Brasil continua a vender agrotóxico banido nos EUA e que pode diminuir QI de crianças

Foto: Pixahive

22 Outubro 2021

 

Em agosto deste ano, os Estados Unidos baniram o uso do inseticida clorpirifós depois que estudos apontaram problemas causados por este agrotóxico à saúde humana, entre eles a queda do QI de crianças. Em menos de um ano, o mesmo produto já havia sido banido pela União Europeia e Argentina.

 

A reportagem é de Pedro Grigori, publicada pelo projeto Por trás do alimento, uma parceria entre a Agência Pública e a Repórter Brasil, 19-10-2021.

 

No Brasil, contudo, o produto segue entre os cinco mais utilizados, com mais de 10 mil toneladas vendidas em 2019, segundo dados do Ibama. O clorpirifós é um dos campeões, ainda, na detecção de quantidades irregulares nos testes feitos em supermercados e na água que abastece centenas de municípios.

 

Apesar das evidências internacionais, o brasileiro deve seguir consumindo esse inseticida por muitos anos. Até o momento, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) não iniciou os estudos de reavaliação do registro do Clorpirifós. Esse é o principal mecanismo que pode banir um agrotóxico no país. Após iniciado, o processo pode perdurar por mais de uma década. A reavaliação do Glifosato, por exemplo, começou em 2008 e só foi concluída em 2020.

 

Perigo para fetos, crianças e trabalhadores rurais

 

Poucos brasileiros já devem ter ouvido falar do inseticida clorpirifós, mas é bem possível que uma grande parcela da população já tenha consumido algum alimento que contenha este agrotóxico. O produto é usado em diversas plantações, como algodão, batata, café, cevada, citros, feijão, maçã, milho, pastagens, soja, sorgo e trigo. Faz parte da classe dos organofosforados, um grupo químico que causa envenenamento por colapso do sistema nervoso dos insetos. 

 

Os pontos principais para a proibição nos Estados Unidos foram estudos que identificaram que o clorpirifós está associado a potenciais efeitos neurológicos em crianças. 

 

Um estudo de 2012 da Universidade de Columbia, analisou um grupo de 40 crianças de até 11 anos que foram expostas ao clorpirifós durante a gravidez. Quanto maior foi o nível de exposição, menor era o tamanho do córtex cerebral delas. O estudo identificou que quando essas crianças chegaram aos três anos de idade, elas passaram a apresentar uma série de deficiências motoras e cognitivas, sendo a mais comum o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Ao chegarem aos sete anos, constatou-se a redução do QI. 

 

A toxicologista e pesquisadora da Fiocruz Karen Friedrich explica que os efeitos tóxicos do clorpirifós vêm sendo estudados há décadas, e os alertas sobre os riscos não são mais uma novidade. “Os organofosforados têm um efeito bastante conhecido sobre o sistema nervoso, levando tanto a efeitos agudos, sentindo logo após a utilização e que causam consequências aos trabalhadores rurais, quanto consequências que aparecem a longo prazo”, diz. “Também já temos estudos sobre os danos do clorpirifós sobre o sistema hormonal, e de problemas no desenvolvimento de crianças que são expostas a essa substância quando ainda estão no útero ou no começo da vida”, completa. 

 

No Brasil, existem pelo menos 26 marcas comerciais de agrotóxicos formulados a partir do Clorpirifós. De acordo com a plataforma Agrofit, do Ministério da Agricultura, empresas como a Ouro Fino, FMC, Tradecorp, Nortox, Rainbow, Adama, Dow Agrosciences e Albaugh têm registros para vender o produto no país.

 

 

Mesmo com proibições ao redor do mundo, Clorpirifós continua na lista dos mais vendidos no Brasil (Foto: Divulgação/Villa Verde Agro)

 

Segundo o administrador da agência ambiental americana (Envirnmental Protection Agency), Michael Regan,  a decisão de banir o clorpirifós segue a ciência e “colocará a saúde e a segurança em primeiro lugar”. “Hoje a EPA está dando um passo atrasado para proteger a saúde pública. Acabar com o uso de clorpirifós nos alimentos ajudará a garantir que as crianças, os trabalhadores agrícolas e todas as pessoas fiquem protegidos das consequências potencialmente perigosas deste pesticida”, afirmou em um comunicado à imprensa. 

