, 2006).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é o papel disciplinar que a escola moderna desempenhou na constituição do sujeito, da sociedade e do estado modernos?
Alfredo Veiga-Neto - A escola moderna funcionou, nos últimos quatro séculos, como uma grande maquinaria encarregada de “fabricar” sujeitos disciplinares, para uma sociedade também disciplinar. Veja que não estou usando o adjetivo disciplinada, mas sim disciplinar, isso é, sujeitos para uma sociedade cujo funcionamento centra-se na disciplina (dos espaços e dos tempos usados e vividos pelos corpos humanos). Ambos estão centrados na - ou pelo menos pressupõe a - disciplina como atributo mais do que importante para a vida em comum.
IHU On-Line - O senhor analisa e problematiza as práticas pedagógicas que têm se articulado para estabelecer a disciplinariedade tanto como um "problema" epistemológico, quanto como um "problema" comportamental pedagógico a serem equacionados e resolvidos. Quais são as suas considerações sobre esse tema, atualmente?
Alfredo Veiga-Neto - Continuo insistindo no sentido de que sob uma mesma denominação, uma mesma palavra - disciplina -, estamos nos referindo tanto ao modo como se organizam os saberes quanto ao modo como se organizam as ações dos nossos corpos. Assim, tanto a Matemática, a Biologia e a Sociologia são disciplinas quanto o uso do espaço e do tempo, dessa ou daquela maneira, é uma maneira de ter ou não ter disciplina.
Além disso, quando se fala em “problema”, não se trata propriamente de pensar em algo, em algum distúrbio, que tenha de ser resolvido, em alguma situação controversa etc. Não se trata nem de santificar nem de exorcizar a disciplinaridade, mas, sim, de procurar entendê-la naquilo que ela tem de produtivo, como eficiente organizadora da vida coletiva. Assim, trata-se mais de equacionar o “problema” do que propriamente de resolvê-lo.
IHU On-Line - Por que razões o senhor afirma que o currículo é o mais eficiente dispositivo capaz de instaurar na modernidade, a sociedade disciplinar?
Alfredo Veiga-Neto - Pelo fato de que o currículo é aquele artefato cultural e pedagógico que foi criado para regulamentar e regular tudo o que acontece na educação escolarizada e pelo fato de que, desde a sua invenção, foi conferido a ele uma estrutura disciplinar.
IHU On-Line - Com a era da informação, quais as implicações da educação à distância? Há diferença na constituição dos sujeitos que assistem aulas presenciais, baseadas num currículo especifico e aqueles que participam das aulas à distância? Os diferentes métodos de ensino geram também novas relações pessoais?
Alfredo Veiga-Neto - Essa é uma questão extremamente atual, interessante e complexa. Muito se tem escrito e dito sobre a Educação a Distância (EAD). As duas posições mais comuns sobre o assunto são ocupadas por aqueles que, de um lado, vêm nela a fonte da solução para os problemas educacionais que nos afligem e, do outro lado, vêm a EAD como a fonte de todo mal pedagógico. Prefiro adotar uma posição que se coloca numa outra dimensão, que não entra propriamente nesse embate, não assume tal polarização. Ao invés disso, prefiro seguir os autores e especialistas - cujo número felizmente parece estar aumentando - que se ocupam em problematizar a EAD, entendendo-a como um conjunto de práticas pedagógicas que colocam em funcionamento novos dispositivos de subjetivação e de organização da vida social ou ressignificam, amplificam e potencializam antigos dispositivos, mobilizando-os no sentido da produção de novas subjetividades e novas maneiras de estar no mundo. Para tratar desse assunto, prefiro, portanto, partir de perspectivas analíticas e problematizadoras e não de juízos de valor tomados por antecipação. Isso não significa, é claro, que tais análises e problematizações não cheguem, no seu transcurso, a determinados juízos acerca da EAD. O que me parece importante, no entanto, é não estatuir, de saída, o que é mesmo a educação, como deve ser mesmo a escola para, a partir daí, examinar a EAD.
Para responder à última frase da tua pergunta: não tenho dúvidas de que diferentes métodos de ensino - seja na Educação Presencial, seja na EAD - geram diferentes subjetividades e, conseqüentemente, diferentes relações pessoais. O “tamanho” dessas diferenças dependerá do “tamanho” das diferenças entre os métodos considerados.
IHU On-Line - A crise da modernidade tem influenciado na educação e no ensino? Que pontos relevantes o senhor destacaria sobre essa temática?
Alfredo Veiga-Neto - Esta é uma questão bastante ampla e complexa. Agora mesmo, terminei dois textos que tratam pormenorizadamente disso.
Não há como desenvolver isso, no âmbito desta entrevista. Mas posso adiantar que a crise que se sente na educação é a manifestação de uma crise maior, mais ampla: a grande crise de esgotamento dos valores, das formas de pensar e de estar no mundo que foram constituídas na modernidade.
