Com pandemia, povo Yawanawa prioriza segurança alimentar e resgate de modo de vida tradicional

Foto: Odair Leal | Secom AC

24 Junho 2021

 

Após serem diretamente impactados pela pandemia da Covid-19 ao longo do ano passado, os Yawanawa do rio Gregório, no Acre, colocam em prática projetos que estabelecem uma reorganização social – dando poder às mulheres nas tomadas de decisões – e fortalecendo a agricultura e a criação de animais que lhes assegurem a segurança alimentar para enfrentar eventuais novos isolamentos em crises sanitárias. As cheias ocorridas no início de 2021 em grande parte da Amazônia afetou as aldeias Yawanawa, comprometendo as plantações nos roçados, reduzindo a oferta de macaxeira e banana.

A reportagem é de Fabio Pontes, publicada por Amazônia Real, 21-06-2021.

Conhecidos pela realização de festivais culturais que resgatam o modo de vida dos antepassados – após toda essa ancestralidade ter sido quase extinta – os Yawanawa dão mais um passo para recuperar o modelo de arquitetura das construções feitas por eles antes do contato com o colonizador, no final do século 19.

Todos estes projetos estão incluídos no Plano de Vida Yawanawa, construído ao longo dos últimos seis anos após intensos diálogos ocorridos nas 10 aldeias da Terra Indígena do Rio Gregório, localizada no município de Tarauacá, no Acre. Em pleno auge da pandemia da Covid, os indígenas começaram a tirar do papel o planejamento, em uma parceria com a organização Conservação Internacional. Entre eles está o fortalecimento do sistema de produção nos roçados e a criação de pequenos animais como galinhas e porcos.

 

Ação de resgate da identidade cultural também envolve maior participação da mulher nas decisões nas aldeias. Na imagem acima, indígenas Yawanawa atravessam ponte para iniciarem festival (Foto: Secom AC)

 

Os Yawanawa ainda buscam ampliar suas fontes de renda dentro das aldeias com a produção do açaí extraído dentro de seu território. “Nós queremos criar novos negócios que possam gerar renda para a comunidade para ela não se sentir tentada a tirar madeira ou fazer qualquer outra atividade predatória e proteger os 200 mil hectares da terra”, diz a liderança Tashka Peshaho Yawanawa, presidente da Associação Sociocultural Yawanawa (ASCY).

O projeto também fortalece a criação de peixes num modelo de piscicultura em açudes, possibilitando uma alternativa ao modelo tradicional de pesca no rio Gregório e igarapés. Nos meses do “verão amazônico” (de julho a setembro), os mananciais chegam a níveis críticos, dificultando tanto a prática da pesca quanto a navegação. Com tais práticas, os Yawanawa reduzem a dependência de alimentos comprados na cidade.

 

Pressão da pecuária

 

Floresta Estadual do Rio Gregório e a Floresta Estadual do Mogno no Acre irão ser concedidas para exploração comercial (Foto: Pedro Devani/Secom)

 

A Terra Indígena do Rio Gregório – também habitada pelos Noke Ko’í – está numa das regiões mais ricas em madeira nobre. Todo este potencial a faz ser uma das mais pressionadas pelo desmatamento. A TI está próxima a um conjunto de unidades de conservação estaduais cujas áreas serão concedidas pelo governo Gladson Cameli (PP) para exploração madeireira, por meio de planos de manejo. A concessão deve ser votada ainda esse ano pela Assembleia Legislativa.

Entre as áreas que serão concedidas estão a Floresta Estadual do Rio Gregório e a Floresta Estadual do Mogno. O território dos Yawanawa também tem como vizinha uma propriedade privada cujo dono seria o apresentador Ratinho, um dos principais aliados do presidente Jair Bolsonaro. Em entrevistas, Ratinho já admitiu ser dono de terras no Acre, mas sem precisar a localização. A fazenda teria o mesmo tamanho da TI do Rio Gregório: 200 mil hectares. Até o momento não se tem informações se a área estaria tendo alguma atividade. O mais provável é que também invista no manejo madeireiro.

Além da atividade madeireira, a região do Gregório é impactada pela expansão da pecuária. A pavimentação da BR-364 entre Rio Branco e o município de Cruzeiro do Sul na última década favoreceu a expansão das fazendas de gado no entorno. Até mesmo as margens dos principais rios cruzados pela rodovia passaram a ampliar as áreas. Se antes essas propriedades ribeirinhas se caracterizavam pela agricultura familiar e criação de gado em pequena escala, aos poucos a presença do boi aumenta.