 

A primeira empresa a registrar o Clorpirifós foi a Dow Chemical Company em 1965. Após uma série de fusões, a Dow chama-se hoje Corteva Agriscience. Em fevereiro de 2020, a empresa decidiu que retiraria inseticidas formulados à base de Clorpirifós do mercado estadunidense, alegando baixa comercialização das marcas. Mesmo assim, a companhia defendeu a segurança do produto. “Embora a Corteva Agriscience não produza mais o clorpirifós, a empresa defende a segurança do produto e seu valor para os produtores”, disse em nota à Agência Pública e Repórter Brasil

 

Sobre a proibição definida pela agência ambiental, a empresa diz que a ação remove uma ferramenta importante para os agricultores. “Enquanto a Corteva continua a revisar o pedido, entendemos que a justificativa usada pela Agência é inconsistente com o banco de dados completo e robusto de mais de 4 mil estudos e relatórios que examinaram o produto em termos de saúde, segurança e meio ambiente”, pontuou em nota. A Corteva também afirmou que não vende mais produtos à base de clorpirifós no Brasil.

 

Anvisa não vai priorizar reavaliação

 

Em nota, a Anvisa respondeu que as proibições em outros países são critérios considerados na construção da lista de prioridades para a reavaliação no Brasil. Mas que, “atualmente, com as evidências técnicas disponíveis não se faz pertinente uma nova priorização” do clorpirifós na lista de reavaliação. A agência afirma também que a reavaliação do produto, que ocupa a quarta posição na lista de prioridades, já está sendo iniciada, de forma que o clorpirifós deve ser submetido em breve ao processo. Mas não há data prevista. 

 

O pesquisador da Fiocruz e da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Luiz Cláudio Meirelles, que foi gerente-geral da Anvisa, conta que quando trabalhou na agência, em 2008, alguns organofosforados foram reavaliados. “O grupo dos organofosforados, em geral, apresentam alta toxicidade. São bastante neurotóxicos, além de terem efeitos crônicos a longo prazo, por isso, durante a primeira década dos anos 2000, se discutiu bastante o banimento dessas substâncias”, diz.

 

Ele recorda que, há vinte anos, o clorpirifós já estava na fila para ser reavaliado, pois naquela época já se tinha evidências semelhantes às que embasaram as decisões norte-americanas de hoje. “A agência reguladora dos Estados Unidos começou a questionar o clorpirifós em 2006, em uma decisão que se arrastou até algumas semanas atrás”, completa Luiz Cláudio.

 

Os agrotóxicos organofosforados são muito utilizados no Brasil e no mundo, e por isso recebem apoio da indústria para mantê-los no mercado. “A ideia é que o Brasil fosse mais ágil nas reavaliações, mas é um debate bastante difícil com o setor regulado. Na época do metamidofós enfrentamos bastante pressão, foi um banimento muito discutido, com recomendações das empresas para que o produto fosse mantido no mercado, algo semelhante ao que ocorreu recentemente com o paraquate. O metamidofós foi banido em 2011, e a partir daí aumentou o uso do clorpirifós, que foi usado para substitui-lo”, conta Luiz.

 

 

Gráfico: Agência Pública/Bruno Fonseca)

 

 

Sobre a demora no processo de reavaliação, Luiz Cláudio opina que o Brasil poderia adotar proibições de agências reguladoras parceiras. No começo de 2020, o Ministério da Agricultura tentou uma medida que percorria a lógica inversa: publicou uma portaria que autorizava a aprovação tácita de agrotóxicos — quando um produto não fosse aprovado em até 60 dias, ele receberia a liberação automática caso já fosse liberado por reconhecidas agências reguladoras internacionais. A portaria foi derrubada pelo Supremo Tribunal Federal. 

 

“Eles apoiam a ideia para liberações, mas não aprovam para banimentos, pois sabem que grande parte dos agrotóxicos mais vendidos no Brasil já são proibidos internacionalmente. E a saúde do povo do brasileiro não é superior a do europeu ou do norte-americano, ao contrário, nosso país vive uma vulnerabilidade social muito maior que esses países”, explica.

