Breves do Facebook

Foto: Pedro Fernandes - Flickr/CC

14 Outubro 2021

 

Rudá Guedes Ricci

A encruzilhada da esquerda brasileira

Por Rudá Ricci

Lula estaria eleito se a eleição fosse hoje. O cenário é cada vez mais favorável: polarização consolidada com Bolsonaro, com queda de popularidade do presidente atual.

O cenário econômico é tão desastroso que joga por terra até mesmo as esperanças bolsonaristas e empresariais da projeção do final dos riscos maiores da pandemia com a vacinação completa de quase metade da população brasileira.

Na outra ponta, a terceira via parece sufocada pela movimentação de Lula e pela polarização. A cada pesquisa, a terceira via aparece mais nanica.

Quanto à esquerda, bem, a esquerda precisa começar a planejar seus passos a partir da montagem de cenários, sendo que o mais sólido no momento é a vitória de Lula. Neste momento, parece aquele jogador que não pega na bola.

Se Lula caminha para apresentar uma candidatura de centro, assumindo altos riscos em relação à composição de seu governo, o papel da esquerda brasileira seria justamente provocar o debate público sobre o programa de governo e a composição dos ministérios. Em outras palavras, tem que ser hábil o suficiente para se projetar como poder real, dado que a fase de ser organizador de manifestações de rua já passou. Agora, é hora de entrar em campo como jogador da construção da superação do bolsonarismo e governo de Bolsonaro. É preciso saber influenciar e pressionar a mudança para o rumo que interessa à esquerda.

Então, relembremos: o cenário atual indica que os dois polos principais da campanha de 2022 já estão azeitando suas armas. Bolsonaro tenta rearticular sua base fanática nas redes sociais. No Telegram, já conquistou 1 milhão de seguidores. No campo lulista, as movimentações são mais complexas. A rapidez com que está negociando as alianças eleitorais e o próximo governo chega a confundir. Mas, Lula não apareceu com fotos ao lado dos movimentos sociais e organizações populares para negociar. Lula, é verdade, já convidou Franklin Martins para dirigir sua campanha nas redes sociais. Uma sinalização importante sobre o grau de profissionalismo e agressividade que deve assumir neste campo da disputa. Contudo, o programa e a composição de um provável governo Lula são incertos. As sinalizações sugerem uma capitulação aos interesses do alto empresariado tupiniquim. Luiz Gonzaga Belluzzo já saiu à campo e disse que a nova Carta ao Povo Brasileiro é para o povão.

O programa, então, está em disputa e se a esquerda deixar Lula continuar a se movimentar sem qualquer contraponto, podemos ingressar num perigoso campo de incertezas já em 2023. Porque é preciso combinar os cenários com os russos, no caso, com a oposição fanática bolsonarista.

Se Lula atrair, mais uma vez, o alto empresariado brasileiro para comandar a política econômica, o preço será alto. Com uma novidade em relação à 2003: Bolsonaro agitará para desestabilizar o país. Estará nas ruas, provocando, esticando as cordas ao máximo.

Se o cenário que estou apontando (alto empresariado ditando a política econômica do novo governo Lula e Bolsonaro procurando desestabilizar o país) tiver sentido, o alto empresariado e o Centrão terão um prato cheio para negociar espaços e vantagens. Lula terá que ceder.

O cenário que estou desenhando não é nem de perto garantido que se realize e é, certamente, um dos mais negativos que podemos desenhar para o país e para Lula. Assim, o papel da esquerda é diminuir ao máximo a chance dele se consolidar. E como fazer isso? Se tornando, a partir de agora, um jogador respeitado no jogo de xadrez.

A entrada da esquerda no jogo como "player" que estou sugerindo não é de oposição à candidatura de Lula, mas de influenciador na construção de seu programa e composição de governo. Para tanto, precisa ser mais agressiva.

Imagino que alguns devem estar perguntando: que esquerda seria esta? Respondo: as mais de 600 entidades que compõem a campanha Fora Bolsonaro e que lideram as manifestações anti-bolsonaristas desde maio deste ano. Este bloco tem as ruas nas mãos, mas não assumem a liderança política. As entidades do Fora Bolsonaro aparecem, hoje, como uma espécie de eminência parda. Estão lá, todo mundo sabe que existem, mas ninguém viu o rosto e nem sabe muito claramente o que projetam para o Brasil. Sabem o que não querem, mas não o que querem. Sem que mostrem sua cara, sua identidade e seu projeto, não se apresentam como jogadores. Ficam ausentes do jogo de poder. Permanecem como um grilo falante ou, no máximo, uma ameaça ou repreensão ao governo federal.