Não por acaso, Tarauacá apresenta taxas elevadas de desmatamento e queimadas nos últimos anos. Segundo o programa Queimadas, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em 2020 o município foi o terceiro, dentro do estado, em registro de focos de calor: 1.023. Em 2019, foram 722 focos. Dados do Inpe apontam que, entre 2008 e 2020, Tarauacá teve desmatados 371,26 km2 de floresta, sendo o ano passado e 2019 os recordistas.

Por conta de todas essas pressões, os Yawanawa se articulam para desenvolver novos modelos de negócio e governança que assegurem maior circulação de renda dentro das 10 aldeias, além de desenvolver atividades de monitoramento do território. Uma base de vigilância foi construída, em 2019, na aldeia Matrinxã, a primeira da TI, para controlar a entrada de não moradores. A construção da base, a instalação de internet mais a compra de embarcações se deu por meio de convênio com a organização WWF-Brasil.

Para os Yawanawa, o etnoturismo ainda é visto como a atividade mais lucrativa para as aldeias, permitindo a geração de renda e mantendo seu território intacto. Nesta reformulação da organização social prevista no Plano de Vida Yawanawa, o turismo também será “repaginado”.

“A gente quer encontrar outro nome. Turismo é uma palavra um pouco agressiva. Agressiva ambientalmente, socialmente e culturalmente. Então a gente quer encontrar uma palavra própria, que se aplique a nós. Seria um programa de intercâmbio, de reciprocidade entre pessoas de fora e os Yawanawa”, afirma Laura Soiano Yawanawa, coordenadora-executiva da ASCY.

O maior impacto sentido pelos Yawanawa nestes tempos de pandemia é a interrupção de sua principal atividade econômica: o etnoturismo. Desde 2001, o povo da Queixada (significado de Yawanawa) é pioneiro no Acre na realização de festivais culturais e vivências espirituais que atraem pessoas de todo o mundo. Com o coronavírus se espalhando pelo planeta naquele começo de 2020, todos os festivais e vivências agendados foram cancelados, representando uma drástica perda de receita para as aldeias.

Além de os povos indígenas adotarem o isolamento por conta própria, a Fundação Nacional do Índio (Funai) emitiu, em 17 de março de 2020, a portaria 419 proibindo a entrada de não-indígenas nas terras demarcadas, numa forma de evitar a chegada do coronavírus às aldeias. Sem poder ir à cidade para comprar alimentos e paralisando o turismo para proteger o povo da Covid-19, os Yawanawa pediram ajuda, por meio de vídeos nas redes sociais, para a doação de recursos, cestas básicas e produtos de higiene pessoal.

Segundo Laura, a pandemia teve como principal influência no desenvolvimento do Plano de Vida Yawanawa a preocupação com a segurança alimentar das comunidades, ampliando e diversificando a produção própria de alimentos. De acordo com ela, a partir da pandemia, a segurança alimentar passou a ser prioridade.

“A gente tinha elaborado o plano de vida antes da pandemia, mas no meio do caminho veio a crise e a necessidade de se dar mais importância à segurança alimentar. O povo está dando muita importância para a questão das vivências, cerimônias. Havia, sim, a questão da alimentação, mas com a pandemia passou a ser prioridade”, diz Laura.

Tradicionalmente, os Yawanawa têm na caça e na pesca sua principal fonte alimentar, mas passaram a criar galinhas e porcos para sobreviver a eventuais escassezes de animais na selva. Afinal de contas, não é sempre que as caçadas de dias dentro da mata dão bom resultado.

 

Empoderamento das mulheres

 

Laura Yawanawa (Foto: cedida de Tashka Peshaho Yawanawa)

Casada com Tashka Peshaho, Laura Yawanawa foi uma das lideranças femininas à frente do processo de empoderamento das mulheres Yawanawa. Segundo ele, foram 15 anos de trabalho para quebrar barreiras dentro das aldeias para assegurar às mulheres poder de voto nas tomadas de decisões. No novo modelo de governança, cada uma das 10 aldeias conta com um conselho formado por um homem e uma mulher.

“Isso não existia tradicionalmente dentro do povo Yawanawa, onde a mulher tivesse poder de decisão. Durante 15 anos trabalhamos muito com o empoderamento da mulher, numa participação maior das mulheres dentro das aldeias. Hoje temos esse conselho em que as mulheres têm esse mesmo poder de decisão, e isso tem funcionado muito bem”, afirma Laura.