 

Grande persistência no meio ambiente

 

Além de causar problemas de saúde, o clorpirifós é uma substância que demora décadas para ser degradada no meio ambiente. Por isso, o produto foi adicionado à lista da Rede de Ação contra Agrotóxicos (PAN, na sigla em inglês) com a classificação de Altamente Perigoso (highly hazardous pesticides, na sigla em inglês, conhecidos como HHPs).

 

Exames laboratoriais feitos pelo Governo Federal comprovaram a persistência da substância. O clorpirifós foi um dos destaques negativos da última edição do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (Para) feito pela Anvisa. A agência fez análises laboratoriais em 4.616 amostras de 14 alimentos de origem vegetal vendidos em supermercados e feiras do Brasil

 

 

Foram encontrados resíduos de clorpirifós em 10% das amostras de tomate analisadas pelo Para da Anvisa. O uso desse inseticida não é permitido para culturas de tomate (Foto: Pixabay)

 

Embora o clorpirifós tenha sido o 13º agrotóxico mais identificado como um todo, ele foi o segundo que mais apareceu em situação irregular. A Anvisa identificou resíduos do produto em 198 amostras de alimentos para os quais seu uso nunca foi autorizado. Entre eles, o inseticida apareceu em goiabas, laranjas, pimentões, tomates e outros. 

 

Foram encontrados resíduos de clorpirifós em 18% das amostras de pimentão analisadas pelo Para da Anvisa. O uso desse inseticida também não é permitido para culturas de pimentão (Foto: Pixabay)

 

A pesquisadora da Fiocruz, Karen Friedrich explica que uma das principais explicações para isso é a questão econômica. “O clorpirifós é uma molécula mais antiga, que já perdeu a patente e é mais barata. Geralmente esses produtos acabam sendo utilizados em culturas que não são autorizadas por questões econômicas. Isso demanda uma estrutura de estado mais fortalecida e que possa fiscalizar e dar orientações técnicas do uso de forma geral”, diz. 

 

A Anvisa informou à reportagem que a partir do resultado das análises do clorpirifós na última edição do programa que testa os alimentos, a agência realizou a avaliação do risco dietético nos alimentos infectados e não observou risco crônico ou agudo para a saúde dos consumidores. “Todavia, ressalta-se que a partir dos resultados da próxima reavaliação toxicológica, o cenário atual do ingrediente em tela poderá ser alterado”, disse em nota. 

 

E não é apenas em alimentos que o clorpirifós foi detectado, ele apareceu também no mapa da água. Trata-se de uma investigação conjunta da Repórter Brasil, Agência Pública e da organização suíça Public Eye que obteve dados do Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (Sisagua) do Ministério da Saúde e descobriu uma mistura de diferentes agrotóxicos na água que abastece um em cada quatro cidades do Brasil entre 2014 e 2017.

 

O clorpirifós foi identificado em 91% das amostras analisadas — 24.904 detecções de 27.493 testes feitos em todo o país. Trata-se do oitavo agrotóxico mais identificado na água que abastece os municípios brasileiros. 

 

Karen da Fiocruz teme que as proibições no exterior façam o Brasil aumentar ainda mais o uso do clorpirifós, como acontece com diversas outras substâncias que são banidas na Europa, e acabam sendo descarregadas no Brasil por multinacionais. Além disso, assim como ocorreu com o Paraquate, os agricultores podem criar estoques do produto para continuar usando após a proibição. 

 

A pesquisadora critica também a falta de transparência e dados mais específicos sobre a comercialização de agrotóxicos como o clorpirifós no Brasil, trabalho que atualmente é realizado pelo Ibama. “Seria importante termos dados de comercialização dos agrotóxicos por município e por cultura. Com isso, o Ministério Público poderia fazer ações de vigilância dessas formulações. A comunidade científica poderia realizar pesquisas independentes para identificar, por exemplo, a quantidade do uso de um agrotóxico como o clorpirifós em uma região que apresenta um alto número de casos de doenças que a literatura científica já relacionou com essa substância”, explica.

 

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