Contudo, se entram em campo para valer, atraem a atenção de Lula. Na pior das hipóteses, Lula terá um elemento a mais para negociar com o "lado de lá". Terá a ameaça, o grilo falante, como uma carta no bolso do colete.

Se o Fora Bolsonaro galvanizar a disputa pelo futuro do país, politiza a disputa. Se avançar ainda mais um pouco e abre negociação sobre a composição de governo, ampliará a lógica da tal "nova Carta ao Povo Brasileiro". Isso é jogo de poder. Adrenalina e risco.

Timing. Essa percepção do tempo político - do momento da jogada - é fatal em toda disputa de poder e construção de alternativas. Se você coloca gente na rua e não ocupa espaço na disputa pelo poder, vira paisagem, não assusta ninguém. É neste ponto que estamos.

 

Otávio Ramos

Sendo otimista, Lula fará um governo de centro diante de um Congresso Nacional altamente fragmentado e com o Centrão muito mais atuante que a esquerda. Sua capacidade de conciliação enquanto presidente poderá reduzir um pouco a polarização, e compromissos podem surgir para o país voltar a crescer, e ser mais respeitado no exterior. Vejo dificuldade em implantar uma agenda social, pois as pautas neoliberais se encontram fortes ainda. Nenhuma possibilidade de reverter as reformas previdenciária e trabalhista, mesmo porque serão condição de possibilidade para angariar apoio ao centro. Enfim, cenário muito difícil.

 

Patricia Cabral

Um verdadeiro pastor

 

 

 

Universidade Nômade

Artigo bem atual sobre a dimensão mortifera do atual governo federal

OLAVISMO E PULSÃO DE MORTE

por Claudio Carvalho

Este estudo reflete sobre o significado cultural da figura pública de Olavo de Carvalho e esboça algumas claves de seu discurso. Procura compreender a rede de relações do olavismo com outros atores intelectuais similares, como Aleksandr Dugin, na Rússia, e Steve Bannon, nos EUA. Busca compreender o universo mental e conceitual da nova extrema-direita internacional. Embora seja um fenômeno com protagonismo recente, procura-se ampliar a linha de tempo da compreensão do tradicionalismo, vinculando-o a acontecimentos culturais dos Anos 20, do século passado, e aos desdobramentos da contracultura, dos Anos 60 em diante. São destacadas as raízes perenialistas da nova extrema-direita e seu caráter performático, ligado à cultura pop. Interpreta-se ainda tais fenômenos como manifestações de “paixão triste”, no sentido spinoziano do termo, e de “pulsão de morte”, no sentido psicanalítico da expressão.

 

Cesar Benjamin

É bastante ridículo que exista um Prêmio Nobel de Economia, concedido uma vez por ano. A economia não produz saberes relevantes com essa periodicidade. Há muito anos esse prêmio vai para trivialidades, em geral com um verniz matemático de quinta categoria.

Em tempo: não existe Prêmio Nobel de Matemática.

 

José Luís Fevereiro

O Peixe nao envelheceu. Ele apodreceu.

 

 

 

Christian Edward Cyril Lynch

Terra arrasada

Parece que Bolsonaro e seus asseclas já assimilaram a derrota no ano que vem e decidiram gastar o tempo restante do mandato numa política nazista de terra arrasada, destinada a entregar o país em petição de miséria ao sucessor.

Os "sujos, feios e ressentidos" já atingiram seu objetivo primário de dilapidar a máquina e os recursos públicos para formar um "partido" (políticos, gestores, comunicadores, empresários), que os Bolsonaros não tinham em 2018.

Os parasitas da democracia sairão mais fortes do que entraram, tendo armazenado recursos para sobreviverem na oposição. Infernizarão o novo governo, culpando-o pela massa falida que lhe entregaram, e tentarão assim - como Trump - voltar para terminar seu trabalho de destruição.

Levando em consideração que em 2018 seu "partido" de não passava de uma trupe de circo, a eventual derrota de Bolsonaro será quase uma vitória. Serão postos para fora, mas gordos, ricos e em posição de negociar a impunidade por seus crimes.

Se o novo governo e a Justiça não fizerem sua parte nos próximos anos, essas moscas varejeiras poderão continuar a azucrinar a democracia ainda por um bom tempo depois de despejadas dos palácios de Brasília.

Nada de esmorecer.

 

Eduardo Guerreiro B. Losso

Enquanto a escrita charmosa, mas meio confusa, de Latour e Stengers criam rodeios sem fim, enquanto Viveiros pensa por meio de fogos de ideias brilhantes mas soltas, Descola é o epistemólogo que diferencia, organiza, mapeia, compara e esclarece tudo. O novo Foucault.

Philippe Descola: “Rendre visibles des choses invisibles

 

Gabriel Vilardi SJ

"Quantos erros foram cometidos na história da evangelização ao querer impor apenas um modelo cultural, a uniformidade. A uniformidade como regra de vida não é cristã. A unidade sim, mas a uniformidade não. Por vezes, nem sequer renunciaram à violência a fim de fazer prevalecer o próprio ponto de vista. Pensemos nas guerras! Desta forma, a Igreja privou-se da riqueza de tantas expressões locais que têm em si as tradições culturais de povos inteiros. Mas isto é exatamente o oposto da liberdade cristã! Por exemplo, me lembro quando se estabeleceu a maneira de fazer apostolado na China com o pe. Ricci ou na Índia com pe. De Nobili. Isto não é cristão. Sim, é cristão na cultura do povo". Leia aqui.

 

Fernando Altemeyer Junior

 

 

 

Marcio Sales Saraiva

Via Cesar Benjamin

Nós, ocidentais, não entendemos o Zen Budismo

Antes de abordar o livro “Filosofia do zen budismo” (tradução de Lucas Machado – Petrópolis, RJ: Vozes, 2019), escrito pelo filósofo sul-coreano e professor da Universidade de Berlim, Byung-Chul Han (“baiong txu ran”, em coreano), é fundamental dizer que existem budismos, no plural. Han fará um estudo comparativo da tradição zen (“chan”, de origem chinesa) com o pensamento de grandes referências da filosofia continental (grega-europeia). Em outras palavras, o que Han diz nesse livro serve para o zen, mas não para o budismo tibetano, por exemplo.
Esclarecido este ponto, sigamos. De onde vem o zen budismo? Han responde:

“O zen-budismo é uma forma de budismo mahāyāna de origem chinesa e orientada para a meditação. O característico do zen-budismo é expresso por aquela estrofe atribuída a seu fundador envolto em lendas, Bodhidharma: “Uma transmissão especial fora dos escritos / independente de palavras e caracteres: / mostrar o coração do ser humano imediatamente, – / ver a própria natureza e se tornar Buda”. Esse ceticismo em relação à linguagem e à desconfiança, tão característico ao zen-budismo em relação ao pensamento conceitual, traz consigo uma formulação enigmática e um encurtamento das palavras. Apesar da postura fundamental de hostilidade do zen-budismo à teoria e ao discurso, o empreendimento de uma “filosofia do zen-budismo” não se emaranha necessariamente no paradoxo de um épico de haikus, pois também sobre um objeto que não é filosofia em sentido próprio se pode refletir filosoficamente. Pode-se sondar o silêncio linguisticamente, sem afundá-lo, assim, imediatamente na linguagem. A “filosofia do zen-budismo” se nutre de um filosofar sobre e com o zen-budismo.”

Qual o objetivo deste livro?

“O presente estudo é concebido “comparativamente”. As filosofias de Platão, Leibniz, Fichte, Hegel, Schopenhauer, Nietzsche e Heidegger, entre outras, são confrontadas com as inteleções filosóficas do zen-budismo. O “método comparativo” é utilizado aqui como um método desbravador de sentidos.”

Separei alguns pontos deste livro, pontos que considero essenciais para a compreensão da diferença do enfoque zen budista em comparação com o que pensaram os filósofos do Ocidente. Byung-Chul Han, ao contrário de certa tradição que busca ver e destacar as semelhanças e os pontos de convergência entre filosofias distintas, irá sinalizar para o abismo das diferenças e mais ainda, demonstrará que o Ocidente, em geral, assimilou errado o zen budismo, mesmo quando teve boa-vontade e simpatia.

a) O vazio e o nada no zen budismo:

Diz Han:

“O nada significa, antes, que nada domina. Ele não se exterioriza como um senhor. Dele não parte nenhuma “soberania”, nenhum “poder”. Buda não representa nada. Ele não encarna a substância infinita em uma singularização individual.”

“A ausência de concentração de “poder” em um nome [Buda] leva a uma ausência de violência. Ninguém representa um “poder”. O seu fundamento seria um centro vazio, que não exclui nada, que não é ocupado por nenhum detentor do poder. Essa vacuidade, essa ausência da “subjetividade excludente”, faz do budismo, justamente, afável. O “fundamentalismo” contradiria a sua essência.”

b) O budismo zen é imanência, nele não há Deus:

“O zen-budismo volta, da maneira mais radical, a religião budista à imanência: “Amplamente limpo [aufgeräumt]. Nada de sagrado”. Ditos zen como “o Buda são cacos de tijolo e telhas” ou “um quilo e meio de cânhamo” apontam igualmente para uma postura zen-budista que é voltada à imanência. Elas expressam o “espírito do cotidiano” que faz do zen-budismo uma religião da imanência. O nada ou o vazio do zen-budismo não é direcionado a nenhum Lá divino. A virada radical para a imanência, para o Aqui, assinala, justamente, o caráter chinês ou do Extremo Oriente do zen-budismo.”

“Nesse “fundamento último das coisas” [Deus] o pensamento que se pergunta pelo porquê chega à paz [na visão de filósofos ocidentais]. No zen-budismo se busca uma outra paz. Ela é alcançada, justamente, por meio da suspensão da pergunta-por-quê, da pergunta pelo fundamento. Àquele Deus da metafísica como fundamento último se opõe uma florescente ausência de fundamento:

“Rosas vermelhas florescem em esplêndida confusão”. A palavra zen aponta para uma paz singular: “Ontem, hoje é como é. No céu o sol se levanta e a lua se põe. Diante da janela emerge ao longe a montanha e corre o rio profundo””

c) A iluminação no zen nada tem com salvação cristã, nem com êxtases místicos:

“A iluminação [satori] não caracteriza nenhum “arrebatamento”, nenhum estado incomumente “extático”, no qual, porém, se sentiria a si mesmo. Antes, ela é o despertar para o comum. Não se desperta em um Lá extraordinário, mas sim em um aqui ancestral, em uma profunda imanência.”

“A iluminação é um despertar para o cotidiano. Toda busca por um Lá extraordinário faz com que se desvie do caminho. Deve ocorrer um salto para o Aqui comum.”

“Certamente, o espírito zen-budista é oposto ao espírito hegeliano, cujo traço fundamental é a interioridade. A prática zen-budista é a tentativa de des-interiorizar o espírito, sem, todavia, afundá-lo ou invertê-lo em um mero “fora”, ou esvaziá-lo em um “invólucro vegetável”. O espírito deve ser es-vaziado em uma vigília e recolhimento sem interioridade. O satori caracteriza o estado do espírito que, por assim dizer, floresce, floresce para além de si, que, por assim dizer, passa inteiramente na luz e no esplendor de cores. O espírito iluminado é a árvore florescente. O satori é o outro da “mesmidade”, o outro da “interioridade”, o que, todavia, não significa nenhuma “exterioridadade” ou “alienação”. Ultrapassa-se, muito antes, a distinção entre “dentro” e “fora”. O espírito se des-interioriza em uma in-diferença, sim, no Afável.”

d) Não há substância alguma no zen, mas o vazio/nada:

“A substância (em latim: substantia; em grego: hypostasis, hypokeimenon, ousia) é, certamente, o conceito fundamental do pensamento ocidental. Segundo Aristóteles, ela caracteriza o constante em toda transformação. Ela é constitutiva para a unidade e mesmidade [Selbigkeit] do ente.”

“A substância se baseia na separação e na distinção. Essa distinção demarca o um em relação ao outro, mantém aquele em sua mesmidade frente a esse. Assim, a substância não se deposita na abertura, mas sim no fechamento. O conceito budista central śūnyatā [vacuidade] representa, de muitas maneiras, o conceito oposto ao de substância. A substância é, por assim dizer, cheia. Ela é preenchida de si, do próprio. Śūnyatā representa, em contrapartida, um movimento de des-apropriação. Ele es-vazia o ente que permanece em si, que se afunda em si ou que se tranca em si.”

“O vazio ou o nada do zen-budismo não é, então, a simples negação do ente, a fórmula do niilismo ou do ceticismo. Antes, ele representa a afirmação extrema do ser. Nega-se apenas a demarcação substancial que produz tensões oposicionais.”

“O vazio zen-budista é mais vazio do que o vazio de Heidegger. Poder-se-ia também dizer: o vazio do zen-budismo é sem alma e sem voz. Ele está mais para disperso do que “recolhido”.”

e) Os haicais ou haikus no zen não é o que os ocidentais pensam:

“Também os haikus ou os poemas zen não são uma “expressão” da “alma”. Antes, se deixam interpretar como uma visão de ninguém. Não se deve extrair deles nenhuma interioridade. Nenhum “eu lírico” se expressa. Também as coisas do haiku não são impelidas a nada. Nenhum Eu “lírico” inunda as coisas, fazendo delas, desse modo, metáforas ou símbolos. Antes, o haiku deixa que as coisas brilhem em seu assim-ser. O não-ser-impelido como disposição fundamental do haiku aponta para o coração em jejum do poeta que, na qualidade de ninguém, espelha o mundo em si mesmo.

