27 Julho 2007
Analisar a Amazônia e os índios que lá habitavam é o trabalho central na pesquisa intitulada “Os índios da Amazônia no Diário do Padre Fritz”, desenvolvida pela professora Maria Cristina Martins. O jovem missionário alemão Samuel Fritz chegou em 1684 à Real Audiência de Quito para prestar serviços no “Rio Marañon”. Entre 1686 e 1688, viajou e explorou o Alto-Amazonas num trecho de mais de mil quilômetros. Em 1689, ele recebeu ordem para descer o “Marañon”, desde São Joaquim de Omáguas até a província do Grão-Pará, realizando observações e estudos. Essa viagem durou três anos e resultou num Diário, no qual Padre Fritz registrou os contatos mantidos com as diferentes tribos indígenas que visitou. Samuel Fritz trabalhou durante 42 anos na Amazônia, percorrendo inúmeras vezes o Grande Rio, de um ponto a outro, catequizando os Omáguas, Yurimáguas, Aisuaris e Ibanomas.
Assim, a IHU On-Line, entrevistou, por e-mail, a professora Maria Cristina, a fim de que ela relatasse o desenvolvimento de seu trabalho e as questões sobre Padre Samuel Fritz que ainda devem ser discutidas. Durante a entrevista, Maria Cristina, fala sobre a importância de Padre Fritz para a Igreja Católica contemporânea e do papel do jesuíta para a história do Brasil.
Maria Cristina Bohn Martins é graduada em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, onde também desenvolveu, na mesma área, seu mestrado. Durante o doutorado, obtido na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), pesquisou sobre as perdas, permanências e recriação da festa guarani nas reduções jesuíticas. Atualmente, é professora titular da Unisinos.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é a importância hoje da figura de Padre Fritz para a Igreja Católica, no que diz respeito à catequização dos índios?
Maria Cristina Martins - Padre Fritz fez parte de um grande grupo de missionários de diferentes Ordens Religiosas que, na Época Moderna, tomaram para si a tarefa de expansão da religião católica em várias partes do mundo, no Oriente e no Ocidente. No que se refere à América em especial, a tarefa de evangelização dos nativos foi compromisso assumido pelas Coroas Ibéricas de forma a legitimar seus direitos aos territórios que passavam a colonizar. Este compromisso e este processo envolveram práticas e normas, por vezes muito diferentes e até ambíguas. Serviu, assim, para sustentar empresas de captura e escravização dos índios com base no que se chamava "Guerra Justa", empreendida contra aqueles que se mostravam reticentes em aceitar a catequese.
Por outro ângulo, colocou em ação um processo de profunda transformação das culturas indígenas, tanto em seu mundo simbólico, quanto social e material. Finalmente, envolveu também o trabalho corajoso de um grande número de homens da Igreja em defesa dos índios. Isto é, na América Espanhola, os religiosos, em especial os da Companhia de Jesus (1), atuaram no sentido de minimizar ou restringir o acesso dos colonos ao trabalho servil dos índios. Atuaram nisto concretamente como missionários, mas também politicamente, denunciando a brutalidade dos conquistadores [como foi o caso dos dominicanos Montesinos e Las Casas], ou a ganância dos "encomendeiros" e "mamelucos" paulistas [como os jesuítas Antonio Ruiz de Montoya (2) e Samuel Fritz], por exemplo. Em nome da sua "civilização e cristianização", cometeram excessos e arbitrariedades, julgaram e puniram, "desterritorializaram" e "reterritorializaram", mas também ampararam, curaram, e protegeram, nos limites de sua consciência, que é a de missionários dos séculos XVI, XVII ou XVIII. Acho que se há algo em que esta experiência passada pode servir para hoje diz respeito exatamente a isto: aos limites da consciência que hoje, sem dúvida, são outros que não aqueles da época de Samuel Fritz.
IHU On-Line - Para a história do Brasil, qual foi a relevância de analisar os textos escritos por Padre Samuel Fritz em seu diário? Seus textos trazem algo de novo para nossa história?
Maria Cristina Martins - A importância do Diário (ou do Mapa) do Padre Fritz é amplamente reconhecida pelos historiadores há muito tempo. O que muda são as questões que os historiadores colocam aos documentos, bem como os instrumentos de crítica que estão a sua disposição.
IHU On-Line - O que podes destacar nos textos escritos por Samuel Fritz em seu diário?
Maria Cristina Martins - O texto é muito rico para acompanhar a dinâmica da penetração ibérica, suas disputas e tensões, nestas áreas do continente. É muito importante para o exame destas Missões de Maynas, pouco estudadas aqui no Sul em favor daquelas que se desenvolveram no Prata. Serve, ainda, para questionarmos o que Mark Restall chamou de "mito da conclusão" da Conquista. O que vemos ali é que, em pleno século XVIII, ela ainda estava em curso, havendo grupos que não tinham sido submetidos, muito menos ocidentalizados.
IHU On-Line - Renan Freitas Pinto afirma que "quando se refere aos colonos e autoridades portugueses, utiliza termos quase sempre negativos, buscando caracterizar a presença lusitana no vale como uma ameaça ao trabalho da civilização e cristianização das populações nativas". Como a senhora analisa a luta simbólica entre espanhóis e portugueses a partir das palavras de Padre Fritz?
Maria Cristina Martins - No texto do Padre Fritz, como depois, naqueles de Alonso de Rojas (3) e Cristobal de Acuna (4), a disputa no plano simbólico é muito clara. Neles, os jesuítas representariam a face protetora da colonização, defensores dos índios diante da ganância e da falta de espírito evangélico dos luso-brasileiros, apresentados como predadores de índios para serem escravizados. Estas críticas se estendem, inclusive, no caso de Fritz, para padres de outras Ordens que seguiam os portugueses. No plano das práticas, observamos ações, de um e de outro lado, que envolviam a tentativa dos jesuítas em alertar as autoridades hispânicas para a necessidade de contenção dos portugueses, que, na prática, alargavam as fronteiras do território luso-brasileiros.
Notas:
(1) A Companhia de Jesus, cujos membros são conhecidos como Jesuítas, é uma ordem religiosa fundada em 1534 por um grupo de estudantes da Universidade de Paris, liderados pelo basco Íñigo López de Loyola (Santo Inácio de Loyola).
(2) Antonio Ruiz de Montoya foi o padre jesuíta encarregado de se queixar ao rei de Portugal dos bandeirantes paulistas. Em novembro de 1638, chegou ao Rio de Janeiro, vindo do Paraguai. Iria a Madri se queixar das incursões dos bandeirantes.
(3) Padre jesuíta que nomeou o Rio Amazonas.
(4) Cristóbal de Acuña foi um padre jesuíta espanhol. Escreveu, em 1641, a obra intitulada "Relación del Descubrimiento del rio de las Amazonas", que fornece detalhes preciosos sobre a viagem de Pedro Teixeira ao rio Amazonas. A obra teve a sua primeira edição publicada em Madrid, pela Imprensa del Reyno.
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A Amazônia e seus índios no Diário de Padre Fritz. Entrevista especial com Maria Cristina Bohn Martins - Instituto Humanitas Unisinos - IHU