Além do empoderamento feminino, as lideranças Yawanawa tiveram como maior desafio, nas duas últimas décadas, a recuperação da identidade cultural do povo. Como lembra Tashka Peshaho, naquele início dos anos 2000 o povo da Queixada estava à beira da extinção de seus modos de vida cultural, espiritual e da própria língua. Muitos deles estavam trocando as aldeias pela periferia de Tarauacá, em situação de extrema vulnerabilidade.

“Naquela época a cultura Yawanawa estava quase exterminada, a língua desaparecendo. Toda a parte cultural e dos rituais estava desaparecendo. Os Yawanawa se sentiam pobres e miseráveis”, diz Tashka. Um dos problemas mais sérios de então era o alcoolismo e os preconceitos de que eram vítimas nos centros urbanos do Acre – algo vivenciado não apenas por eles, mas pela grande maioria dos povos indígenas do estado.

“A nossa grande meta, objetivo, é a continuidade daquilo que sonhamos e planejamos para nós, Yawanawa, lá em 2001. Naquela época, nós criamos o Projeto Social e Econômico Yawanawa, que visava fortalecer a língua, a cultura. Naquela época não tinha clima para se trabalhar com isso porque a autoestima da comunidade estava muito pra baixo”, recorda-se ele.

A mais importante forma para recuperar o modo de vida e a consequente autoestima dos Yawanawa foi consultar os mais velhos, incluindo os pais e avós de Tashka. A partir destas conversas, os jovens descobriram como seus antepassados viviam décadas e séculos atrás antes da invasão do Gregório pelos seringalistas e missionários religiosos.

“Foi aí que fizemos uma avaliação platônica: como eram os Yawanawa no passado, como estava no presente e como a gente queria estar no futuro”, destaca Tashka. Ao fazer uma retrospectiva sobre como viviam os antepassados do povo antes da transformação da floresta em seringais, chegaram à conclusão: “Era uma vida muito bela, muito linda. Cheia de cantos, danças, de crenças, de medicina.”

“Aí quando fomos ver o atual [20 anos atrás] os Yawanawa estavam perdendo toda a sua cultura, a sua espiritualidade. Estavam saindo das aldeias para ir morar nas periferias dos centros urbanos, numa vida desgraçada de fome e de discriminação””, relembra o presidente da ACSY.

 

Resgate da arquitetura tradicional

 

Tashka com dona Auzira, uma das anciãs do povo e referência da história dos Yawanawa (Foto: acervo pessoal)

 

Passadas duas décadas desde então, as lideranças Yawanawa colhem os frutos de um trabalho que poderia parecer utópico. Afinal de contas, desde o contato com o homem branco – sobretudo os missionários – eles foram obrigados a abandonar seu modo de vida ancestral com a floresta, visto como pagão na visão cristã-ocidental.

Agora nesta nova fase, há a recuperação das habitações erguidas pelos Yawanawa até antes do contato com o homem branco. Esse modelo tradicional de arquitetura – com as bases e pilares feitas com troncos de árvores e coberta com palheiras – foi substituído pelos mesmos moldes das casas das pequenas cidades do interior da Amazônia: feitas de madeira serrada e cobertura de telha de zinco.

“Estamos recuperando as construções com a arquitetura Yawanawa, com recursos da própria floresta, construídas pelos indígenas. Estamos tentando usar o menos possível coisas de fora [material de construção], diz Laura.

Essa recuperação da ancestralidade cultural e espiritual fez os Yawanawa não serem tão atingidos pela Covid-19. O uso da medicina da floresta – que são os chás feitos a partir de folhas e raízes – foi e tem sido a principal forma para o povo enfrentar os efeitos da contaminação pelo coronavírus. Até hoje só há o registro de uma morte entre eles.

De acordo com a Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-Acre), foram confirmados sete casos da Covid-19 dentro da TI do Rio Gregório. Em todo o estado já são 2.591 indígenas infectados, sendo 1.326 deles moradores de aldeias. Neste um ano e meio de pandemia, 33 indígenas acreanos perderam a vida. Em todo o país, segundo dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), são 1.116 mortes, com 55.698 contaminados entre 163 diferentes etnias.

 

Os Yawanawa em imagem de arquivo (Foto: cedida por Tashka Peshaho Yawanawa)

 

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