Que tem a Educação a ver com isso? Nós, educadores, temos de ser sensíveis às mudanças que estão se operando no mundo da vida, de modo a estarmos preparados para as mudanças que estão ocorrendo. Como nos ensinou Hannah Arendt, é justamente nos momentos de crise que podemos intervir mais efetivamente no sentido de mudar o rumo das coisas, de tentar mudar o mundo.
IHU On-Line - Traçando um paralelo, qual o papel desempenhado pela educação na transição do moderno para o pós-moderno?
Alfredo Veiga-Neto - Estamos vivendo hoje a maior crise da modernidade. Não se pode esquecer que a modernidade se plasmou no seio de uma profunda crise européia, com o declínio do sistema feudal e o fim da Idade Média. E, ao longo dos últimos cinco séculos, as crises foram a grande marca da modernidade; mas, dentre as muitas outras já acontecidas, a crise atual nos parece a mais perturbadora e radical. Ela é tão grande que muitos autores têm afirmado que estamos vivendo a transição para o pós-moderno; outros, que já estamos na pós-modernidade; outros, ainda, que estamos numa hipermodernidade. Por si só, essa já é uma discussão importante e muito interessante.
Em termos bem resumidos, pode-se dizer que a Educação, ao mesmo tempo em que sofre as conseqüências desta grande crise, contribui para que ela aconteça e vá adiante. A educação escolar - e, em termos gerais, toda e qualquer forma de educação - mantém (para usar uma expressão deleuziana) “relações de imanência” com a transição do moderno para o pós-moderno. Em outras palavras, educação e crise são, reciprocamente, causa e conseqüência uma da outra.
IHU On-Line - Quais seriam, na pós-modernidade, os novos dispositivos disciplinares e de controle, dentro e fora da escola?
Alfredo Veiga-Neto - Essa é outra questão muito interessante. Mas também é difícil. Para encaminhar algumas respostas, eu e o grupo de pesquisa que eu coordeno na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e na Universidade Luterna do Brasil (Ulbra) estamos desenvolvendo dois projetos de pesquisa - distribuídos em duas dissertações de mestrado e três teses de doutorado. Isso dá uma idéia da importância que dou ao assunto e do “tamanho” das dificuldades que se tem pela frente.
Já mostramos, entre outras coisas, que os dispositivos disciplinares e os de controle são diferentes, mas não são incompatíveis entre si. Além disso, a vigilância - um procedimento no qual se baseou e continua se baseando a maioria das práticas pedagógicas disciplinares - é completamente diferente do controle, ainda que possam se articular e se potencializar mutuamente. Disciplina e controle são diferentes, o que permitiu que Foucault, por exemplo, anunciasse que as sociedades contemporâneas estão deixando de ser disciplinares e estão se transformando em sociedades de controle; essa é uma idéia que, posteriormente, Deleuze desenvolveu de maneira engenhosa.
Mostramos, também, que violência e poder, duas formas básicas de se exercer a dominação, estão em âmbitos epistemológicos distintos. Nesse sentido, seguimos a idéia proposta por Hannah Arendt, quando ela nos diz que todo processo educativo é, também, um processo de dominação. Isso não significa um “demérito” para a Educação, mas sim o reconhecimento da função da Educação como o processo de conduzir os recém-chegados - sejam eles os estrangeiros, os recém-nascidos etc. - ao interior de uma cultura que para eles é estranha. Dominação é um termo técnico entendido aqui como a ação de trazer os outros para um determinado domínio, para um determinado domicílio, para um domo. Repare que a palavra domesticar pertence a esse mesmo grupo semântico.
As implicações disso tudo para a Educação são evidentes. Em termos teóricos, estamos afinando e afiando nossas ferramentas conceituais de modo a compreender com mais detalhe e propriedade as práticas sociais e pedagógicas, dentro da escola ou fora dela. Tais ferramentas têm nos permitido, também, ressignificar, dar um novo sentido, para aquilo que se costuma chamar de falta de disciplina ou indisciplina na escola.
IHU On-Line - Quais são as transformações que vêm ocorrendo no discurso pedagógico, no que se refere à disciplina e ao controle?
Alfredo Veiga-Neto - Penso que, infelizmente, o discurso pedagógico é, de um modo geral, um tanto conservador, um tanto apegado às metanarrativas iluministas e kantianas, um tanto tributário dos mitos judaico-cristãos da Educação como redenção e salvação, um tanto carregado dos excessos do idealismo. Não se trata de dizer que a Educação não possa salvar, mas sim que partir sempre de tais metanarrativas e mitos mais obscurecem do que mostram o que está acontecendo à nossa volta.
Reconheço que tocar nesse assunto é mexer num vespeiro. Infelizmente, a maioria não está acostumada à análise e à critica genealógica, a uma problematização que procura se colocar para além dos enquadramentos que herdamos desse tipo de entendimento plasmado pelo idealismo e pelo iluminismo e que foi “injetado” no pensamento pedagógico há vários séculos.
Considero, enfim, que são poucas as transformações que estão ocorrendo, de fato, no discurso pedagógico sobre essas questões.
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"Educação e crise são, reciprocamente, causa e conseqüência uma da outra". Entrevista especial com Alfredo Veiga-Neto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU