11 Fevereiro 2008
Não há como separar os conceitos que regem a Bioética das crenças e religiões predominantes na sociedade. Mudar essa posição é quase impossível e, para o pastor Silvio Rocha, desnecessário. Segundo ele, o debate religioso deve estar integrado aos estudos da Bioética, não só porque as religiões influenciam diretamente nos parâmetros da sociedade, mas porque essa temática ajuda na permanência de determinados valores. Para ilustrar seu ponto de vista, Rocha lembra as discussões em torno da utilização de embriões nas pesquisas com células-tronco. Nesse debate, argumenta, “a posição religiosa foi importante para a discussão da Bioética, porque tem se criado novos meios de conseguir células-tronco, que não por meio de embriões”. Ele concedeu entrevista com exclusividade à IHU On-Line, por telefone.
Silvio Rocha é teólogo. Atualmente, atua como pastor da Igreja de Nazareno e desenvolve trabalhos de auxílio espiritual no Hospital de Clínicas da Unicamp.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O conceito de Bioética é considerado plural, interdisciplinar, responsável e com alto nível de senso de humanidade. De que forma o sistema de crenças de uma pessoa está inserido no conceito de Bioética?
Silvio Rocha – Bioética é um tema plural, discutido academicamente nas universidades, nos comitês de ética, de pesquisa. Mas, nesse contexto plural da Bioética, a questão espiritual ou religiosa não pode ficar de fora, porque muito das questões éticas e bioéticas tangem indiretamente ou diretamente à questão da espiritualidade das pessoas. Os valores espirituais também têm relação com a moral e, claro, com a ética dos seres humanos. Então, não há como deixar essas questões fora da discussão de Bioética.
Esse é um tema novo ainda, que tem sido discutido mais abertamente no Brasil nos últimos dez anos. Hoje, a Bioética tem se tornado uma discussão imperiosa, dado o avanço da ciência em várias áreas. Entretanto, nós ainda estamos desenvolvendo uma visão de Bioética brasileira, pois até pouco tempo tínhamos uma percepção importada dos países do Norte e da Europa. Nos comitês de Bioética, percebo que os debates em torno dela estão avançando, interessando a mais pessoas, que se habilitam para uma discussão cada vez mais séria e profunda.
IHU On-Line – De que forma a espiritualidade afeta percepção e leitura da Bioética?
Silvio Rocha – A Bioética procura captar os valores da sociedade em que ela está inserida. No caso do Brasil, que é um país de maioria cristã, os valores morais são coerentes com uma visão judaico-cristã da nossa cultura. Então, é claro que os princípios que nós defendemos dentro da Bioética são coerentes com os valores legais e espirituais existentes na nossa cultura judaico-cristã. Nessa perspectiva, a Bioética sempre irá trabalhar em cima de valores que são defendidos de maneira geral pela sociedade, como o direito à vida e à autonomia do ser humano, por exemplo. Então, obviamente, há uma influência da religião, pois os conceitos que regem nossa moral foram fundamentados basicamente, desde o começo da história, pela religião.
IHU On-Line - Muitas vezes os pacientes tomam decisões com base em questões religiosas e, por pudor ou temor, não comunicam o real motivo para os médicos que os atendem. Esses profissionais estão preparados para compreender tais decisões e orientar o paciente sobre qual seria a melhor escolha, respeitando sua fé?
Silvio Rocha – Isso está começando a ser feito. Essa iniciativa ainda é nova dentro do contexto médico. A Faculdade de Medicina da Universidade de Campinas (Unicamp), por exemplo, instituiu há dois anos o curso de Bioética dentro da grade curricular da Medicina, que justamente ajuda os alunos a debater, discutir e entender essas questões. Inclusive, o padre Norberto Bonfim e eu já ministramos algumas palestras aos estudantes, para que eles possam compreender esse pensamento religioso e entender o porquê uma pessoa não deseja doar ou receber sangue. A idéia dessa integração entre religião e medicina é fazer com que o médico respeite o paciente, saiba conversar com ele, estabelecendo um diálogo mais próximo, entendendo, assim, um pouco melhor seu o universo religioso.
Quando o médico não tem mais subsídio para dialogar, ele pede, muitas vezes, para a família conversar com o paciente, ou até mesmo para nós, da área de capelânia.
IHU On-Line - O paciente que está espiritualmente bem é menos sujeito à depressão e à dor?
Silvio Rocha – O paciente pode estar bem clinicamente, ao mesmo tempo em que enfrenta problemas psicológicos. Na nossa prática, nós percebemos que nem sempre a enfermidade e a patologia que traz o paciente ao hospital é o seu maior problema. Geralmente, a patologia é apenas uma conseqüência de problemas mais graves, de ordem pessoal, familiar, que ele traz. Então, um paciente clinicamente estável nem sempre está bem de maneira geral. Nós sempre analisamos o paciente de uma forma global, integral. A equipe multidisciplinar, aqui, existe justamente para isso, para dar um suporte mais amplo ao paciente e ajudá-lo não só na área clínica.
IHU On-Line – Como essa relação entre Bioética e espiritualidade entende assuntos como células-tronco, eutanásia e aborto?
Silvio Rocha – Na área de saúde, o relacionamento é bom, porque a equipe é multidisciplinar, composta por profissionais de diferentes áreas. Assim, a conversa é sempre aberta.
A discussão de células-tronco esteve sempre presente por conta dos embriões. Religiosamente, existe uma posição contrária ao uso de embriões para pesquisas, pois se entende que embriões são seres vivos. Esta discussão foi tema de debate numa reunião do comitê de Bioética. Avaliamos que essa posição religiosa foi importante para a discussão da Bioética, porque tem se criado novos meios de conseguir células-tronco, que não por meio dos embriões. Se não houvesse essas discussões, talvez os estudos com células-tronco embrionárias persistissem com entusiasmo, até hoje. Percebo que houve um avanço da ciência nessa área, justamente em função desses debates. Assim, a discussão da Bioética é útil não só do ponto de vista religioso de defesa da vida, mas para avaliar as ações da ciência. Obviamente, esse debate não tem como objetivo atrapalhar a ciência, mas enriquecê-la.
IHU On-Line – O senhor e o padre Norberto Bonfim trabalham juntos, tratam das mesmas pessoas, mas têm religiões diferentes. O quanto isso é benéfico para os pacientes?
Silvio Rocha – Nós trabalhamos com pessoas de diversas religiões. Majoritariamente, são católicos e evangélicos de várias denominações, e até pessoas de religiões não-cristãs. Mas nós atendemos a todos que podemos ajudar, sem necessariamente realizar ritos religiosos. Se os pacientes pedem algum sacramento ou algo específico da sua fé, isso é providenciado. Nós temos ligações com outros grupos religiosos que têm a liberdade de vir assistir os membros de suas religiões, sem nenhum problema.
IHU On-Line - Que diferença o senhor e o padre Norberto Bonfim estão fazendo no mundo espiritual?
Silvio Rocha – A nossa presença visa a ser um sinal de luz, de conforto, de esperança dentro do ambiente em que trabalhamos na área da saúde, do sofrimento, da dor. Pretendemos, com esse trabalho, estabelecer uma presença palpável da graça de Deus nesse lugar. Nós não nos consideramos simples ministros religiosos. Temos a missão de estar junto dessas pessoas e de fato ajudá-las, seja apenas ouvindo-as quando elas necessitam ou ministrando um sacramento. Tentamos fazer tudo que está ao nosso alcance para ajudar e minimizar a dor e o sofrimento dos pacientes. Nós estamos aqui para iluminar esse lugar de dor, de trevas. Foi assim que Cristo fez, nos ensinou, e é para isso que estamos aqui.
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Bioética e religião: integradas na construção do ser humano. Entrevista especial com Silvio Rocha - Instituto Humanitas Unisinos - IHU