N’asa dos patos

A neve amontoa

Oh, que silêncio!

Shiki

No haiku, nenhum “ser humano”, nenhum “Eu” toma propriamente a palavra.”

“Os haikus não apontam, além disso, para nenhum significado oculto que devesse ser encontrado. Não há metáfora da qual se deveria retirar uma interpretação. O haiku é completamente evidente. Ele é claro em si mesmo. Não é preciso primeiramente “esclarecê-lo”.”

“O haiku revela inteiramente o seu “sentido”. Ele, por assim dizer, não tem nada para esconder. Ele não é voltado para dentro. Não habita nele nenhum “sentido profundo”. A ausência de “sentido profundo” constitui, justamente, a sua profundidade. Ela é correlata da ausência de interioridade da alma. A abertura clara, a amplidão desimpedida do haiku surge do coração des-interiorizado, es-vaziado, da coleção de ninguém, sem interioridade.”

f) O zen é “desterritorializado”, não habita lugar algum:

“O habitar lugar nenhum como errar pressupõe uma abdicação radical da posse, do Meu. Bashō erra para longe de si e de suas posses. Ele anula inteiramente a sua existência econômica. O seu errar não é direcionado ao futuro da promessa. A temporalidade do errar é sem futuro. Bashō erra sempre, se mantém sempre no presente. Falta ao seu errar qualquer sentido teleológico ou teológico. Bashō já chegou desde sempre. Esse monge errante em vestes que balançam com o vento certamente se deixaria generalizar como a contrafigura de Odisseu e Abraão. Bashō erra, pois ele não se esforça por nada.”

“Errar ou habitar em lugar nenhum é certamente estranho a Platão. Mesmo depois da morte não se abandona a casa. Na Apologia, Sócrates fala, em relação à morte, de uma “mudança [metoikesis] da alma”. A morte é um “deslocamento [metábole] e mudança da alma daqui para um outro lugar [topos]”. A “metamorfose” [metábole] que a alma experiência na morte não faz dela desabrigada. A mudança ou a emigração não é um errar. A alma abandona uma casa [oikos] para chegar em uma outra casa. A morte é uma mudança de uma casa para outro. Para Bashō, em contrapartida, morrer significa errar. A morte é, para Platão, uma empresa da “alma” a fim de partir da casa finita do corpo para uma morada celeste.”

“O habitar em lugar nenhum não representa uma fuga do mundo. Não se nega a estadia nesse mundo. O iluminado não vagueia em um deserto do “nada”. Antes, ele habita “em meio à multidão da estrada viajada”. Habitar em lugar nenhum é um habitar, e, de fato, um habitar sem nenhum desejo, um habitar sem o Eu firmemente trancado. Ele não carrega o mundo nas costas. O vazio formula um certo não. O caminho zen-budista, porém, não termina nesse não. Ele leva novamente ao sim, a saber, ao mundo habitado e pluriforme.”

g) A morte no zen é serena e não heroica:

No ocidente, é comum pensarmos a morte como despertar, algo heroico. Platão, Hegel, Fichte e Heidegger, para citar alguns exemplos de Han, têm visão heroica da morte.

“Em Heidegger, a morte certamente não promete o infinito no sentido platônico. O “ser-aí” não foge do corpo como lugar da finitude para se aproximar de uma infinitude. Em vista da morte, Heidegger tampouco estaria de acordo com o fichteano “Assim sou imutável, fixo, e completo por toda a eternidade”. Mas manifesta-se novamente um heroísmo, ou seja, um desejo. Aquele “eu sou” enfático que desperta em vista da morte é, em última instância, afinal, uma virada heroica contra a finitude humana, pois a morte termina definitivamente justamente com o Eu-sou.”

“Também no zen-budismo a morte certamente não representa nenhuma catástrofe, nenhum escândalo. Ela não coloca em movimento, porém, aquele trabalho de luto que trabalha coercitivamente contra a finitude. Nenhuma economia do luto converte o “nada” em “ser”. O zen-budismo desenvolve, antes, uma serenidade em relação à morte, que é livre de heroísmo e desejo, que, por assim dizer, mantém o passo com a finitude, em vez de trabalhar contra ela.”

“O vivente permanece um morto enquanto a “morte” não estiver morta, ou seja, enquanto a “morte” se opuser à “vida”. Só depois da morte do “morto” se é inteiramente vivo, isto é, se vive inteiramente, sem encarar a “morte” como o outro da “vida”. Inteiramente vivo não se confunde com “eterno” ou “imortal”. Antes, coincide com inteiramente mortal. A morte não é mais uma catástrofe, pois já se tem a catástrofe da grande morte atrás de si. Ninguém morre. A virada zen-budista para a morte ocorre sem trabalho de luto. Ela não vira o finito para o infinito. Ela não trabalha contra a mortalidade. Antes, ela vira a morte, por assim dizer, para dentro: se morre na morte. Esse modo singular de morte seria uma outra possibilidade de escapar da catástrofe.”

h) O zen é afável ou gentil, sem se preocupar com cálculos de ganho:

“Mettā é um conceito fundamental da “ética” budista. A palavra designa algo como gentileza [Güte] ou afabilidade. Ela deriva da palavra mitra, que significa “amigo”. A afabilidade arcaica, contudo, não se deixa apreender a partir daquela economia da amizade, que faz com que essa gire em torno do si.”

“Ter compaixão pelos seres humanos e não distinguir nisso entre conhecidos e estranhos; sempre se esforçar para salvar a todos sem distinção, e nisso nunca pensar no próprio ganho, nem no sentido de vantagens mundanas nem de supramundanas; também quando os outros não souberem e não mostrarem gratidão, simplesmente fazer bem aos outros, como seu coração comanda, e nunca trazer ao conhecimento do outro o que o seu bem alimenta no coração.”.

Aristóteles, Montaigne, o amor cristão, a ética compassiva de Schopenhauer ou a relação Eu-Tu de Buber estão longe disso, muito longe. Para dar um exemplo, cito Han:

“Também o amor cristão ao inimigo não é livre da economia. A exigência de dar unilateralmente sem esperar nada em troca caminha lado a lado de uma economia santa. É que se espera, a saber, por uma recompensa divina: “Se vocês amam aqueles que os amam, que recompensa terão? Porque até os pecadores amam aqueles que os amam. Se fizerem o bem aos que lhes fazem o bem, que recompensa terão? Até os pecadores fazem isso. E, se emprestam àqueles de quem esperam receber, que recompensa terão? Também os pecadores emprestam aos pecadores, para receberem outro tanto. Vocês, porém, amem os seus inimigos, façam o bem e emprestem, sem esperar nada em troca; vocês terão uma grande recompensa [...] Deem e lhes será dado; boa medida, prensada, sacudida e transbordante será dada a vocês; porque com a medida com que tiverem medido vocês serão medidos também (Lc 6,32-38). No zen-budismo não haveria, em contrapartida, nenhuma instância que restauraria a economia em uma esfera superior. Dá-se e se doa sem qualquer cálculo econômico. Não há, justamente, ninguém que manteria-a-casa [haus-hielte].”

O livro de Han traz muitas outras discussões sobre os abismos entre o que pensa a tradição zen e as diversas filosofias ocidentais. Fiz apenas esses destaques que considerei mais significativos.
Para quem pesquisa o assunto, convido a mergulhar no livro e desfrutar de uma boa leitura, ainda que nada fácil, pois Han parte do pressuposto que você já conhece a tradição filosófica e dispensa comentários básicos ou introdutórios.

Dito em poucas palavras, eu adorei o livro, ajudou-me bastante a compreender melhor o zen budismo, ainda que no zen, o fundamental é mesmo sentar, respirar, meditar. Sua praticidade é chocante para mentes intelectualistas, mas é essencial. O zen não explica nada, não te pede para crer em nada, apenas lhe sugere: medite, confie na sua respiração, ouça o silêncio, coma quando tiver fome, durma quando estiver cansado e arrume sua casa.

M. S. Saraiva é escrevinhador.

 

 

 

Cesar Benjamin

Prioridades do investimento público na França (30 bilhões de euros): indústria digital, robótica e genética.

E nós, aqui, presos num teto de gastos estúpido por vinte anos, tentando produzir cada vez mais minério de ferro, soja, madeira e boi.

A distância que nos separa do mundo desenvolvido nunca foi tão grande e só faz aumentar.

Macron anuncia 30 bilhões de euros para reindustrializar a França

Antonio Riserio

Ditadura diversitária (Por Hubert Alquéres)

Devemos ao iluminismo a construção de um discurso universal, baseado na lógica e na razão. Seus ideais inspiraram a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na Revolução Francesa, em 1789, bem como a Declaração da Independência dos Estados Unidos, em 1776. O princípio de que todos os homens nascem iguais e tem direitos iguais, independentemente da cor de sua pele, de seu sexo e de sua religião, voltaria a ser reafirmado na Declaração Dos Direitos Humanos das Nações Unidas de 1948.

A democracia, até hoje o melhor sistema de governo criado pela humanidade, é filha legítima desses avanços civilizatórios. Mas a franquia do voto para todos -pobres, analfabetos, mulheres ou negros- só foi conquistada com muita luta e tendo como pilar o conceito de “cada cabeça um voto”. Ou seja, o voto do pobre vale o mesmo que o voto do rico, assim como o voto do homem vale o mesmo que o voto da mulher, o do religioso o mesmo do ateu e, assim, sucessivamente.

A busca do bem comum, por sua vez, sempre orientou a ação das forças progressistas e foi por aí que a sociedade avançou. Toda vez em que as diferenças foram acentuadas em detrimento do discurso universal de igualdade houve retrocesso. Não se nega a existência de diferenças e da diversidade, mas elas não podem agir como elemento corrosivo daquilo que conforma uma nação: um destino comum, construído ao longo de sua história.

A emergência de movimentos identitários em meio ao fenômeno da fragmentação das classes sociais faz acender o sinal amarelo sobre o risco da desconstrução da nação e da própria democracia liberal. Autor dos livros “As Sinhás pretas da Bahia” e “Relativismo pós-moderno e a fantasia fascista da esquerda identitária”, o antropólogo e historiador Antônio Risério tem sido incansável no combate ao identitarísmo. Segundo ele, a diversidade vem se transformando em ideologia, no sentido de uma visão falsa e distorcida da sociedade. É dele o conceito de “ditadura diversitária”.

Em recente artigo, Risério denunciou que o princípio de “cada cabeça um voto” está ameaçado pela adoção – na representação política – de cotas raciais ou de gênero. A conformação do Parlamento, por exemplo, não se daria pelo voto igualitário e sim de forma censitária. Se as mulheres, por exemplo, são tanto por cento da sociedade, teriam a mesma proporção nas casas legislativas. A regra demográfica valeria também para as raças e “povos originários” – a nova modalidade de se chamar os indígenas.

O Brasil não chegou à situação do Chile que, na recente eleição de sua Constituinte, para defender uma maior participação das mulheres, definiu que elas teriam 50% das cadeiras do Parlamento. Realizadas as eleições, deu-se o inusitado. As mulheres tiveram mais de 50% dos votos, e onze parlamentares eleitas para elaborar e aprovar a nova Constituição do país perderam suas cadeiras para assegurar a paridade entre homens e mulheres.

Ainda não chegamos a tanto, mas estamos nos esforçando. A cota para mulheres foi instituída nas candidaturas, por meio da obrigação dos partidos de reservar 30% para o registro de candidatas. Com o aval do presidente TSE, ministro Roberto Barroso, a presidente do Podemos, deputada Renata Abreu, quer que a reserva para as mulheres não seja apenas na lista das candidaturas, mas nas cadeiras do Parlamento.

Barroso já propôs que sejam reservadas 20% das cadeiras da Câmara para as mulheres, como forma de “quebrar o ciclo de discriminação”. Recentemente o Senado aprovou Emenda Constitucional ao Código Eleitoral, instituindo que, para efeito de distribuição dos recursos dos fundos partidário e eleitoral, os votos em mulheres e negros contarão em dobro.

O grande risco é de o Brasil cair no que o antropólogo e historiador chamou de uma variante do fascismo italiano e que Getúlio Vargas tentou copiar no Estado Novo: a composição do Parlamento a partir das corporações. Só que agora em vez de serem corporações classistas, seriam representações identitárias: mulheres, negros, “povos originários”, e assim por diante.
Não está em questão as cotas sociais como porta de entrada nas universidades, importante medida para a ascensão social da camadas historicamente marginalizadas. Também não se nega bandeiras específicas da luta pelos direitos da mulher, contra o racismo e pelos direitos indígenas. Mas elas não podem ser elementos de divisão da sociedade e devem ser parte da luta pelo bem comum.

Se para Marx a luta de classes era o motor da história, para os diversitários é a luta identitária, a luta da mulher contra o homem, do preto contra o branco, do índio contra o explorador branco. Por trás dessa categoria mental está uma visão distorcida, segundo a qual o homem branco é visto como explorador e escravagista e a história da sociedade ocidental, inclusive a do Brasil, a história da opressão, da escravidão e da exploração.

A esquerda identitária ainda não percebeu que pode provar do próprio veneno, com corporações conservadoras reivindicando cotas nas instituições do Estado. Os evangélicos já deram o primeiro passo, cobrando do presidente Jair Bolsonaro a nomeação para a vaga aberta no STF de alguém “terrivelmente evangélico”. Amanhã podem muito bem reivindicar uma participação na Câmara proporcional à sua presença na sociedade. Ora, se uns podem ter cota no Parlamento, por que outros não podem?

 

Antonio Riserio

FREDDIE MERCURY ERA CANTOR TANZANIANO?

Nelson Saúte

Abdulrazak Gurnah foi anunciado hoje como Prémio Nobel da Literatura deste ano. A Academia Sueca prossegue, nestes últimos anos, a sua estratégia disruptiva em relação aos favoritos, laureando nomes totalmente inesperados. Sabia que hoje seria anunciado o vencedor deste ano e tinha a ideia de que o mesmo pudesse ser um autor oriundo de uma zona diversa daquela que acumula mais prémios: o Ocidente.

Eu diria que esse propósito não foi cabalmente cumprido. Gurnah nasceu, em 1948, no antigo Sultanato de Zanzibar e de lá saiu aos 20 anos, tendo feito a sua vida e a sua carreira no Reino Unido. É um escritor britânico. Parece-me um dislate quando se diz que se premiou um escritor tanzaniano. Quando ele nasceu, a ilha de Zanzibar nem sequer pertencia à Tanzania. Existia a Tanganyika e o Arquipélago de Zanzibar, que teve sempre um estatuto e jurisdição colonial independente. E mais: aqueles que abandonaram a ilha na sequência da revolução, quase todos, nunca se identificam como tanzanianos. Sobretudo os de origem indiana. Eram e são cidadãos britânicos.

Este autor parece-me ser um caso semelhante ao de V.S. Naipull, que ganhou o Nobel há precisamente 20 anos, e que nascera em Trindade e Tobago e sempre se viu britânico. Também chegou jovem e fez toda a carreira no Reino Unido. Foi provavelmente o mais virtuoso cultor da língua inglesa entre o século passado e este. Aliás, o intrépido V.S. Naipull chegou a cortar com uma editora (a Secker) por esta ter redigido na contra-capa de um livro (“Guerrillas”) que ele era um “romancista das Índias Ocidentais”.

Esta tarde ligou-me uma jornalista da RTP a pedir a minha opinião sobre Gurnah. Disse-lhe que falaria na contra-corrente, como anoto agora. Qual era importância do tema colonial, que estava no centro da obra deste escritor? – quis ela saber. Pessoalmente – disse-lhe - não sou um entusiasta das temáticas coloniais e/ou das perspectivas pós-coloniais em voga na Europa. Creio ser uma forma ocidental de ver a História. Os africanos, acrescentei, veem-na numa óptica divergente ou até mesmo antagónica.

Para mim não é importante destacar a origem ou querer forçar uma certa nacionalidade, mas sim a sua obra. E mais: não vejo, por conseguinte, neste prémio, uma distinção a um escritor africano. Nem sequer falo do facto de ele ser mestiço e não ver nisso um impedimento para o considerarem britânico. Coibo-me até de interrogar: será por essa razão (o facto de ele ser inequivocamente mestiço) que o querem forçosamente tanzaniano?

Vi, aliás, algures referido que depois de Wole Soyinka (Nobel em 1986) ele era o segundo escritor africano negro a ganhar o prémio. Outro disparate. Abdulrazak Gurnah não é negro. Não me parece sequer que isso seja importante, no caso. Nem creio ter sido esse o critério. A Academia, caso quisesse outorgar a láurea a um escritor negro africano, cuja escrita fosse de raiz marcadamente africana, tinha, quanto a mim, duas possibilidades: ou dar o prémio ao queniano e veterano Ngugi wa Thing´o (eterno candidato) ou premiar Chimamanda Adije Ngozi, autora nigeriana, das mais brilhantes da nova literatura africana.

Pergunto-me, agora e a terminar, sem sequer fazer chacota: passa mesmo pela cabeça de alguém considerar Freddie Mercury – que é, curiosamente, o meu mais favorito cantor –, nascido também em Zanzibar, justamente dois anos antes de Abdulrazak Gurnah, um cantor tanzaniano?”

Maputo, 7 de outubro de 2021.

 

Caio Almendra

Vocês vão me desculpar mas em disputa entre Ciro Gomes e Dilma Rousseff, eu não sou obrigado a ter lado, não.

Até o social-liberalismo recuado merece lideranças melhores.